sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Mandados de Busca coletivos para todos

Após o recente e trágico episódio na Cidade de Deus, em que quatro policiais que tripulavam um helicóptero e sete moradores perderam a vida, foi divulgado que o Poder Judiciário concedeu mandado de busca coletivo, para que a polícia pudesse entrar e revistar qualquer residência de determinadas áreas da comunidade, mesmo à revelia dos moradores. A juíza, no seu despacho, esclareceu que o mandado não pode ser específico para alguns endereços, porque os criminosos pulam de uma casa para outra.

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Os órgãos do sistema de Justiça criminal são comumente acusados de falta de coordenação, mas trata-se de uma acusação no mínimo excessiva à luz de casos como o que nos ocupa, que revelam como as diversas instituições (polícia, Ministério Público e Judiciário) podem se unir na luta contra o crime. Trata-se, contudo, de uma medida seletiva, de um privilégio concedido apenas aos moradores de algumas favelas do Rio de Janeiro, que tiveram a sorte de que o poder público decidisse enfrentar decididamente o crime organizado no seu território. Cumpre, então, se perguntar o motivo de tamanha restrição, a razão pela qual o Executivo não assume plenamente o seu compromisso, solicitando ao Judiciário um mandado de busca e apreensão universal, tal que a autoridade policial pudesse entrar a qualquer hora em qualquer residência de qualquer morador do Estado do Rio de Janeiro, começando pelos bairros onde costumam residir os operadores do Direito, para dar exemplo. Isso evitaria que a polícia perdesse tempo e recursos tendo que solicitar mandados específicos, um a um, tempo esse que os facínoras com certeza utilizam para continuar pulando de uma residência a outra. Tal mandado de busca universal precisaria ter, isso sim, uma duração predeterminada, pois os defensores de direitos humanos, sempre na contramão da eficácia policial, certamente gritariam contra um mandado indefinido. Assim, o mandado de busca universal poderia estar limitado, digamos, aos próximos 20 anos.

A mesma lógica caberia em relação às pessoas jurídicas. Se há, por exemplo, suspeita de delito econômico cometido através de uma empresa, e conhecendo que as empresas transferem fundos de umas para outras para esquivar-se da ação da lei, poderíamos decretar a ruptura do sigilo telefônico, fiscal e bancário de todas as empresas registradas no Estado do Rio, para assim poder capturar os delinquentes que ficam pulando de uma pessoa jurídica para outra.

Tempos de crise exigem medidas inovadoras. Setores do Ministério Público Federal apontam nessa direção quando propõem a aceitação de provas ilícitas e a restrição do habeas corpus para poder, finalmente, lutar contra a corrupção.

Quem sabe não tenha chegado a hora de que o Estado se desembarace de vez de todos esses requisitos enfadonhos e das limitações impostas pelos direitos individuais, rumo à vitória final contra o crime.

Ignacio Cano

O dia seguinte ao da humilhação do Supremo


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O STF está sendo achincalhado por toda parte, menos por ter deixado Renan no cargo, mais, muito mais por ter assistido sem reagir ao ato de desobediência dele e dos seus colegas da direção do Senado. Doravante, os brasileiros estão autorizados a desrespeitar ordem judicial? Ou somente Renan pode fazê-lo? Ou quem mais?

Exceções, ampliadas após recuos, abalam a reforma da Previdência

No momento em que o presidente Michel Temer enviou ao Congresso a reforma da Previdência, sob o argumento de que sem ela o pagamento das aposentadorias e pensões estariam ameaçados, não tem cabimento algum a exclusão das Forças Armadas e, agora, também dos policiais militares e dos bombeiros, através da subtração de um artigo do texto. Reportagem de Alexa Salomão, Carla Araujo e Tânia Monteiro, O Estado de São Paulo de quinta-feira, ilumina forte e claramente tanto o subterfúgio quanto a contradição.

Ambos comprometem a seriedade do projeto do governo, já que sendo geral o sistema previdenciário, não poderia comportar exceções. Pois se as fontes pagadoras são comuns, as restrições (de acordo com o posicionamento do Palácio do Planalto) teriam que se estender a todos.

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Por exemplo: os civis não podem receber simultaneamente, aposentadoria e pensão. Os militares, ao contrário, podem. Qual a razão da diferença? A resposta se chama covardia. Não há explicação lógica para as exceções. O medo é tanto que os integrantes das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros foram afastados do projeto governamental. As explicações do Secretário de Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Caetano, não se sustentam. Isso de um lado.

