quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Paixão

Chega, 2016, vaza!

 No próximo domingo, se tudo der certinho e o mundo não acabar antes, vamos entrar em 2017. Melhor dizendo, vamos, finalmente, nos livrar do interminável 2016, esse que não acaba nunca, e que segue mau até o fim, tirando de circulação gente que amamos, e deixando lépidas e saudáveis pessoas nefastas, cujas ausências preencheriam grandes lacunas.

De um ponto de vista estritamente pessoal, nem posso me queixar. O ano foi bom comigo. Trabalhei, encontrei amigos, viajei, me diverti com os gatos. Mamãe ganhou uma quantidade de campeonatos de natação pelo país e pelo mundo, minha neta mais velha está sendo aceita por diversas universidades americanas e tem boas ofertas de bolsas de estudo, os pequeninos estão cada vez mais engraçados e criativos. De ponta a ponta a família está bem e com saúde, com os altos e baixos que conhecemos, um aperto financeiro aqui, uma crise ali, vida normal.


Mas é difícil ser feliz quando o mundo está caindo, quando o ódio é uma presença sólida no horizonte, quando há tanta gente em volta que perdeu o emprego, que teve que fechar a loja, que desistiu de um negócio, que não sabe quando o estado paga.

Felicidade até existe da porta para dentro, mas ninguém consegue ser feliz de verdade se o mundo não estiver feliz, ou se não existir, pelo menos, a vaga noção de que o mundo pode talvez um dia quem sabe ser feliz; que o mundo está indo numa boa direção, caminhando em busca da paz e de um ideal de contentamento — tudo o que não tivemos neste ano, e que, a julgar pelo que se viu até aqui, não teremos tão cedo, se é que um dia tivemos.

“Il y aura toujours un chien perdu quelque part qui m’empêchera d’être heureuse”, diz uma personagem de Jean Anouilh ao desistir de um amor rico e voltar para a família pobre: haverá sempre em algum lugar um cão perdido que me impedirá de ser feliz. Alguns anos depois, Edith Piaf incorporou a frase a uma de suas canções, “Et pourtant”, acrescentando um “pauvre” ao “chien perdu”, coitado dele.

Pobres dos cães perdidos, pobres de nós.

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Quando estive em Moscou no final dos anos 1990, fiquei muito impressionada com as pessoas que, nas ruas, tentavam manter um último fiapo de dignidade, vendendo três toalhinhas de crochê aqui, cinco colherzinhas de café ali, um bibelô, um quadrinho, as derradeiras quinquilharias que tinham em casa.

Eram gente de idade, professores, engenheiros, militares reformados, sobreviventes do antigo regime que não conseguiram surfar a onda da abertura econômica e ficaram às margens do novo tempo — exatamente as pessoas que Svetlana Alexijevich ouviu em “O fim do homem soviético”, um dos grandes livros que li este ano.

Consegui conversar com dois ou três, numa colcha de línguas quebradas que dividíamos. Palavras, a rigor, nem eram necessárias. Bastava olhar para eles, e para a sua pobre mercadoria, para perceber o que tinha acontecido.

Eles não me saíram da cabeça desde então, mas a sua lembrança tem estado cada vez mais presente. Leio as notícias desse monstruoso calote que o governo está dando nos funcionários, e penso naqueles velhinhos amargurados e sem perspectivas.

Estamos caminhando para isso; não sei se o fato de não termos inverno chega a ser um consolo, ainda por cima diante desse verão abrasador.

Que mundo.

E que ódio.
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Por outro lado, algum progresso sempre fazemos. Em que pese Lula e o PT estarem trabalhando com a originalíssima tese de que sem corrupção não há desenvolvimento, e que todos os males do Brasil advêm da Lava-Jato, a operação e as suas ramificações são das poucas coisas que funcionam no país e que ainda elevam a nossa deficitária autoestima.

Não é em qualquer lugar do mundo que o maior empreiteiro vai em cana; não é em qualquer lugar do mundo que um ex-governador e sua mulher passam o Natal atrás das grades. Nunca pensei que, no tempo da minha vida, eu pudesse ver gente rica e poderosa ir presa no Brasil, ainda por cima por corrupção.

