quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A primeira crônica do ano

No velho bar do Soares e no último dia de 2016, encontrei minha turma. Um mal-encarado Mario Batalha repetiu o chavão:

— Interminável...

— A cerveja que ainda não tomamos?

A lourinha gelada, servida pelo sempre bem-humorado Soarezinho, chegou com o resto do grupo.

— Brindemos a mais um ano novo. Que ele não seja campeão absoluto em tudo de que um país não precisa: desonestidade, mendacidade, roubalheira e vergonha — começou o Mendonça, levantando o copo. — E o intelectual e cronista, o que nos diz?

Olharam para mim. Sorvi um largo gole do meu Joãozinho Andarilho e pensei para fora.
— Essas épocas de Boas Festas me deixam saudoso. Eramos seis irmãos: a vida levou a metade. Gostaria de voltar a acreditar em Papai Noel, no Brasil, no mundo, no progresso e no futuro. Mas perdi minha inocência.

— Fomos treinados para isso — disse o sociólogo Fuldêncio. — A solução estaria em algum lugar do futuro, mas eu vejo que ele está no presente, porque o futuro encolhe a cada dia. O desastre ecológico sintoniza o fim do amanhã e do próprio planeta. Teria falhado a teoria evolucionista?

— Com essa chamada “civilização” que confunde avanço tecnológico com superioridade moral, sem dúvida — respondi.

— É triste pressentir que o futuro nos escapa e se transforma numa “pós-verdade”. Aliás, moda é inventar novos rótulos para velhas garrafas. “Melhor idade” para velhice, “disfunção erétil” para broxada e “pós-verdade” para mentira e ignorância. Isso que a internet, infelizmente, também dissemina. Ao contrário do que se dizia, quem muito se comunica se trumbica! — falou o Levy, com a segurança dos comentaristas políticos.
Alguns riram e pensaram no Chacrinha. Continuei:

Resultado de imagem para futuro se encolhe

— O futuro era tudo para nós, meninos parcialmente educados pelo cinema americano. Um dia donos de automóveis e namorados daquelas louras de cabelos esvoaçantes que não tinham pai, mãe ou parentes. Moravam sozinhas...

O ano novo leva ao passado, e eu recordei como víamos o nosso futuro nos quadrinhos do Flash Gordon, o herói interplanetário.

— E lutava contra o imperador Ming do planeta Mong — lembrou meu tio Mário.

— Acho que era o oposto: contra o Mong do planeta Ming! — soltou, sorrindo, tio Silvio...

— E que mundo imenso era aquele — falou o engenheiro Naninho, com a juventude dos seus 82 anos. — Lembra, Roberto, o dia em que pegamos um mapa para localizar a tribo de Muviro, o amigo africano de Tarzan? E quando discutimos se as cidades perdidas de Castrum Mare e Castrum Sanguinare representavam Atenas e Esparta transplantadas para o universo de Edgar Rice Burroughs?

— Tempos de Papai Noel...

— Você vai escrever sobre o quê? — perguntou o professor de Línguas Mortas Mario Roberto.

— Não sei. Talvez meu tema seja sobre o começo, pois vai ser a primeira crônica do ano. O inaugurar, o abrir, o começar... Inícios e genêses, prefácios e prólogos, a primeira letra do alfabeto sempre são bons para escrever. O tempo dissolve tudo, mas sempre haverá um primeiro banho de mar na Praia das Flechas.

— Eu choro quando a vejo — disse o nosso militar reformado Celso, triste, consolando-se com mais uma cerveja.

— Sem dúvida, vou falar do começo, mas não posso deixar de pensar no fim. Porque um dia ele virá... É curioso — continuei. — No Ocidente, o futuro sempre foi maior do que o presente. Preocupar-se com o presente, o aqui e agora, era a missão dos revolucionários que rejeitavam um paraíso no outro mundo. Já nas sociedades que tenho estudado, as tais “tribos primitivas”, passado, presente e futuro são, de um ponto de vista cósmico, uma mesma coia. Como disse Lévi-Strauss, as sociedades tribais são fieis a si mesmas. Nós, ao contrário, pensamos em ir para Marte sem termos nos resolvido aqui na Terra.

— Que está sendo destruída — disse o Mauricio, o nosso fazendeiro falido pelo agronegócio.

— Acho que o segredo da vida está em como construir um espaço entre a primeira e a última vez...

Nenhum comentário:

Postar um comentário