De outro, o que todos sabem, no fundo, é que só há um caminho para tornar a Previdência sustentável: a queda da taxa de desemprego, que está sendo formada, hoje, por doze milhões de homens e mulheres. A questão é bastante simples: a Previdência arrecada em cima de quê? Da folha de salários.

Portanto, quanto mais baixa ela estiver, menor será a receita. Inclusive não se pode esquecer que as contribuições devem ser duplas, de parte dos empregados e dos empregadores. O princípio vale para as áreas particular e pública.

Mas falei na importância vital do índice de emprego. Exatamente isso. Basta fazer as contas que são absolutamente simples. O salário médio brasileiro encontra-se em torno de 2 mil reais por mês. Assim, 12 milhões de desempregados significam 24 bilhões de reais por mês fora do foco de incidência do INSS e da Seguridade Social. Multiplique-se essa fração por treze, os vencimentos anuais, e vamos atingir algo em torno de 300 bilhões. Excluídos da Previdência, excluídos do consumo.

Marcelo Caetano sabe disso muito bem. Porque, se não soubesse de um aspecto elementar, não poderia ocupar o cargo que ocupa. Para agradar o governo Michel Temer, na exposição que fez à imprensa, tentou escapar da verdade. Não conseguiu. Sua consciência transformou-se na sua pior testemunha. Só o pleno emprego garante o futuro da Previdência Social. Da mesma forma que só a redução da dívida interna de 3 trilhões de reais pode assegurar o presente e o futuro do Brasil. São mais de 400 bilhões de reais por ano a despesa com o pagamento de juros de 13,75% a cada doze meses.

Paisagem brasileira

Pasisagem, Aldo Cardarelli (1915-1986)

Escolinha do Renan

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Faz escola a atitude do presidente do Senado, Renan Calheiros, recusando-se a ser notificado da decisão judicial que o afastava do cargo. Nesta quinta-feira (8), foi a vez do prefeito de Barreiras (BA), Antônio Henrique de Souza Moreira, desafiar a Justiça baiana se recusando a cumprir uma liminar.

A medida foi solicitada à Justiça pelo sindicato dos servidores, para obrigar a prefeitura a descontar dos salários e repassar à entidade 1% do valor de toda folha salarial. Esse percentual corresponde ao chamado “imposto sindical”, que torna essas entidades milionárias.

O prefeito citou o caso do senador Renan Calheiros para alegar que também vai descumprir a medida liminar.

Carmélia da Mata, presidente do sindicato, acusa o prefeito de suspender o desconto nos salários dos servidores, assim como o repasse à entidade, “de forma arbitrária e perseguidora”.

Do rei Salomão a Pôncio Pilatos

Dos vexames oferecidos nos últimos dias pelo Senado e o Supremo Tribunal Federal, destacam-se dois, coisa que não afasta a contundência de outros. Mas não dá para entender o comportamento de Renan Calheiros, escondendo-se do Oficial de Justiça encarregado de citá-lo como réu. Um presidente do Senado brincando de “pique” seria cômico se não fosse trágico, tudo fotograficamente registrado.

No reverso da medalha, também expõe ao ridículo o “acordão” entre os ministros da mais alta corte nacional de Justiça, decididos a proibir o presidente do Senado de hipoteticamente assumir a presidência da República, mas livre para presidir a casa da qual não foi expelido.


Se quiserem, vale incluir o presidente Michel Temer, que não desceu de cima do muro e estimulou a quebra das obrigações do Judiciário e do Legislativo.

Não ficou de fora o decano dos integrantes do Supremo, Celso de Mello, com uma volta de 180 graus em suas concepções jurídicas. E muitos outros vexames que tiraram dos três poderes da União o que lhes restava de dignidade. Valeu tudo nesse capítulo de horror encenado por magistrados, parlamentares e governantes. Buscaram refúgio no rei Salomão, mas terminaram como Pôncio Pilatos. Ignoraram a manifestação de centenas de milhares de cidadãos que no último domingo deixaram bem claros seus sentimentos. Entregaram os anéis e os dedos. Em vez de desempenharem um espetáculo de harmonia e independência, confundiram os preceitos da Constituição e demonstraram completo despreparo para lidar com as instituições, mais uma vez postas em frangalhos.