Ainda assim, acho que não basta ver todos esses figurões na cadeia. É edificante saber que a impunidade está diminuindo, mas sem a devolução de cada centavo roubado aos cofres públicos as punições acabam deixando muito a desejar.
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Millôr dizia que um homem público que se cerca de homens mais inteligentes do que ele é mais inteligente do que eles. Temer, por esse parâmetro, é burro, muito burro. É óbvio que não foi ele quem fez a lista de compras do avião da presidência, mas foi ele quem escolheu a pessoa que escolheu a pessoa que escolheu a pessoa que fez a lista — uma sequência de gente sem noção, que não entende a impopularidade do governo e o momento pelo qual o país está passando.

Gastar de forma obscena é tradição antiga nos palácios de Brasília, mas não está na hora de tomar Romanée-Conti, está na hora de cortar custos e de prestar satisfações à população, que não aguenta mais apertar o cinto enquanto os nababos se refestelam à sua custa.
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Feliz Ano Novo, amigos. Que 2017 tenha alguma consideração conosco e nos traga, se não for pedir muito, um pouco de paz.

Cora Rónai

A Bitwar - A guerra dos mundos

Poucas pessoas se dão conta de que, neste exato momento, a maior batalha travada pela humanidade é a do digital contra o analógico. Quem acha que isto é só um sistema de tevê está muito enganado. É um sistema de governo. Eu diria que um governo analógico todos nós já conhecemos: é aquele em que você elege uma plataforma pronta, que imediatamente se torna a vontade da maioria – as minorias que se danem – e as instituições são chamadas para defender a tralha toda. Se você não gostar do governante, espere até poder eleger outra coisa em seu lugar, quando o pesadelo acabar.

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Já o governo digital pleno ainda não existe. Mas ele é ou será, em tese, um compromisso e não uma plataforma. Você pode eleger o cidadão pelo seu smartphone, inscrever-se em chats de discussão dos grandes temas de interesse nacionais e o governo seria um mero administrador plebiscitário da vontade do seu eleitor, conferida numa serie de referendos que seriam conclamados continuamente. Não gostou? Troca de modelo, imediatamente.

Vou mais longe ainda. Faz tempo que o ideal publicitário do cara bem sucedido, com uma casa com gramado verde, piscina e um cachorro grande ladeado por uma mulher bonita e “do lar”, foi substituído por um ser – de sexo indefinido – munido de um bodysuit que lhe permita explorar qualquer ponto do planeta – Marte, inclusive – e um gadget digital que lhe permita uma interação imediata com o resto da humanidade. Romantismo meu? Longe disso. Percebam as implicações envolvidas nessas duas visões do sucesso: A acumulação já era, a opulência, o desperdício e o corporativismo sendo substituídos pela versão mais moderna do seu smartphone, com acesso ilimitado a qualquer tecnologia ou campo de conhecimento. É um novo gênero, o do “homo viajantis”.

Qual jornalista da velha guarda vai sobreviver messiânico à sua própria área de comentários? Qual ética vai sobreviver à janelinha? É bobagem lutar contra isso, meus caros. A vontade do consumo vai se impor e pronto. E até nisso a esquerda foi pernóstica e idiota, fazendo uso desse “progressismo” para o seu projeto de poder marreta. Eles até poderiam ter avançado muito nessa agenda planetária, nesse desejo de consumo, se não tivessem utilizado a coisa como mais uma de suas bandeiras porcas para consumar a roubalheira toda.

Poucos se dão conta de que não saber o que um Trump representa na ordem mundial das coisas pode ser um sintoma dessa digitalização em andamento. Ninguém precisa saber o que Trump representa: nem ele mesmo. Basta que ele tenha a última versão do seu aparelhinho no bolso – e Trump tem grana para comprar o mimo e tempo para aprender a usá-lo – para tornar-se o verdadeiro pesadelo de George Orwell. Nada mais dicotômico para a humanidade que um sistema de controle sem controle algum. Nem dos seus próprios controladores. Um sistema de comando sem comandantes aparentes. Alguém aqui duvida que esse é o caminho? Que esse caminho é inexorável? E que seu filho já faz parte dele? Boas Festas a todos.

