segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Um estranho fruto

Cantar na cerimônia de tomada de posse de um presidente americano costuma ser visto como um privilégio. Barack Obama, por exemplo, teve de fazer um complexo exercício de prestidigitação para acomodar os muitos artistas que o apoiaram durante a sua última campanha eleitoral, em 2013, e insistiram depois em participar na festa da vitória: Beyoncé cantou o hino nacional antes do juramento; Kelly Clarkson e James Taylor a seguir, e pelo meio ainda houve tempo para escutar Alicia Keys, Marc Anthony e Brad Paisley, entre outros. Mesmo os inimigos de Obama aplaudiram o show.

Este ano, contudo, ninguém quer cantar para Donald Trump. O empresário e novo presidente americano tem recebido recusas umas atrás das outras. Tantas que virou piada. A mais original, mais sarcástica e mais inteligente de todas estas recusas terá sido a da cantora britânica, de ascendência jamaicana, Rebecca Ferguson, a qual anunciou que sim, que aceitaria atuar na tomada de posse de Trump, mas apenas na condição de interpretar “Strange fruit”.

“Strange fruit” foi escrita por Abel Meeropol, um judeu comunista, que adotou os filhos de Julius e Ethel Rosenberg depois que estes foram executados sob acusação de espionagem a favor da União Soviética. Meeropol escreveu “Strange fruit”, no final da década de 30 do século passado, em homenagem a todos os negros linchados nos Estados Unidos. A canção tornou-se imensamente popular na voz de Billie Holiday. Mais tarde Nina Simone deu-lhe um novo fôlego — e que fôlego! — transformando-a numa espécie de hino do movimento pelos direitos cívicos.


A letra foi publicada pela “The New Masses” (revista marxista, muito próxima do Partido Comunista dos Estados Unidos), antes mesmo de ser musicada. Não se pense, contudo, que Meeropol escreveu um texto panfletário. Longe disso. “Strange fruit” é um poema de uma ironia triste e discreto desespero, que, por vezes, quase parece conformar-se com o próprio horror que denuncia. Passaram-se décadas e os versos de Meeropol (“Strange fruit hanging from the poplar trees / Pastoral scene of the gallant south”) não perderam nem um pouco do seu poder perturbador e da sua estranha luz.

Sinceramente, eu pagaria para ver a expressão na grande cara cor de laranja de Trump, ouvindo Rebecca Ferguson cantar “Strange fruit”. Por outro lado, talvez ele nem percebesse a ironia. Steve Bannon, esse sim, iria se retorcer na cadeira, incomodado. Trump podia até aplaudir. Nunca se sabe. O melhor de Trump é a imprevisibilidade. O pior também. A reação dele a todo este episódio de rejeição em série por parte da classe artística foi de puro deboche: fez notar que Hillary Clinton contou com o apoio de todos os artistas, e ainda assim perdeu.

Custa-me reconhecer, mas Trump tem razão. A sua vitória representou a derrota do mundo das artes e do pensamento. Fãs podem ser levados a comprar uma determinada marca de sapatos se a virem nos pés do seu cantor ou ator preferido, mas isso não significa que comprem também as suas ideias. As pessoas querem as canções dos seus artistas favoritos (e, vá lá, os seus sapatos, os seus cigarros, as suas calcinhas), mas não o seu pensamento. Os escritores são ainda menos relevantes. Nem sequer vendem sapatos.

Ingenuamente acreditei que a literatura seria um caso particular. Afinal de contas, quem compra um livro, compra ideias. Os livros teriam um poder transformador, que outras obras de arte dificilmente alcançam. A vitória de Trump tem-me feito reavaliar esta e outras certezas antigas. Os livros mudam o mundo? Sim, claro, alguns mudam — estão mudando. Basta pensar na Bíblia, no Corão, n’ “A origem das espécies”, n’ “O Manifesto Comunista”, em “Lolita”, n’ “Os versos satânicos” ou em “Dona Benta — Comer bem”. Mas mudar, infelizmente, não significa melhorar. Dos livros citados acima nem todos trouxeram paz e prosperidade ao planeta — muito pelo contrário. Não que sejam intrinsecamente maus. Acontece que muitas pessoas olham para os livros como para espelhos: não estão interessados em ver os outros neles (que é o melhor que um livro nos pode dar), mas apenas a si mesmas; não procuram o confronto de ideias, querem encontrar nos livros a confirmação dos seus próprios preconceitos.

No próximo dia 20, quando Donald Trump tomar posse, será uma loirinha de apenas 16 anos, Jackie Evancho, a cantar o hino nacional. Os restantes convidados incluem um coral mórmon, o Coral da Universidade do Missouri e uma companhia de dança de cabaré chamada The Rockettes. Prevê-se, pois, um festival de branquitude — e de decrepitude também. Se esta é a grande América triunfante de Trump, eu realmente prefiro a que perdeu.

José Eduardo Agualusa

Nenhum comentário:

Postar um comentário