segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Este é o país que...

“Que país é esse?”, a gente não se cansa de perguntar em tom (pelo menos aparentemente) reflexivo, filosófico. Com se o simples ato de perguntar eliminasse qualquer obrigação ou responsabilidade em encontrar resposta. Como se colocasse autoproclamados filósofos em posição superior, pairando sobre a realidade, em estado de superioridade moral.

É pergunta para a qual não se espera resposta. Simplesmente faz parte de retórica perversa. Pensando bem, não existe nem mesmo razão perguntar. Encontrar respostas é simples. O difícil é aceitar a responsabilidade sobre elas. E agir para mudar.


Este é o país onde esforço e planejamento não são valorizados. O que vale mesmo é a capacidade de improvisação. Onde se glorifica a resposta a problemas que não deveriam ter existido através de métodos improvisados que, por sua vez, trazem soluções precárias condenadas a parir novos problemas que não deveriam ter existido.

Este é o país que investe mais na manutenção de privilégios desiguais que na formação dos jovens. Que envelhece rápido e não enriquece. Onde cada vez mais jovens não trabalham nem estudam. Que compromete o futuro para não encarar os problemas presentes.

É o país em onde os dramas e as tragédias foram se desenrolado em câmera-lenta, a vista de todos. Sem que o distinto público tivesse qualquer animo em interferir para mudar ou melhorar as regras do jogo.

Este é o país que não chegou onde está por acaso. Foi construindo seu próprio desastre. Alimentou suas angustias de mazelas inventadas escolhendo acreditar que empurrar com a barriga levaria a alguma solução aceitável.

Este é o país onde se desprezam as normas, as leis, a ética. Onde uns são mais iguais que os outros. Onde levar vantagem é norma. É o país tolerou desonestidade. E colheu corrupção.

Este é o país que aceitou a falácia de que a realidade pode ser transformada através de golpes de caneta cristalizando fraudes. Onde se acreditou que os pequenos desvios éticos e legais são aceitáveis baseados em um projeto que, juravam, trariam um bem comum que por ali nunca chegou.

Este é o país que construímos.

Falta combinar

Os meios de comunicação, no Brasil e numa porção de países do Primeiro Mundo, muito civilizados, prósperos e democráticos, estão com uma doença que pelo jeito não tem cura. Publicam notícias, comentários e “conteúdo” segundo uma tábua de mandamentos que não deixa nenhuma dúvida sobre o que está certo e o que está errado, o que é bom e o que é ruim, o que é permitido e o que deveria ser proibido – só que não combinam com o público se ele próprio, o público, está de acordo com isso tudo. Os comunicadores estão cada vez mais convencidos de que a sua maneira de ver o mundo é a melhor, não apenas para o mundo, mas para leitores, espectadores e ouvintes; não parecem ter nenhuma dúvida a respeito.

O resultado é que estão sendo cada vez menos representativos do público que imaginam representar. Dão informações que esse público não está interessado em receber e opiniões que não está disposto a compartilhar. Ensinam coisas que ele não quer aprender. Falam de valores que não são os seus – ou não necessariamente os seus. Torcem por causas que não são obrigatoriamente as suas. Elogiam uma série de comportamentos, condenam outros tantos, e em ambos os casos deixam uma advertência clara: é assim que nós, órgãos de comunicação, esperamos que vocês, público, se comportem. Só existem duas maneiras de avaliar as coisas neste mundo. Uma é a maneira errada. A outra é a nossa. Qual é a surpresa, então, em que a mídia esteja com tantos problemas?

Não é preciso, para ver o tamanho do problema, recorrer a casos extremos como a eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos. Depois de atacar a sua candidatura como o pior momento da humanidade desde a ­vinda da peste negra, a imprensa americana e a internacional têm certeza, agora, de que sua vitória nos levará de volta à Idade da Pedra. Deveria estar mais do que óbvio, se fosse assim mesmo, que só um débil mental votaria nesse homem. Mas é claro que não foi isso que aconteceu, como é claro que ninguém está em pânico só porque a imprensa diz que todo mundo deveria estar em pânico.