Paisagem brasileira

CHEIRO DE MATO NA ROÇA:

Clima quente e nuvens negras

No lusco-fusco do apagar do ano, tórrido início de verão, os espíritos clamam por ar fresco, aquietar a mente e relaxar o corpo. O mais provável é que o tempo apenas passe, fechando um período, abrindo outro e renovando o calendário. Em tese, a semana entre o Natal e o Ano Novo serve para procrastinar um tantinho a vida. Mas, por estas veredas, nem no mormaço destes dias há sossego: a crise transformou-se no normal e cotidianamente exala sua sensação térmica de 50 graus!

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E assim, mais uma vez, a Polícia Federal foi às ruas, espalhou seu pavor entre partidos, operadores, políticos e governos; aumentou a desconfiança de que 2017 não será diferente de 2016, similar a 2015. O clima de incerteza permanecerá e a única coisa certa é que, no Ano Novo, as nuvens negras remanescerão sobre o sistema político, sobre o governo e, por decorrência, sobre a economia do País que não terá o necessário suporte que suplica à política em frangalhos.

O círculo vicioso ou virtuoso – depende a quem envolve – se estabeleceu: a Lava Jato descobre novos elementos de corrupção que regaram o financiamento de campanhas, mormente da chapa vencedora “Dilma & Temer”. Essas descobertas amargam ainda mais o fel da opinião pública que, crítica e revoltada, influencia o trabalho de juízes. Pressionados, magistrados dão vazão à Lava Jato e seus congêneres. Reféns de seus malfeitos e da lógica deste ciclo, os políticos mal disfarçam o desconforto.

Com ar blasé, Michel Temer esforça-se para se desvencilhar de Dilma – parceira só para o que convém –; busca ganhar tempo: retomar a iniciativa, preencher, assim, o espaço da crise ocupando a audiência com necessária e incompreendida agenda reformista. Aspira um pouco de ar e nova dinâmica econômica que empurre o tempo até que o clima arrefeça e novos juízes possam julgar sua causa. Mas, com essas nuvens, não há conciliação: elas pairam sobre o Brasil, estão lá, ao seu redor; trovejam e relampeiam na Lava Jato, no TSE... No horizonte de 2017.

Soneto

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

O passado que vem aí

Aquilo de que mais gosto no Natal é dos presépios. O meu pai construía presépios. Começou por construir presépios pequenos, junto à árvore de Natal, semelhantes àqueles que eu via quando visitava os meus amigos. Depressa se entusiasmou, e sendo um homem de grandes arrebatamentos e muita criatividade, os presépios foram prosperando, à medida que eu próprio crescia, de tal forma que a partir de certa altura já não cabiam mais na sala, e o meu pai passou a erguê-los no jardim. Essa segunda geração de presépios tinha personagens em tamanho real, dentro de estábulos quase autênticos. Eram tão realistas e sofisticados que nem eu nem a minha irmã estávamos autorizados a entrar nos estábulos para brincar com o Menino Jesus. Juntava-se gente no passeio, espreitando os presépios por cima do muro. Eu, contudo, sempre preferi os da primeira geração. Nesses, eu acrescentava às figuras tradicionais, em porcelana — pastorinhos, boi, burro, Reis Magos e os seus camelos, Maria, José e Menino Jesus —, os meus índios e caubóis em plástico.


O último dos presépios da primeira geração ruiu numa noite de Natal, teria eu oito ou nove anos, devido, provavelmente, ao peso dos inumeráveis personagens que caminhavam ao longo das verdes colinas de musgo, assentes sobre complexas estruturas em arame e cartão. Havia mesmo um rio, no qual circulavam barcaças e jangadas, com um complicado sistema para elevar e fazer circular a água. Por essa altura, aos apaches, moicanos e caubóis, haviam-se juntado várias bonecas da minha irmã, e até uma manada de elefantes em pau preto. Todos aqueles seres se dirigiam felizes a saudar o Menino Jesus, quando ocorreu o desastre. Fui o único a acordar com o ruído e, portanto, o primeiro a entrar na sala. Consegui salvar o Menino Jesus, que se afogava, sem glória, numa poça de água e lama. Infelizmente, a Virgem Maria perdeu a cabeça. No fim, lá conseguimos recompor o presépio. Contudo, nunca encontramos a cabeça da Virgem, de forma que, nesse ano, tivemos de substituir a mãe de Jesus por um dos pastorinhos, ao qual acrescentamos uma peruca loira, feita de algodão. O pastorinho, assim travestido, assumiu o seu papel e não fez má figura, muito pelo contrário.

