quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Passageiros da utopia

Em um de seus últimos artigos, o poeta Ferreira Gullar pregou a necessidade de se recuperar a utopia de uma sociedade mais fraterna e menos desigual, sonho de gerações e gerações do século XX.

Esse trem da utopia acaba de perder um de seus últimos passageiros, Mário Soares.

Morreu o “pai do Portugal democrático”, mas não o seu ideário. Este continua atual. Afinal, sabemos que, sem utopia a humanidade perde o sentido.

O sonho dele foi o mesmo de Olof Palme, Willy Brandt, François Mitterrand, Felipe González, passageiros do comboio da socialdemocracia em países da Europa pós Segunda Guerra Mundial.

A grande consigna de Mario Soares foi “socialismo em liberdade”. Com ela, não só se diferenciou do modelo do “socialismo real” da URSS e seus satélites, mas também da visão liberal do Estado mínimo e do endeusamento do mercado.

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A socialdemocracia moderna, da qual foi um dos expoentes, constituiu-se como terceira via, pautada na combinação de um Estado social com a economia de mercado.

Os países nórdicos são até hoje a experiência mais bem-sucedida. É difícil defini-los como capitalistas ou socialistas. Talvez um mix dos dois.

A ideia de uma Europa una, à qual Portugal aderiu, trouxe enormes benefícios para os países que a ela se agregaram.

A prosperidade portuguesa é produto dessa integração, da qual Mário Soares foi fiador. O Portugal salazarista era um país agrário, exportador do trabalho braçal, de índices de analfabetismo alarmantes – 25% ainda na década de 70. Hoje é um país moderno.

Mas poderia ser a Albânia do mundo ocidental, caso o pai da democracia portuguesa tivesse perdido o embate para Álvaro Cunhal, líder comunista de linha ortodoxa e pró Moscou de Brejnev.

A pátria de Fernando Pessoa viveu dias dramáticos em 1975 quando um golpe de orientação comunista por um triz não se concretizou. Soares conclamou as massas a ir às ruas em defesa da democracia e estreitou mais ainda os laços com Olof Palme, um dos maiores líderes da socialdemocracia escandinava.

Nas últimas décadas do século 20, este ideário tinha vencido o embate ideológico que vinha desde a ruptura entre a Internacional Socialista e a Terceira Internacional.

A ideia do socialismo democrático, ou do “socialismo em liberdade” ganhou força tanto com a perestroika de Mikhail Gorbachev, como com o compromisso histórico de Enrico Berlinguer. Na essência, o eurocomunismo do PCI e do PCE se aproximava, e muito, das ideias de Mário Soares, Olof Palmer, Willy Brandt, François Mitterrand e Felipe González.

Na virada do século, a democracia se afirmava como o grande valor da humanidade, mas o Estado do bem-estar entrava em refluxo, como uma das consequências da globalização, que, se trouxe enormes ganhos, não concretizou o sonho do poeta de uma sociedade menos desigual. Ao contrário, levou à desindustrialização em países centrais, a uma maior concentração da riqueza, aprofundando desigualdades.

A recente onda nacional populista, com seus traços de xenofobia e racismo, é uma resposta transversa aos efeitos perversos da globalização.

E por ser transversa é uma não resposta.

O nacional-populismo não é a última estação do trem da história. O desafio dos tempos atuais é construir uma alternativa a ele. E, seguramente não é a negação da globalização, mas sua elevação a um novo patamar.

O sonho dos passageiros da utopia permanece atual.

A ascensão do nacional-populismo aponta para a necessidade de uma socialdemocracia comprometida até a medula com a distribuição da riqueza, nos marcos de uma economia de mercado e de ordenamento democrático.

Em um mundo no qual somente uma parte da população encontrará lugar no mercado tradicional de trabalho, será imperativo criar um novo sistema de bem-estar social baseado em distribuição mais justa da riqueza.

O trem dos passageiros da utopia segue em direção a Estação Finlândia, primeiro país a experimentar um programa de renda mínima universal.

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