No Brasil de hoje, então, o descolamento entre meios de comunicação e público parece caminhar para o modo mais extremo. O que dizer quando nas últimas eleições para prefeito os vencedores nas duas maiores cidades do Brasil foram justo os dois candidatos mais detestados pela mídia? Estão operando lado a lado, aí, duas linguagens opostas – a dos jornalistas e a de dezenas de milhões de cidadãos comuns.
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Os exemplos se aplicam a um mundo de coisas. Os comunicadores, em sua maioria, são a favor da ocupação de escolas por grupos de organizações de estudantes, ou a veem com compreensão quase ilimitada; fazem um voto de confiança sem restrições no idealismo dos jovens e sua vontade de reformar o nosso ensino. São a favor da ocupação dos espaços públicos por marginais de todo tipo – acham que seu direito é maior que o direito do restante da população de utilizar em paz o mesmo espaço. São a favor de praticamente todo tipo de invasão (que chamam de “ocupação”), de lugar público ou privado; são contra a liberação desses locais pela polícia, mesmo com ordem judicial, e sua devolução aos legítimos donos; estão convencidos de que a polícia, sem exceção, age “com brutalidade”.

Há um critério rigoroso na escolha das palavras. A imprensa fala sempre em “manifestantes”, “militantes”, “estudantes”, “desabrigados” e até em “camponeses” – nunca, em nenhum caso, são “invasores”. Não fala mais “favela”, palavra hoje condenada como preconceituosa, elitizante e fascista; tem de ser “comunidade”. A imprensa brasileira continua falando do golpe militar de 1964 como se fosse algo que aconteceu ontem, e alerta para os “perigos” de se voltar, a qualquer momento, à mesma situação; esquece que só tinham chegado à maioridade, em 1964, pessoas que têm hoje pelo menos 70 anos de idade.

Nossa mídia dá a entender, cada vez mais, que ter um automóvel é uma falha moral – e que o importante, hoje, não é a propriedade, e sim o uso do veículo. Jamais lhe ocorre que para milhões de brasileiros o carro é um instrumento de liberdade, e sua propriedade um sonho individual importante. Ao contrário da imprensa, a população não acha que o problema do Brasil é ter gente de mais na cadeia; acha que é ter gente de menos. Não acha que o principal problema da segurança pública seja a polícia – acha que são os bandidos. Não acha que a fé evangélica seja uma ameaça.

Dá para escrever um “Manual de Redação” inteirinho com essas regras. Só que não são as regras do público.

Quem são os verdadeiros "vândalos"?

[Peço licença para reproduzir, sem maiores floreios e com ligeiríssimas alterações, um texto meu que está circulando aí pelas redes sociais]
A mídia faz uma cruzada contra os “vândalos”. Apresenta-os como a encarnação da destruição. Coitados. Será que têm poder para tanto? De modo algum.

A paisagem é a seguinte. Carros e ônibus incendiando, fogos de artifício explodindo, um garoto atirando uma pedra na vidraça de uma loja ou de uma agência bancária. E aí fica todo mundo horrorizado, achando que a barbárie chegou de vez. Mas me pergunto se é mesmo esta a medida das coisas. E é claro que não.

Porque vejo os noticiários diariamente – e eles me fazem ver as pequeninas ações dos “vândalos” como coisas definitivamente menores, quase insignificantes.

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Os filhos da puta que dominam o país devastam a Amazônia (o desmatamento deste ano é o maior desde 2008). O governo da Bahia entrega uma fatia do litoral a uma fábrica chinesa, condenando a praia. Empresários seguem destruindo vales e rios – e emporcalhando o ar que respiramos.

E “vândalo” é o jovem que joga uma pedra na fachada de uma empresa? “Vândalo” é o estudante que quebra a janela de uma loja ou de um palácio – e não governadores e prefeitos que fazem o patrimônio histórico de nossas cidades cair aos pedaços?

Vamos parar com isso. Queimar um ônibus não é nada, em comparação com as matas incendiadas pelo agronegócio. Um banco tem como repor facilmente suas frentes envidraçadas. E nós – como vamos repor a Mata Atlântica?

A baía de Guanabara foi destruída sem pena por empresários e governantes, virando um vasto poço de merda. E “vândalo” é o black block que quebra uma boutique de artigos de surf? Mais: os empresários não sairiam por aí destruindo e saqueando se não tivessem o beneplácito dos governos.

Logo, sejamos lógicos: vândalos – mesmo – são nossos empresários, políticos e governantes.