Penso naquele presépio como um modelo do mundo em que cresci e no qual acredito — mundo esse que parece, também ele, em vias de desabar. Um mundo de fronteiras difusas, sejam elas raciais, étnicas ou de gênero. Um mundo sincrético, mestiço, integrador. Um mundo que ambiciona (ou ambicionava) ser o Brasil no que o Brasil tem de melhor: a extraordinária capacidade de assimilar e nacionalizar o outro.

Eis senão que o passado se ergueu de entre os escombros, com a soma de tudo aquilo que julgávamos já ter ultrapassado: o ranço do nacionalismo mais primário, o bolor do racismo, da xenofobia, do machismo e da intolerância religiosa. É um movimento que já estava em marcha há vários anos; mas em 2016, com a vitória de Donald Trump, podemos dizer que se afirmou de forma explícita, em toda a sua excêntrica e brutal obscenidade.

Em dezembro, gosto de colecionar as previsões de astrólogos, cientistas, analistas políticos, para o ano seguinte. Doze meses mais tarde confronto essas previsões com o que realmente aconteceu. A conclusão é que quase ninguém acerta. Nem a magia, nem a ciência. O futuro continua inescrutável, o que me parece ao mesmo tempo assustador e reconfortante. Não sabemos nunca o que está para além da curva do tempo. O futuro pode trazer-nos tudo — inclusive o passado.

A julgar pelo que aconteceu em 2016, devemos estar preparados para todo esse passado terrível que aí vem. Essas são as previsões da maioria dos astrólogos e analistas políticos. Dado o prazer evidente que o futuro tem em contrariar as previsões, pode ser, contudo, que 2017 nos surpreenda pela positiva. Para quem, como eu, não acredita nem em astrólogos, nem em analistas políticos, existe a matemática. A regressão à média é um conceito matemático segundo o qual em qualquer série de eventos aleatórios existe enorme probabilidade de um acontecimento extraordinário ser seguido, por puro acaso, por outro mais trivial. Ou seja, no evento que agora nos interessa, a um ano extraordinariamente mau e agitado é provável que se sigam meses relativamente tranquilos. Vamos ver.

Volto a pensar no dia em que a Virgem perdeu a cabeça. Foi um desastre terrível — no minúsculo universo em que ocorreu, é claro. Mas na manhã seguinte tínhamos um novo presépio, ainda mais bonito do que o anterior. Talvez a moral da história seja esta: por vezes, para que o mundo avance, é preciso que a Virgem perca a cabeça.

José Eduardo Agualusa

Lembrança de Debbie Reynolds

Debbie cantando e dançando "Dream of you" em "Cantando na Chuva" (1952)
 com Gene Kelly e,Donald O'Connor 

O polvo gigantesco da Odebrecht e a falência da política brasileira

No momento em que emerge do oceano da corrupção o polvo gigantesco da Odebrecht com seus tentáculos nacionais e internacionais, verifica-se a não existência de reação praticamente alguma da classe política brasileira. As revelações vêm se sucedendo e diante delas, efetivamente, como reagiu o universo político do país? A resposta que devia ser de indignação e reprovação sintetizou-se numa tentativa de promover a anistia aos envolvidos no sistema de caixa 2. Impossível aceitar tal realidade sem considerá-la um passo enorme de recuo diante da verdade.

A reação da opinião pública através da imprensa impediu a manobra, mas somente a iniciativa dela desqualifica seus autores. Afinal de contas se os que receberam dinheiro da Odebrecht e de outras empreiteiras afirmam ter agido dentro da lei, qual a razão de buscar uma anistia para um fato que não existiu? É porque os autores sabem muito bem que as doações que declararam à Justiça Eleitoral não condizem com o volume dos recursos recebidos. Tanto assim que a Odebrecht dispôs-se a indenizar em 6 bilhões e 900 milhões de reais países como o Brasil , a Suíça e os EUA. Isso de um lado.

