terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Sinais de vida

Nos dias de hoje, marcados pelo avanço de forças anti-democráticas e fascistas em várias partes do mundo, dois acontecimentos, semana passada, suscitaram expectativas positivas: as eleições primárias realizadas pelos socialistas na França e as passeatas organizadas pelo Movimento das Mulheres nos EUA.

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Nas primárias foi possível acompanhar os debates de sete candidatos que se enfrentaram ao vivo e através de artigos publicados. Passaram para o segundo turno Benoît Hamon, em primeiro lugar, com 36,5% dos votos, um reformista democrático, comprometido com o resgate de antigas bandeiras socialistas: a justiça social e as liberdades políticas. Suas principais propostas: enfrentar a “rarefação do trabalho”, resultado da revolução informática, através da redução da jornada de trabalho e da atribuição de uma renda mínima decente a todos os maiores de 18 anos que se encontrem em situação vulnerável. Ele é também pela imediata revogação do “estado de urgência”, pois as leis aprovadas seriam suficientes para controlar o surto do terrorismo. Em segundo lugar, ficou Manuel Valls, ex-primeiro-ministro de François Hollande, com 31,1%, um homem da esquerda “gestionária”, “duro” com os imigrantes e “mole”com os banqueiros, obcecado com os equilíbrios monetários e insensível com os desequilíbrios vividos pelas camadas populares. É de se esperar que perca no segundo turno.

As primárias suscitaram um amplo debate de ideias. Três pareceram-me muito adequadas e viáveis.

O economista Thomas Piketty defendeu a democratização da política financeira europeia, retirando-a do Conselho de Ministros de Finanças e a transferindo para uma câmara de deputados proveniente dos parlamentos nacionais, de acordo com os critérios de proporcionalidade e de diversidade existentes. Assim, os diferentes países seriam representados segundo seu peso demográfico e as vozes plurais dos respectivos parlamentos, decidindo-se a política financeira pelo voto majoritário desta câmara.

Jean Blaise, sobre o tema da cultura, propôs fazê-la “viver no espaço público”. Recordou experiências, como a Festa da Música, criada nos anos 1980, que retirou performances artísticas dos recintos fechados, levando-as para praças e ruas das cidades. Livre acesso e todos os dias, assim deveria ser a marca das atividades culturais. Sugeriu também federá-las, como se faz em Lille, cidade ao norte da França, desde 2004. Reúnem-se ali 193 municípios em exposições, concertos e festas populares. A cultura evidencia grande poder de atração, inclusive de turistas, o que tem implicações econômicas positivas, viabilizando financiamentos públicos e privados.

Já Christian Ben Lakhdar discorreu sobre o tema da legalização da cannabis. Pesquisas efetuadas pelo Observatório Francês das Drogas atestam que 700 mil pessoas a consomem todos os dias, o dobro disso curte o fumo ao menos dez vezes por mês, enquanto um pouco mais de 4,5 milhões fazem o mesmo uma vez por ano. Trata-se de um “problema policial”? Respondendo pela negativa, o que se sugere é a legalização do consumo e a venda em pontos especializados a serem gerenciados por atuais pequenos traficantes, reinseridos numa atividade comercial legal. Ben Lakhdar estima em um bilhão de euros a receita em impostos, a serem investidos em áreas socialmente sensíveis.

O debate de ideias e a dinâmica unitária das primárias têm sido uma oportunidade de renovação que poderá ser uma fonte de inspiração para o socialismo francês e para esquerdas em outras latitudes.

As grandes passeatas promovidas pelo movimento Women’s March (Passeata das Mulheres) nos EUA foram o outro sopro — forte — de esperança a abrir horizontes que pareciam fechados. Em cerca de 400 cidades americanas e em mais de 650 outras espalhadas em mais de 70 países, milhões de pessoas foram às ruas para denunciar as falas e promessas de Donald Trump, novo presidente dos EUA, de desprezo pelos direitos das mulheres — os direitos das mulheres são direitos humanos — e de ameaças a conquistas consolidadas em alguns países (o direito à interrupção voluntária da gravidez). Outros temas também apareceram com ênfase: direitos civis, saúde, educação, a defesa do meio ambiente, a crítica ao racismo e a necessidade de proteger as minorias. O caráter massivo nos EUA e sua amplitude internacional fizeram recordar as melhores tradições do movimento socialista e tornaram a evidenciar uma verdade cada vez mais indiscutível — só lutas de caráter internacional serão capazes de deter e derrotar as ondas antidemocráticas que assolam o mundo.

Observando a maré humana em Washington, duas jovens americanas, Elena Kernikos e Lindsey Broderick, comentaram: “É uma mensagem de esperança em tempos sombrios”.

Concordando com elas, restaria acrescentar: a convergência das primárias francesas com as passeatas das mulheres são sinais de vida espantando a morte.

Daniel Aarão Reis

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