Renan Calheiros inaugura a era do pós-cinismo

Um dia depois de entronizado pelo Supremo Tribunal Federal no mais alto posto da nação, Renan Calheiros, o novo Salvador-Geral da República, fiador plenipontecnário da estabilidade nacional, sentenciou: ''Decisão do STF fala por si só. Não dá para comentar decisão judicial. Decisão judicial do Supremo Tribunal Federal é para se cumprir.''

Considerando-se que o veredicto veio à luz 48 horas depois de Renan ter ignorado a ordem do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo, para que desocupasse a poltrona de presidente do Senado, fica entendido o seguinte: a norma vale para todos os brasileiros, exceto para o Salvador-Geral, que vive sob regras próprias.

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Apesar de sua condição de réu criminal, Renan foi mantido no comando do Senado pela maioria dos ministros do Supremo, instância máxima do subpoder Judiciário. Vitaminado, o Salvador-Geral anuncia que todas as acusações constantes nos 12 processos judiciais que protagoniza vão ruir.

Renan comporta-se mais ou menos como Diógenes de Sinope, filosofo grego a quem se atribui a estruturação do movimento filosófico batizado de “cinismo”. Consta que Alexandre, o Grande, com poderes tão supremos quanto os do ex-Supremo brasileiro, perguntou a Diógenes o que poderia fazer por ele. E o sábio: “Posicione-se um pouco menos entre mim e o Sol.”

A diferença entre Renan e Diógenes é que o sábio brasileiro alcançou um inédito grau de sofisticação filosófica. O Salvador-Geral da República inaugurou a era do pós-cinismo.

Vamos dançar?

Yul Brynner e Deborah Kerr em "Shall We Dance" (1956), versão de "The King and I."

A 'taxa de oxigênio'

Logo que li sobre os desmandos de Adriana Ancelmo e Sergio Cabral pensei num dos personagens mais bem desenhados da literatura francesa, o père Grandet, que o autor descreve como um homem com uma monomania: colecionar moedas e peças em ouro, amealhar, empilhar, tê-las sempre ao alcance da mão e dos olhos. Ele as guardava num gabinete ao lado de seu quarto, cuja chave só ele e sua filha tinham.

Quando sua saúde começou a fraquejar, ele não queria mais sair de perto da porta do bendito gabinete e perguntava muito à filha: “Está tudo lá? Está tudo lá?”, num tom de voz que denotava uma espécie de pânico.

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E quando ela respondia “Sim, meu pai”, ele lhe ordenava: “Cuida do ouro; põe um bocado aqui diante de mim". E aí passava horas sem fim com os olhos fixos nas moedas, um sorriso de beatitude. E dizia, sincero: "isso me aquece".

Quando chegou sua hora e que o pároco da aldeia veio lhe dar a extrema-unção, seu olhar, que já parecia morto, se reanimou ao ver o crucifixo em vermeil que se aproximava de seus lábios: ele fez um gesto brusco tentando pegar todo aquele brilho. O movimento encurtou ainda mais seu fim. Chamou pela filha que, ajoelhada ao lado da cama chorava copiosamente, e lhe disse: "Cuida bem de tudo. Você há de me prestar contas do outro lado". E morreu.

Estudando melhor o assunto, vi que estava enganada. O casal Cabral compartilhava com o père Grandet o amor ao ouro, é verdade, a ganância, a cobiça, mas não, que se saiba, a avareza.

Passei então de um extremo ao outro e fui me dedicar a reler os quadrinhos do tio Patinhas, que mergulhava em sua montanha de moedas e dormia feliz, quase enterrado nelas. Também ele um belo de um pão duro, a ponto de seu nome ter virado sinônimo de sovinice. Isso já o distingue do ex-governador e sua mulher, que de sovinas não têm nada.

Mas uma coisa eles inegavelmente compartilham: a bazófia, o exibicionismo, o desbunde. É célebre a frase do tio Patinhas para seu motorista: “Qual a vantagem de ter cinco bilhões de quintilhões de dólares e não poder exibi-los?”.

Só isso explica a necessidade de tanto luxo, tantas joias, sapatos e bolsas, de tantos vestidos e adereços caríssimos, dos vinte ternos su misura encomendados ao alfaiate da alta sociedade europeia, Ermenegildo Zegna, cujo site ostenta a frase: "Gifts for the modern man". E obras de arte, lanchas, jet skis, cavalos e carros, e casas de praia e viagens milionárias, pois era preciso ter aonde ir com tantas roupas e joias deslumbrantes, não é verdade?