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De outro lado, veja-se a vergonhosa situação dos serviços públicos essenciais brasileiros, a partir do exemplo do Rio de Janeiro onde faltou energia elétrica para funcionamento de unidades de terapia intensiva. Doentes esperam longos meses para serem atendidos por uma rede pública que está desaparecendo por falta de atividade. Quando deveria ser exatamente o contrário, porque, sem receber salários, os funcionários públicos e a legião de desempregados perdem a capacidade de pagar mensalidades dos planos de saúde que com sacrifício conseguiram contratar. O reflexo imediato é a maior procura pelo sistema público. Mas o que fazer, se ele praticamente não funciona?
As cenas se repetem todos os dias e a população, perplexa, aguarda resposta. Mas de quem? Do governador Luiz Fernando Pezão é impossível, o que fica demonstrado pela sua própria atuação. A esperança desloca-se para o plano federal que não pode assistir em silêncio a consumação de uma tragédia.

O polvo devorou recursos e a dignidade política nacional. O governo Michel Temer, pelo menos, tem que se sentir na obrigação de agir. Isso porque, agora está em jogo o destino de milhões de seres humanos.

O ano em que o Brasil se apequenou

O Brasil começou o ano de 2016 em uma profunda crise política e econômica e vai sair dele ainda mais frágil. A tão esperada recuperação da economia deve ficar para 2018, e o combate à corrupção parece não ter pressa, enquanto os poderes preferem trabalhar em causa própria.

Os ajustes para recuperar a economia brasileira poderiam ter sido feitos já no início do ano, mas o Congresso estava mais interessado em derrubar a presidente. Os primeiros oito meses foram tomados pelo processo de impeachment, até o afastamento definitivo de Dilma Rousseff, em 31 de agosto.

Duas semanas mais tarde viu-se a queda do articulador do impeachment e ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, hoje preso em uma penitenciária do Paraná.

Só então a recuperação econômica voltou à pauta. E o preço pago por essa demora foi o avanço do desemprego e uma projeção pífia de crescimento de 0,8% para 2017 – depois de dois anos consecutivos de retração superior a 3% no PIB.

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Quem apostava que o afastamento de Dilma Rousseff resolveria a crise política e econômica no Brasil pôde rapidamente perceber que o problema é complexo e sistêmico, e que aqueles que assumiram o poder após a má gestão da petista são parte do problema.

Isso ficou evidente na forma como a classe política lidou com o pacote de combate à corrupção, principal bandeira dos protestos que levaram mais de um milhão de pessoas às ruas no início do ano. Em um grande acordo entre os maiores partidos do país, PT, PMDB, PSDB e PP boicotaram sistematicamente o projeto e, na calada da noite, enquanto o Brasil lamentava o desastre com o avião da Chapecoense, desvirtuaram a proposta, deixando claro que sua prioridade são os próprios aliados. Uma atitude que não é exatamente inesperada, visto que pelo menos uma centena de políticos são investigados por corrupção.

O pacote anticorrupção foi também pivô na guerra que se estabeleceu entre os poderes Judiciário e Legislativo. Uma disputa que mais uma vez colocou egos e interesses corporativos acima do espírito republicano. O ano testemunhou juízes deixando o Direito de lado para dar vazão ao ativismo, e a mesa diretora do Senado chegou ao ponto de afrontar uma ordem do Supremo Tribunal Federal.

No fim dessa guerra, concluiu-se que Renan Calheiros é ficha suja demais para assumir a Presidência da República, mas pode permanecer na presidência do Senado. Uma crise moral, portanto.

O combate sério à corrupção político-empresarial ficou a cargo da Operação Lava Jato, que, apesar das críticas e possíveis falhas, foi a única até agora capaz de punir políticos e grandes empresários, devolver dinheiro aos cofres públicos e desmantelar um esquema gigantesco que se estabeleceu há décadas no centro do sistema político.