E o vandalismo maior, neste momento, está no Congresso. Aquele bando de escrotos não hesita em saquear e agredir o povo brasileiro. Em comprometer a saúde de todos. Em bater nossas carteiras à luz do dia. Etc. E vândalo é o rapaz que arranca uma placa de sinalização?

Me desculpem: vândalo é Renan Calheiros. Vândalos são os deputados cínicos que, direta ou indiretamente, destroem escolas e hospitais públicos, para encher o próprio bolso e a própria pança.

Vândalos são os canalhas do Congresso Nacional. São os sacanas que estão destruindo não simplesmente um automóvel ou uma vitrine – mas o país.

'Enquanto o Brasil chorava, eles riam de nós'

Em meio à dureza dos slogans contra políticos em protestos públicos realizados em muitas cidades do Brasil, destaca-se o de um adolescente, de São Paulo, que dizia: "Eu quero um Brasil limpo para todos".

Ele resumiu, com ternura, o que o Brasil exige neste momento da classe política: uma luta inequívoca contra a corrupção.

O caráter pacífico e até festivo das manifestações não impediu que as mensagens enviadas para a classe política fossem duras como pedras.

Nos últimos dias, o Congresso aprovou, desfigurando, de madrugada e de surpresa, a lei popular contra a corrupção que a sociedade tinha confirmado com mais de 2 milhões de assinaturas.

Era a isso que se referia o cartaz nas mãos de uma jovem em São Paulo, escrito à mão: "Enquanto o Brasil chorava, eles riam de nós". O Brasil estava de luto naquele dia devido à tragédia dos jogadores de futebol da Chapecoense, mortos no acidente de avião.

Mensagens criativas e simbólicas. Em Brasília, às portas do Congresso, foi colocado um caixão preto, sobre uma bandeira gigante do Brasil. Sobre ele estava escrito: "Corrupção".

O gesto pode ter várias leituras, como a de que a corrupção estava matando o Brasil, ou a de que o país a condenara e, com ela, os políticos que a apoiavam nas sombras do poder.

Em Goiás, em ritual também de alta voltagem simbólica, os manifestantes foram colocando, em um cesto de lixo, as fotografias dos políticos acusados de corrupção.

Se eram duras as palavras escritas, não eram menos as pronunciadas pelos microfones — houve quem gritasse “canalhas, canalhas” — referindo-se sempre aos políticos corruptos.

Poucos apostavam que uma manifestação contra algo tão abstrato como a corrupção pudesse arrastar novamente muitas pessoas para a rua. Alguém chegou a ironizar: "Por que não fazer uma manifestação pedindo que ‘as pessoas se amem’?”

As famílias saíram com seus filhos, alguns com carrinhos de bebê, outros de muletas ou de cadeiras de rodas e os jovens com seus skates. Muitos jovens.

De longe até poderia parecer uma festa. De perto, senti a força da indignação que reina no país contra a classe política.

Os personagens excomungados, como em manifestações anteriores, mudaram de nome. Em vez de "Fora Dilma", "Fora Lula" ou "Fora PT", desta vez os cartazes pediam a saída dos personagens do novo governo, como o presidente do Senado, Renan Calheiros; Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, e até mesmo "Fora Temer", o novo presidente da República.

Um único personagem, convertido em herói nacional, resistiu firme em todas as manifestações no apreço que recebe da sociedade: o juiz Moro, artífice da Lava Jato. "Somos todos Sergio Moro", "Somos todos Lava Jato", foram, sem dúvida, os cartazes mais numerosos.

"Demorou, mas o Brasil acordou," gritou alguém do alto de um dos trios elétricos, no Rio de Janeiro.

E esse despertar contra a corrupção é o que representa a maior esperança de um Brasil sobre o qual o falecido escritor João Ubaldo Ribeiro, dotado de grande senso de humor, dizia que "o sonho de todos os brasileiros é ter um corrupto na família", que lhes resolvesse todos os problemas.

Hoje, o Brasil, apenas quatro anos mais tarde, é outro: mais acordado, mais consciente da difícil situação enfrentada pelo país e mais preocupado com o futuro de seus jovens, os mais atingidos pelo desemprego.

Enquanto a televisão informava sobre as manifestações, interrompeu para anunciar a morte de Ferreira Gullar, o maior poeta brasileiro de tempos modernos, que dizia que "a arte existe porque a vida não basta".