Consta que o esquema da dupla rendeu mais de R$220 milhões. É tanto dinheiro que, francamente, custei a acreditar nessa informação. Mas, em seguida, foi divulgado que o ex-governador recebia um percentual sobre cada contrato assinado por ele – conhecido como 'taxa de oxigênio' – em forma de ‘mesadas’ que podiam ir de 200 a 500 mil reais. E Adriana, segundo sua secretária, recebeu semanalmente, entre 2014 e 2015, como 'taxa de oxigênio' de empreiteiras, cerca de R$300 mil, em dinheiro, que chegavam ao seu escritório dentro de singelas mochilas...

Ficou mais fácil acreditar no monte de R$220 milhões. O que ainda é muito difícil de acreditar - de compreender - é o que leva um casal jovem, bem sucedido, ele numa carreira política em ascensão, ela uma advogada considerada por muitos como brilhante, a arrebentar com suas vidas e a de seus filhos e pais. O que será que eles sentem hoje lá em Bangu?

Se você vier ao Rio, observe o número impressionante de moradores de rua, ou de andarilhos maltrapilhos com cara de muita fome, que estão espalhados por nossa cidade. E pense em Sergio Cabral e Adriana Ancelmo.

Epidemia do terror urbano

Deu uma coronhada na janela do Jeep Cherokee cinza. “Abra ou morra!”. Dois olhos vermelhos miravam-no. O motorista tinha que decidir. Estava no coração burguês da Cidade do México. Havia pedestres a menos de dois metros, carros à frente e atrás, e um ladrão de 26 anos a poucos centímetros do seu rosto, empunhando uma pistola. A dúvida durou menos que o medo. O motorista abaixou a janela e imediatamente passou a fazer parte de um grupo muito variado a que, naquele dia, também pertenceram um pai roubado enquanto passeava com suas crianças, uma estrangeira de cabelo dourado sequestrada e violada, quatro estudantes torturados e uma dezena de camponeses baleados. Um dia como muitos outros no México, onde se denunciam 45.000 delitos e outros 400.000 ficam na sombra. Um dia em que, mais uma vez, cresceu essa massa informe e terrível que rouba, viola ou mata e que se define como insegurança.

Acapulco, a cidade com uma das maiores taxas de homicídios
O conceito é fraco e difuso. Sabe-se que a insegurança se prolifera em cidades e que dispara com o tráfico de drogas. A partir daí, é imprevisível. Muito rapidamente se adapta a qualquer ambiente. Houve uma época em que foi vinculada à pobreza. Há muito tempo essa teoria teve as asas cortadas. Linear demais. A miséria não é causa suficiente. E, às vezes, nem mesmo necessária. A América Latina é um bom exemplo para entender isso.

A área registra uma das maiores taxas de crime do mundo. Mais de um milhão de assassinatos entre 2000 e 2010. Em 11 de seus 18 países, os homicídios têm status de epidemia, ou seja, superam os 10 casos a cada 100.000 habitantes. Há cidades como Caracas, Acapulco, San Pedro Sula e San Salvador onde esse índice é 10 vezes maior. Nesses casos, não se trata de uma epidemia, mas de puro terror.

Mas nem tudo foi ruim para esse território. Ao contrário, a América Latina passou, na década passada, por um dos maiores desenvolvimentos econômicos da sua história. O desemprego caiu de forma sustentável, 70 milhões de cidadãos saíram da pobreza e o crescimento agregado foi de 4,2% ao ano. Um sonho para qualquer economista. Não para um policial. Com a bonança, a criminalidade também cresceu. Homicídios e roubos alcançaram taxas delirantes. A bem-intencionada correlação (menos pobreza, menos crime) encalhou. A insegurança mostrou ter uma genética mais complexa. Por trás do crime, latejam forças pouco estudadas.

O paradoxo, devastador para os papos de café da Europa Central, foi analisada cuidadosamente pelo Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas(PNUD). Em um relatório referencial, publicado em 2014, constatou-se que a singularidade se move em águas profundas. Nem mesmo há uma relação estreita entre a renda e o crime. Honduras e El Salvador apresentam as taxas de homicídio mais altas, mas sofrem da mesma pobreza que Bolívia e Paraguai, com menores índices de homicídios na região.

Algo parecido acontece com a desigualdade e o desemprego. A redução de ambos, na década prodigiosa, não trouxe consigo, segundo os especialistas da ONU, uma queda das mortes e dos roubos. “Consideradas separadamente, a pobreza, a desigualdade de renda e o desemprego não parecem explicar satisfatoriamente os níveis de insegurança na região. Pelo contrário, o crime aumentou em um contexto regional de crescimento dinâmico e de melhoras notáveis nos indicadores sociais. Entender essa particularidade requer aceitar que a violência e o crime não têm explicações simples”, afirma o relatório do PNUD.