O sucesso da Lava Jato, aliás, ameaça a lua de mel do atual presidente Michel Temer com o Legislativo, ao deixá-lo dividido entre políticos investigados por corrupção e a opinião pública. Até agora, as vitórias sucessivas no Congresso ante a uma aprovação popular de apenas 10% mostram que lado está mais satisfeito com o presidente.

A relação afinada com o Legislativo possibilitou a Temer, nos poucos meses em que assumiu a Presidência, encaminhar reformas de impacto duradouro, como a reforma da Previdência e a PEC do teto dos gastos, de maneira acelerada e controversa.

Ninguém questiona que o Brasil precisa de uma reforma do sistema previdenciário. O que se questiona é como um presidente – que goza de sua própria aposentadoria desde os 55 anos de idade – imagina que um trabalhador braçal terá saúde ou emprego para contribuir durante 49 anos, se quiser ter aposentadoria integral.

Da mesma forma, ninguém questiona que o Brasil precisa equilibrar as contas e aumentar a eficiência da máquina pública. O que não se compreende é por que, em vez de cortar privilégios e superssalários, taxar grandes fortunas e capital improdutivo, o governo resolve congelar justamente os investimentos em áreas-chave para o desenvolvimento, como saúde e educação.

Os acontecimentos do ano foram acompanhados de perto por uma população extremamente polarizada, com discursos acirrados, amplificados pelas redes sociais. E é natural que, em um país tão desigual, a solução para uma parte da população seja vista como um problema para outra.

Só que enquanto boa parte dos brasileiros investe sua energia em debates inócuos e insultos nas redes sociais, políticos corruptos de todas as vertentes e ideologias se aliam em pactos suprapartidários para salvar a própria pele.

Assim, se 2016 mostrou a agonia de um sistema político à beira do colapso, que 2017 possa indicar o caminho de volta ao diálogo. Porque a democracia é isso mesmo que aí está: um constante debate entre pessoas com ideias diferentes, muitas vezes opostas, mas que trabalham juntas para construir um país.

Imagem do Dia

Forte São João Batista (Portugal) 

Deslizando no sorvete

Charge do dia 29/12/2016     

              I 

Presidente Michel Temer,
Do alto do seu vigor,
Doido para dar arrocho 
No pobre trabalhador,
Foi tomado de repente 
Por uma onda de calor.

             II
Um dia, suando de bica,
Com uma camisa amarela ,
Paquerando uma moça rica,
Que era uma coisa daquela,
Disse: "Eu fico na beira,
Mas não passo na pinguela!".

           III
Com o suvaco suado
Do desodorante novo,
Segurando um microfone,
Andou falando pro povo:
- Em nome da economia,
Comam a casca e guardem o ovo!

           IV
Mas, em face do calor
Dentro do seu palacete,
Pediu à sua secretária 
E ao chefe de gabinete
Que comprassem de um amigo
Muitas bolas de sorvete.

            V
Cem mil bolas de São Paulo,
Cento e cinquenta do Rio!
Esfriem o calor do homem,
Que é velho mas tá no cio,
E o barro com sorvete 
Sai muito mas sai macio!

Próspero ano novo?

É tradição, nesta época do ano, desejarmos uns aos outros que tenhamos um próspero ano novo – é o que eu gostaria de fazer também agora, usando este espaço que ocupo desde fins de 2013. Mas, infelizmente, sob pena de parecer cínico, acredito que não podemos ignorar que o Brasil atravessa um momento crítico, uma situação de grave instabilidade econômica e política, mas, mais que tudo, uma profunda crise moral, sem precedentes na história do país. E o fator que provoca maior desânimo é não vermos, em um futuro próximo, qualquer possibilidade de reversão de expectativas. 2016 entra para os compêndios como o ano que, desrespeitando o calendário, invade 2017 como um caminhão sem freios.

Após dois anos de recessão, o mercado financeiro aposta que o Produto Interno Bruto (PIB) crescerá cerca de 0,5% no ano que vem, um percentual pífio, se considerarmos que a economia encolheu 3,8% em 2015 e 3,5% este ano. O resultado é uma taxa de desemprego em torno de 12% – o que significa mais ou menos 12 milhões de pessoas –, que se amplia para 27,7% se levarmos em conta apenas a faixa etária situada entre 14 e 24 anos. Além disso, segundo levantamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os salários do trabalhador brasileiro sofreram a maior desvalorização em termos reais – ou seja, descontada a inflação - entre os países que formam o G-20. A queda deve alcançar 6,2% do valor nominal este ano.