A demonstração de criatividade festiva, que foi vista em manifestações pacíficas contra a corrupção, revela que o Brasil não perdeu, apesar de todos os sofrimentos, sua alegria de viver.

Imagem do Dia

Eze - a tiny village in Provence, and one of the gems in southern France:
A vila Eze, na Provence (França)

Quase imortais - ou quase mortos

No passado dia 29 de novembro festejou-se em Itália o aniversário de Emma Morano. Na ocasião foi lançada uma biografia da aniversariante. Mas, afinal, o que fez ela? Viveu. Viveu muito tempo. Aos 117 anos, é a última pessoa no mundo que ainda nos liga diretamente ao século XIX. Emma passeou-se sob o mesmo sol que iluminou, em diferentes geografias, Eça de Queirós, Machado de Assis, a Princesa Isabel ou Buffalo Bill.

Emma Morano sustentou-se sem ajuda até os 115 anos. Segundo ela, o segredo por detrás de uma vida tão longa está na boa e velha grappa, que bebe regularmente, nos três ovos crus que come todos os dias, e no soberano desprezo com que olha para frutas e legumes. Os médicos, é claro, estão muito mais inclinados a pensar que Emma beneficiou de simples vantagem genética, além de alguma ajuda da moderna medicina.

Se tivéssemos nascido há mil anos não poderíamos esperar envelhecer. O mais provável seria morrermos ainda crianças, vítimas de fome ou de uma infinidade de doenças que, entretanto, já vencemos. Se conseguíssemos sobreviver a esses primeiros anos, seríamos certamente mortos, um pouco à frente, de forma muitíssimo violenta. Raras pessoas ultrapassavam então os 25 anos. A humanidade vivia em permanente estado de ódio e conflito.

Desde então muitas doenças foram vencidas, as guerras diminuíram, e a esperança de vida mais do que triplicou na maior parte dos países do mundo. Quando eu nasci, a notícia de que alguém completara 100 anos era manchete nos jornais. Hoje, para ser notícia, temos de nos esforçar um pouco mais, e alcançar pelo menos os 117.

Reaper:
Há quem pense que, por mais que a ciência progrida, nunca será possível estender a vida para além dos cento e poucos anos. Contudo, são cada vez em maior número os cientistas que investigam e defendem a possibilidade de a alargar indefinidamente. Não se trata de viver para sempre. Trata-se de viver sem prazo de validade e, já agora, sem o horror da decrepitude. Um desses acadêmicos é Michio Kaku, físico americano de origem japonesa, autor de vários livros de divulgação científica. Num dos seus livros, recentemente publicado no Brasil, “O futuro da mente: A busca científica para entender, aprimorar e potencializar a mente” (Editora Rocco), Michio diverte-se a imaginar formas de prolongar a vida humana. Uma das possibilidades é transferir toda a informação de um cérebro para um computador. A consciência dessa pessoa ficará preservada, por tempo indefinido, num lugar asséptico e remoto, muito semelhante àquilo que os crentes costumam chamar paraíso, inferno ou purgatório (dependendo das memórias e dos remorsos de cada um). Mais tarde, seria possível transferir toda essa informação para um corpo mecânico, ou até orgânico, e a pessoa voltaria a interagir normalmente com o mundo físico e os restantes seres vivos.

Segundo Michio Kaku isso, ou algo muito semelhante a isso, irá sem dúvida acontecer, na medida em que não ofende nenhuma lei da física. A questão, segundo ele, não é se irá acontecer, mas quando irá acontecer, e isso depende sobretudo da potência dos computadores.

Em 1949, a revista “Popular Mechanics” publicou um artigo no qual previa que “no futuro, os computadores não pesarão mais do que uma tonelada e meia”. Muita gente, lendo aquilo, achou a previsão incrivelmente otimista.

Dezesseis anos depois, Gordon Moore fez uma previsão que se revelou muito mais acertada do que a anterior e se tornou famosa com o nome equivocado de Lei de Moore: “a velocidade ou capacidade de processamento dos computadores tende a duplicar a cada dois anos”. Até aqui tem sido assim. Se essa previsão se mantiver, então o admirável mundo novo sonhado por Michio Kaku pode estar mesmo ao virar da esquina.