Com esses tópicos derrubados, emerge como possível fator causal algo profundamente enraizado na América: as grandes organizações criminais, especialmente as dedicadas ao narcotráfico. Sua capacidade de corrupção, sua penetração nos aparatos estatais e sua letalidade convertem-se em um candidato explicativo de primeira ordem. Mas, novamente, a insegurança escapa dos reducionismos. “O narcotráfico dinamiza o delito, mas não é a origem, seu desaparecimento não mudaria radicalmente o panorama, sempre existirão mercados ilícitos, negócios sujos, diversificação criminal. Legalizar a droga não é uma varinha mágica”, afirma Gema Santamaría Balmaceda, professora do Instituto Tecnológico Autônomo do México e assessora principal do relatório do PNUD.

Por esse ponto de vista, o narcotráfico é mais uma consequência do que uma causa. Há, antes, um terreno fértil, cuja origem é multifatorial e, portanto, difusa. Como qualquer conceito fraco, a insegurança vive em contínua transformação e é suscetível às mudanças sociais. Influenciam-na fatores como expectativas sociais, qualidade do emprego, entornos urbanos massificados e, sem dúvida, as drogas e as armas”.

A faixa resgatada da pobreza não entrou na classe média. Tem um pé dentro e outro fora. Ao menor vendaval pode voltar ao poço
“Não há uma evidência forte de correlação entre a pobreza e a desigualdade com o crime, mas advertimos sobre a importância fundamental do crescimento da sociedade de consumo. Formam-se enormes mercados ilegais de carros, telefones, comida, animais... sustentados por altíssimas demandas que, paradoxalmente, respondem a uma melhora da renda das classes mais baixas”, explica Marcelo Bergman, diretor do Centro de Estudos Latino-americanos sobre Insegurança e Violência da Universidade Tres de Febrero, da Argentina.

Essas novas tipologias, agrupadas no denominado “delito aspiracional”, representam um dos fenômenos mais disruptivos. E sua explicação não é simples. Os estudos mostram que a franja social resgatada da pobreza durante a década de ouro não entrou diretamente na classe média, mas tem um pé dentro dela e outro fora. Ao menor vendaval, pode ir embora. Forma o chamado “grupo vulnerável” e é a classe mais numerosa da América Latina: aproximadamente 38% da população. Seus empregos são de baixa qualidade, vivem expostos à informalidade econômica e sua mobilidade social é mínima. O desenvolvimento econômico, portanto, não criou uma barreira forte contra o crime. Ao contrário. As ânsias de consumo dispararam, mas não os meios para satisfazê-las. O problema não é a pobreza, mas a falta de expectativas. “As pessoas em situação de pobreza não são necessariamente as que cometem crimes, são as que têm aspirações de alcançar as metas prescritas pela sociedade (roupas de marcas ou celulares de última geração), mas têm desvantagens para materializá-las com empregos ruins ou salários baixos”, afirma o relatório do PNUD.

Junto à insatisfação social, outro detonador é o entorno. Não há zona mais urbanizada no mundo do que a América Latina. Por volta de 80% da sua população vive em cidades. Na periferia da capital do México, uma megacidade de 23 milhões de habitantes, explica, colônias como Desenvolvimento Urbano Quetzalcóatl (68.000 habitantes) não têm uma única biblioteca, mas 450 estabelecimentos de venda de álcool. O bairro, com 70% de desemprego jovem, tem a questionável honra de ser o que mais presos coloca nas cadeias do Distrito Federal.

É em espaços assim que ferve a sopa da violência. Mundos sem memória de melhoras, com empregos de ínfima qualidade e derrotas em toda parte. A lista perfeita para o último ingrediente: o tráfico de drogas. “O narcotráfico exacerba até a caricatura os ideais consumistas da sociedade em que vivemos: carros, mulheres e armas”, explica Andreas Schedler, professor do Centro de Investigação e Docência Econômicas (CIDE) e autor de No Nevoeiro da Guerra: os cidadãos diante da violência do crime organizado.