Se a economia vai mal, não está melhor a política. O presidente não eleito, Michel Temer, termina o ano com uma popularidade baixíssima. Pesquisa da Datafolha, realizada ainda antes da divulgação dos depoimentos de executivos da Odebrecht envolvendo Temer em denúncias de corrupção, apontavam que 51% dos ouvidos consideram o governo ruim ou péssimo e 34% apenas regular. Na mesma pesquisa, 41% afirmavam que o desempenho da economia irá piorar e 27% acreditavam que nada vai mudar. Chegou-se até mesmo a cogitar que, sem apoio popular, Temer poderia renunciar para provocar novas eleições – coisa que não aconteceu.


Resta saber como se comportará o presidente não eleito no ano que vem. O cenário que se descortina aponta para três hipóteses: Temer empurrará o seu mandato até o fim, aprofundando as reformas autoritárias que vem conduzindo; ou, em um gesto de grandeza ou desespero, renunciará; ou ainda o Tribunal Superior Eleitoral decidirá pela cassação da chapa Dilma-Temer. Caso Temer venha a renunciar, abrem-se pelo menos duas possibilidades: eleição indireta pelo Congresso ou votação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que permita um mandato-tampão de alguma liderança que promova eleições diretas. No caso de cassação da chapa pelo TSE, há um entendimento desse tribunal, baseado na minirreforma eleitoral de setembro de 2015, que poderia haver a convocação de eleições diretas em 20 a 40 dias após o afastamento, até seis meses antes do término do mandato. Essa interpretação, no entanto, teria de ser referendada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O problema é a crise moral que atinge todos os poderes, indiscriminadamente. No STF, há uma clara divisão entre os ministros, que deixaram de lado a ritualística do cargo e resolveram expor publicamente, e de maneira bastante agressiva, suas diferenças, baseadas em interesses pessoais, muitas vezes escusos. Em acordo de delação premiada, executivos da Odebrecht prometem arrolar dezenas de políticos dos mais diversos partidos, o que atinge o Legislativo – que já tem nove senadores e 45 deputados envolvidos na Operação Lava Jato – e o Executivo, incluindo Temer e alguns de seus ministros, como o da Casa Civil, Eliseu Padilha.

Restaria a nós, que ansiamos por um país melhor, mais justo e mais democrático, torcer para o encaminhamento de uma solução que contentasse a todos, mas principalmente a camada mais pobre da população, que sofre de maneira direta com a incompetência, a roubalheira e os desmandos. Mas mesmo esse desejo desaparece no firmamento. Os nomes que se apresentam no cenário político estão todos, uns mais outros menos, comprometidos com escândalos de corrupção: no ninho tucano, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves; Marina Silva, que aparece como candidata preferida em pesquisa Datafolha divulgada no começo de dezembro, comanda um partido, a Rede, que mostrou um desempenho medíocre nas eleições municipais; e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A questão é que o PT, outrora guardião da moralidade, chafurda hoje na mesma lama que um dia denunciou e condenou. Vários de seus altos dirigentes encontram-se presos ou envolvidos em processos ligados à Operação Lava Jato, como o próprio Lula. E, para demonstrar de forma cabal que os petistas não são mais os mesmos, basta observar que todos os vereadores do partido, sem exceção, votaram, no último dia de trabalhos da Câmara Municipal de São Paulo, por um aumento de 26% em seus próprios salários, que passaram de R$ 15 mil para quase R$ 19 mil reais por mês...

Déficit militar para a Previdência é 32 vezes maior que aposentado do INSS

Preservados da proposta da reforma da Previdência apresentada pelo Governo Temer, os integrantes das Forças Armadas fazem parte do regime previdenciário mais deficitário em valores per capita. Os militares respondem por quase metade do rombo da Previdência dos servidores públicos da União – que chegou a 72,5 bilhões de reais no ano passado –, embora representem apenas um terço dos servidores.

