domingo, 15 de janeiro de 2017

Guerra aos fatos

Pouca coisa vale tão pouco a pena no Brasil moderno quanto escrever um texto para a imprensa sem sair chutando o governo na primeira linha e, se possível, continuar na mesma partitura até o ponto final. Nem se trata, Deus nos livre, de falar algo de bom ─ basta não falar mal para a pessoa que escreve ver-se exposta ao risco de fazer papel de boba, ou ser acusada de delitos ainda bem piores. O cálculo não é complicado. É só ficar atento à Lei da Malignidade Pública Permanente, que estabelece o seguinte: “Podendo errar, um governo vai errar”. O resultado é que, em condições normais de temperatura e pressão, o governo, qualquer governo, produzirá alguma calamidade logo depois que o infeliz tiver escrito o tal artigo neutro, ou sem hostilidades declaradas. O autor, se alguém lhe der três reais de importância, se verá então acusado de leniência, para usar uma palavra da moda, ou de ser parcial, mal informado e nocivo aos interesses da sociedade. Para que viver sob essa ameaça? É melhor apostar no certo. Bata no governo ─ se você não sabe por quê, o governo haverá de saber.

Sim, estamos aí diante de uma manifestação maciça de preconceito. Mas é justamente por isso que há tanto estímulo para atirar primeiro na autoridade pública e perguntar depois ─ ou, melhor ainda, não perguntar nada, nem antes nem depois. É muito mais cômodo. Preconceitos, no fim das contas, são excelentes instrumentos para economizar tempo: permitem ao indivíduo formar uma opinião sem ter o trabalho de verificar os fatos. Melhor ainda, ao agirem desse jeito, as pessoas não precisam pensar, e isso parece duplamente recomendável nos dias de hoje. Em primeiro lugar, como dizia Henry Ford, pensar é a coisa mais difícil que existe ─ talvez seja por isso que tão pouca gente tenta. Em segundo lugar, trata-se de uma conduta muito mal ­vista no Brasil do momento. O indivíduo que pensa, ou sugere a aplicação de raciocínios lógicos no debate sobre as questões públicas, pode provocar a formação de um tipo de corrente contínua capaz de gerar ideias e outras doenças transmissíveis. É muito mais conveniente entupir o público com afirmações não combustíveis ─ aquelas imunes a faíscas e que, assim, não contêm o risco de causar mudanças que possam incomodar sua visão do mundo e da vida.

O inconveniente disso tudo é que os cidadãos ficam sem a oportunidade de informar-se com mais exatidão, clareza e realismo sobre o que está acontecendo ao seu redor ─ e não é possível a ninguém estar mal informado e, ao mesmo tempo, decidir bem. Os fatos não param de existir só porque pouca gente está falando deles. Neste momento, foram apresentadas pelo governo, para apreciação do público e adoção pelo Congresso, questões decisivas para o bem-estar do país em seu futuro próximo. A lista é conhecida. Um dos seus primeiros itens foi a fixação de limites para o aumento dos gastos do governo. Há também a mudança nas regras das aposentadorias, para dar oxigênio a um sistema em situação de pré-falência. Sugere-se uma reforma trabalhista, para alterar leis que hoje funcionam como um veneno para a criação de empregos. Foi proposto o estabelecimento de um novo ambiente para o aproveitamento das reservas de petróleo ─ e assim por diante, numa série de movimentos que pretendem estimular o dinamismo de uma economia paralítica. O que há de correto nisso tudo? Antes de prever se alguma coisa vai dar certo, é preciso saber se ela faz sentido. Mas não é assim que está funcionando: de cara, para a maioria dos que se manifestam, já fica decidido que é ruim porque vem do governo. Ficar a favor, ou simplesmente ver lógica em medidas como essas, é ser “governista”. É ser “cúmplice da corrupção”, ou querer a eliminação de direitos ­adquiridos da população brasileira.

Nenhum dos problemas que o país vive no momento foi criado nos sete meses de atuação do governo que está aí; os direitos autorais dessa desgraça toda pertencem unicamente aos seus antecessores. Mas o debate político atual parece decidido a declarar guerra aos fatos. Não costuma dar certo.

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