Nos subúrbios, o narcotráfico atua como elevador social. Oferece o que o sistema nega. Mas exige o uso de armas. E ninguém escapa do impacto de um tiro. Um único assalto com revólver causa medo; dezenas de milhares, terror social. Na América Latina, entre um terço e a metade dos roubos são realizados com armas de fogo. Uma média que sobe para 78% no caso dos homicídios. No Brasil, Chile ou Argentina, mais de 60% dos presos reconhecem que tiveram sua primeira arma de fogo antes dos 18 anos. Isso é a insegurança.

Não há muitas barreiras para conter essa maré. A Europa e os Estados Unidos, às vezes, não entendem isso. A polícia, as procuradorias e o Estado são, em grandes zonas da América Latina, entes ineficazes, inexistentes ou estão penetrados pelo narcotráfico. Não totalmente, mas o suficiente para não dissuadir o crime.

A solução exige tempo. Ao redor dela, acumulam-se grandes palavras: educação, redistribuição, abordagens abrangentes. “Não há bala de prata e varia se os países têm uma taxa alta ou baixa de criminalidade, mas, sem dúvida, investimento social e redução da impunidade ajudam”, indica o professor Marcelo Bergman. “Há que ter cuidado com o populismo penal, a mão forte e a tolerância zero. Quem promete remédios em curto prazo não é crível. Mas tampouco tem que se resignar: o esforço social coletivo pode alcançar resultados drásticos em 5 ou 10 anos”, explica Schedler.

E enquanto avança, o crime continua ali. Os mais ricos sabem bem disso. Na América Latina, já há 50% a mais de seguranças privados que agentes de polícia. A vida tranquila existe apenas dentro de uma bolha. O lobo anda pelas ruas. Qualquer um pode ser a próxima vítima. Dá na mesma andar em um bom carro ou por uma rua respeitável. A violência pode aparecer na sua janela. Uma coronhada, dois olhos vermelhos e você terá que decidir. Baixar ou não o vidro.

Temer não tem coragem nem disposição para moralizar administração pública

A situação do país é desalentadora, não somente devido à gravíssima crise econômica e social, mas também em função da completa desmoralização do poder público. Em algum ponto fora da curva, o Brasil descarrilou dos trilhos da ética no trato da coisa pública. Embora estejamos em regime altamente democrático, com as instituições em funcionamento, o fato é que nos tornamos um país estranho, que funciona como uma ditadura vulgar, embora de vez em quando troque de presidente e de partido político dominante.

A deterioração começou no governo de Fernando Collor, um presidente que nascera em berço de ouro, mas tinha complexo de vira-latas e escancarou as importações, abrindo caminho à desindustrialização do país.

O presidente Itamar Franco era o contrário de Collor. Simples, modesto e trabalhador, fez da ética sua bandeira de luta, REequilibrou as finanças e entregou a seu sucessor um governo que tinha dívidas mínimas em relação do PIB e à arrecadação federal. Foi o melhor presidente desde Juscelino Kubitschek.


Quem causou os problemas atuais do país foi o deslumbrado FHC, que acreditava ser um novo Rei Sol. Cometeu grandes crimes de lesa-pátria, mas o principal deles foi a implantação do capitalismo sem risco, bancado pelas mais elevadas taxas de juros do mundo, que transformaram a dívida pública federal numa bola de neve. Até Itamar, a poupança era o investimento dos brasileiros; FHC criou os “rentistas”, os exploradores do capitalismo sem risco.

FHC foi sucedido por seu velho companheiro Lula da Silva, que seguiu estritamente a cartilha do neoliberalismo e ampliou a corrupção a níveis jamais imaginados. Os sindicalistas que empolgaram o poder rapidamente se tornaram novos ricos elitizados, transformando a administração pública na festa móvel imaginada por Ernest Hemingway. E a bomba estourou no colo de Dilma Rousseff, cuja incompetência era diretamente proporcional à sua arrogância. Entramos em parafuso.

O problema é que o presidente chama-se Michel Temer, que desde o ínicio é refém dos caciques do PMDB e se cercou de uma verdadeira quadrilha criminosa. Somenet agora está se libertando, mas ainda não conseguiu se livrar de Eliseu Padilha, que não larga a Casa Civil.

Temer tem a responsabilidade recuperar o país, mas é fraco, omisso, não sabe se impor. Para recuperar o país, é preciso haver união nacional. Temer sabe negociar com a presidente do Supremo, Sarney e FHC e impor uma solução para salvar Renan Calheiros, a pretexto de estar salvando a si próprio. Mas não tem coragem nem apetite para conduzir uma negociação capaz de salvar o Brasil.