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Segundo cálculos do ex-secretário da previdência e consultor do Orçamento da Câmara dos Deputados Leonardo Rolim, o regime da previdência dos militares beneficiou 296.000 pessoas – entre reformados, na reserva e pensionistas - no ano passado e apresentou um déficit de 32,5 bilhões de reais. Ou seja, cada um dos beneficiados gerou um rombo anual de 109.000 reais aos cofres públicos. O valor é 32 vezes maior que o déficit gerado por um aposentado no regime geral (Instituto Nacional do Seguro Social -INSS). No ano passado, o rombo gerado no regime geral foi de 89 bilhões de reais em um universo de 26 milhões de beneficiários, o que significa dizer que cada aposentado do INSS gerou um déficit de 3.414 reais. A contribuição dos militares também é abaixo da dos civis: 7,5% do salário bruto contra 11% dos aposentados pelo INSS.

O Governo justificou a decisão de não incluir os militares na reforma da Previdência em função das condições especiais da carreira das Forças Armadas, que incluem desde possíveis riscos de vida ao preparo físico exigido. “Nada justifica deixar os militares de fora da reforma. Ele é o regime mais deficitário em valores proporcionais. Além disso, o contingente de militares no Brasil é exagerado”, explica Rolim.

A exclusão dos militares é também considerada por Sonia Fleury, professora da FGV, como uma das distorções da reforma apresentada. “Ela mostra claramente que os setores que têm mais capacidade de pressão conseguem empurrar para frente essa mudança, enquanto pessoas extremamente vulneráveis passam a ter obrigação de passar mais cinco anos sem receber o benefício”, afirma Fleury.

A PEC proposta pelo Governo fixa uma idade mínima de aposentadoria de 65 anos tanto para homens quanto para mulheres (atualmente mulheres podem se aposentar aos 60 e os homens aos 65). Enquadram-se nessa nova categoria mulheres que tenham até 45 anos e homens com até 50 anos. A regra também prevê que será preciso um mínimo de 25 anos de tempo de contribuição - atualmente o tempo mínimo de contribuição é de 15 anos. O Governo Temer argumenta que, tal como está, a Previdência é insustentável. De acordo com projeções do Ministério da Fazenda, mantidas a legislação em vigor, as despesas do sistema geral, o INSS, passariam de 8% do PIB em 2016 para 17,5% do PIB em 2060. As mudanças na Previdência são precedidas da aprovação do teto de gastos, os pilares do programa do Governo para tentar conter o déficit nas contas públicas sem aumento imediato de impostos ou uma reforma tributária.

Segundo o ministro da Defesa Raul Jungmann, um projeto de lei complementar com mudanças nas regras previdenciárias para os militares já está em discussão e deve ser enviado à Casa Civil entre janeiro e fevereiro de 2017. Ainda de acordo com o ministro, todas as regras poderiam ser negociadas, inclusive um aumento da contribuição e do tempo de serviço.

“Não queremos nenhum privilégio, apenas que se reconheça as especificidades. Tudo está na mesa. Não há nada excluído da agenda”, afirmou Jungmann em coletiva de imprensa em Brasília neste mês. O ministro negou também que a participação dos militares no déficit da Previdência seja de 32,5 bilhões de reais e disse que há uma “confusão contábil” neste cálculo.

Segundo o ministro da Defesa, o INSS arca somente com as pensões pagas a dependentes dos militares. Para o ministro, o déficit real é de 13,85 bilhões de reais. Segundo ele, serão pagos 16,55 bilhões aos pensionistas das três Forças, mas haverá 2,69 bilhões arrecadados com as contribuições da categoria no ano de 2016.Já os salários dos inativos e reservistas, de acordo com Jungmann, são pagos pelo próprio Ministério da Defesa. Isso ocorre porque os militares estão enquadrados em um sistema de proteção social custeado pelo Tesouro Nacional. Dele, saíram os recursos para o pagamento de militares ativos e inativos que, neste ano, somaram 20,23 bilhões de reias e 18,59 bilhões de reais, respectivamente. Os valores já estavam consignados por lei ao orçamento do ministério, segundo o ministro.