O primeiro passo seria a moralização dos gastos públicos, fazendo um “downsizing” (enxugamento), como recomendam os americanos do Norte, especialistas em obviedades. Mas cadê disposição?

Todos sabem que chegou a hora de acabar com os gastos supérfluos. É preciso enxugar a máquina estatal, e isso passa pela extinção de todos os privilégios funcionais. Chega de penduricalhos salariais, tipo auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-educação, que fazem a festa das autoridades. Chega de carros chapa-branca, motoristas a postos, combustível e manutenção de graça. Chega de cartão-corporativo e de verbas de representação. Não há alternativa, vamos cair na real no Executivo, Legislativo e Judiciário, e nos três níveis – federal, estadual e municipal.

Mas como imaginar que Michel Temer assumiria essa patriótica missão, se ele próprio é um privilegiado, que recebe remunerações de três fontes diferentes? Ganha R$ 30 mil como procurador aposentado, mais R$ 30 mil como presidente da República e R$ 19 mil adicionais como ex-deputado federal. O total é de R$ 79 mil mensais, sem contar o décimo terceiro salário. E tem as despesas da família totalmente pagas pela Presidência da República, que ainda lhe dá direito a um cartão corporativo. Nada mal, não é mesmo.

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Fan Ho, from artemisdreaming & arsvitaest. “”:
Fan Ho

Audácia!

Na tribuna, (Georges Jacques) Danton. Do “Comitê de Salvação Pública” da Revolução Francesa. A pergunta foi feita: O que é preciso para vencer os inimigos da República? O orador respondeu, sem hesitar: Audácia, ainda audácia, sempre audácia! Vejo Renan como um velho Danton, no Brasil de hoje. Não por estar combatendo os inimigos da República. Longe disso. Muito longe. Nem por ter as reconhecidas qualidades do francês. Também longe disso. Apenas pelo exercício da tal audácia. Mais preocupado com a pele que com sua biografia. A democracia não merece afastar o presidente do Senado por decisão monocrática, sentenciou nosso Danton amorenado. Já eu, penso é que a democracia não merece um presidente de poder que seja réu.

Para dar certo, seu plano inacreditável, precisaria ter o apoio de oito homens fracos. Teve. Difícil acreditar que nem mesmo um único e solitário membro da mesa do Senado (inclusive dois suplentes) tenha tido a sensatez, ou a coragem, de ponderar não ser adequado afrontar o Poder Judiciário. Que correto, formalmente, seria receber a notificação do oficial de justiça e recorrer da decisão. Mas, todos correndo riscos na Lava Jato e outras operações, preferiram o corporativismo. Contra o interesse coletivo. Em grave desrespeito às regras da Democracia. Como se olhassem para Renan e dissessem para eles mesmos, envergonhados, Eu sou você amanhã.


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Imagino Lula sendo preso – caso provadas suas responsabilidades na ação em que é réu. Nesta e em outras que provavelmente virão, posto já ser indiciado em muitas. E dizendo que não aceita o julgamento. Ou não o acha justo. Vai ser uma festa. O assunto irá findar na ONU. Ou imagino a polícia, por qualquer razão, se recusando a cumprir um mandado – de prisão, de despejo, outro. Ou qualquer de nós deixando de pagar impostos por considerar que o governo os aplica mal. Não é assim que as democracias funcionam.

Nessa quarta, reuniu-se o pleno do Supremo. E decidiu evitar uma crise entre os poderes. Ontem, o oficial de justiça esperou em vão para cumprir suas obrigações. Há um homem, no Brasil, acima dele. E da justiça. Que pode escolher ser ou não citado. Hoje, revogou-se a liminar, trocaram-se os votos dados, entre mortos e feridos salvaram-se todos. E tudo voltou a ser como antes. Não foi, digamos com franqueza, um final à altura das tradições da casa. Mas segue a vida.

Danton – como Robespierre, Saint-Just e tantos mais –, acabou na guilhotina. Enquanto Renan escapou, rindo, vendo recompensada regiamente sua audácia. O que deve nos levar a reavaliar a comparação. Renan, pelo visto, não é Danton. É muito mais esperto. Muitíssimo. É (Joseph) Fouché, duque de Oranto.

Legalize-se o crime

O Supremo Tribunal Federal teve uma grande oportunidade de mostrar que a Justiça não pode ser afrontada ou permitir qualquer acordão ainda mais no santo nome dos milhões atingidos pelo roubo governamental, a improbidade administrativa e o deslavado foro privilegiado.

As togas se ajoelharam diante do cangaço político, que se lixou para mandado judicial da Corte e continuou presidente independente do julgamento do caso. Renan afrontou os juízes e levou um mero puxão de orelha.

Se havia alguma esperança, no país, de Justiça com maiúscula, pode-se dizer adeus. 

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O que esperar dos julgamentos no STF dos indiciados com foro privilegiado envolvidos na Lava Jato? Mais acordões para que, em nome do latinório, os criminosos sejam agraciados com meras reprimendas?

A Justiça brasileira não se desmoralizou com a decisão de quarta-feira. O Brasil é que ficou menor. De país passou a comunidade dominada pelo tráfico político ainda mais pernicioso do que o de drogas porque corrói as instituições.

Justiça de acordo não é justiça, assim como desconsiderar mandado judicial é crime. Em ambos, viceja o germe do desrespeito ao Estado, base da institucionalização do caos.

Os alcunhados Poderes, no país, demonstram apodrecimento que vai gerar ainda mais desprezo pela política e pela boa governança. O governo Temer age com temeridade para não ver seus projetos rejeitados ou fatiados numa sonhada salvação nacional. Se deixa nas mãos da gentalha que não hesitará em cobrar com juros e correção monetária a mãozinha. Um custo muito caro que será pago com mais sofrimento, senão com o silenciamento, do mesmo povo de quem se diz hoje defensor.

Luiz Gadelha

O país da obstrução da justiça social

Obstrução da Justiça dá cadeia. Ainda bem! Mas esse instrumento legal, infelizmente, não alcança outras formas perversas de obstrução que infelicitam a nação. Tem obstrução para todos os gostos ou, melhor, para todos os desgostos. A mais geral delas é a obstrução do desenvolvimento econômico, político e social do país, que patina na lama da corrupção. Não faltam parlamentares, administradores e militantes de esquerda ou de direita que trabalham, sem cessar, para obstruir, por má-fé ou ignorância, tudo o que possa ameaçar seus interesses materiais ou suas convicções ideológicas.

Há, também, obstrução por incompetência e gestão negligente da coisa pública. Basta lembrar a tragédia da barragem de Mariana, que, obstruída pelo excesso de rejeitos de minério, desobstruiu-se rio abaixo, lançando toneladas de lama sobre cidades, plantações, pequenos e grandes cursos d’água, fauna e flora, além de vilas litorâneas que tinham no turismo e na pesca suas únicas fontes de renda.

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Na verdade, estão obstruindo tudo, ao desfigurar as dez medidas contra a corrupção, ao propor regime de urgência para a aprovação da lei de abuso de autoridade, numa clara tentativa de obstruir os trabalhos da Lava Jato. Trata-se de verdadeiros atos de obstrução da justiça social, já que atacam os cofres públicos, obstruindo progressos na educação, na saúde, na infraestrutura, na segurança pública e na oferta de empregos e moradias.

A bem dizer, a mais do que centenária história da República não passa de uma história de obstrução das mudanças políticas e comportamentais numa sociedade, cujas crescentes transformações econômicas e sociais não mais admitem a tolerância com o arbítrio, o mandonismo e as práticas predatórias de apropriação dos recursos públicos e da riqueza nacional.

Obstrui-se, inclusive, o trânsito de nossas cidades, cuja expansão desordenada deve-se, em parte, ao suborno de agentes públicos municipais, estaduais e mesmo federais para infringir as leis de uso do solo urbano. Um exemplo disso é a tentativa, num claro ato de abuso de poder, de revogar resolução da agência responsável pela preservação do patrimônio histórico nacional, com o objetivo de erigir uma torre residencial em local proibido.

A obstrução está por todo lado. Obstruem-se recursos destinados a construção e reforma de ferrovias, hidrovias, barragens e rodovias. Estas últimas continuam obstruindo, anualmente, a vida de cerca de 50 mil brasileiros, que nelas se aventuram a trafegar. Afinal, a prolongada e cansativa crise política nacional não é senão o resultado da desproporcional penetração política alcançada pelas forças da obstrução frente às forças do bem que atuam dentro ou fora do Parlamento. O cidadão comum, que tem seu bem-estar, para não falar de sua felicidade, há tanto tempo obstruído, anda descrente da possibilidade de que nossas instituições políticas possam proporcionar-lhe algo além dos sentimentos de impotência e revolta dos dias atuais.