O triste paradoxo é que nunca estivemos tão perto da “imortalidade”, mas também nunca estivemos também tão próximos do grande final. É verdade que o número de conflitos armados no mundo diminuiu muito, em especial nas últimas décadas. O arsenal nuclear, porém, não diminuiu. EUA, Rússia, Reino Unido, China e França possuem armas nucleares. Suspeita-se que Israel também. O Irã está a tentar produzi-las. Não bastasse Putin, e restantes colegas de loucura, em breve o botão do fim do mundo estará também ao alcance de Donald Trump e tudo leva a crer que, dentro de pouco tempo, igualmente da senhora Le Pen. Não me parece um panorama nada tranquilizador. Ao perigo nuclear soma-se ainda o desastre ambiental.

A ciência que nos pode dar a “imortalidade” é a mesma capaz de nos destruir a todos. Talvez seja melhor investir mais em educação cívica, ética e ambiental e menos no desenvolvimento tecnológico — enquanto isso, sempre temos a cachaça e os ovos crus.

José Eduardo Agualusa

Eles sabem muito bem o que fazem

Dizem dos políticos que eles ignoram a realidade. Talvez porque seja mais cômodo ignorá-la. Talvez porque passem muito do seu tempo em Brasília, distante das pressões dos grandes centros urbanos. Talvez porque sejam de fato uns sujeitos insensíveis.

Não é nada disso. Levando-se em conta a maioria deles, não é. O deputado Ulysses Guimarães, o maior nome da oposição nos anos cruéis da ditadura militar de 64, dizia que o mais bobo dos parlamentares era capaz de consertar relógio usando luvas de boxe.

Os políticos conhecem muito bem a realidade em que vivem – os que não conhecem duram pouco. E é por conhecê-la tão bem que fazem determinadas coisas capazes de chocar o cidadão comum. Ou o analista acadêmico mais sofisticado.

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Na semana passada, a Câmara dos Deputados desfigurou o pacote de medidas contra a corrupção apresentado pelo Ministério Público e subscrito por dois milhões e meio de brasileiros. No dia seguinte, Renan Calheiros tentou empurrá-lo goela baixo dos senadores.

Foi uma demonstração de desconhecimento da realidade dada pelos deputados e por Renan? Não. Pelo contrário. Dada à realidade do cerco da Lava-Jato aos que roubaram ou deixaram roubar, eles fizeram o que certamente deveria se esperar deles.

Agiram em defesa dos seus mandatos, da sua sobrevivência. Que alma ingênua poderia imaginar que eles se converteriam de repente à decência e se deixariam imolar nas chamas atiçadas por procuradores, juízes e uma opinião pública indignada?

Peça a um político qualquer coisa – nem tudo ele lhe dará. Mas não peça que se suicide. O ambiente no Congresso, especialmente ali, mas não só ali, é de pavor à medida que o apocalipse se aproxima com as delações da Odebrecht e de outras construtoras.

Deputados, senadores, governadores e ex-governadores, ministros e ex-ministros de governos passados e do atual, sabem onde os calos lhe apertam. E procuram uma saída de emergência. Por ora, não encontraram nenhuma. Mas seguirão procurando.

Meirelles terá sido apenas mais um?

Por enquanto é missão impossível saber de onde começou o ataque, mas a verdade é que o ministro Henrique Meirelles encontra-se sob fogo batido. Poderá render-se em poucos dias. Serão os tucanos? O próprio presidente Temer? O tal centrão de deputados desimportantes? Ou ministros com trânsito livre no palácio do Planalto?

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A verdade é que começou a temporada de caça ao ministro da Fazenda, como tantas vezes tem acontecido contra os antes campeões da recuperação econômica, desde os tempos de Sarney, Fernando Collor, Lula e Dilma. Salvou-se apenas Fernando Henrique, que resistiu oito anos com Pedro Malan. De início tidos como solução para a volta à normalidade, exaltados e cortejados, acabaram saindo pelo ralo ministros de todos os matizes e tendências. Escusados de ser referidos nominalmente, pela injustiça que seria apontá-los, eles passaram da exaltação à execração em pouco tempo.

Agora chegou a vez de Meirelles, seis meses depois de ser saudado como esperança do governo e do mercado de sairmos do sufoco. A hipótese de que Armínio Fraga está convocado para ajudar a combater a crise não deixa dúvidas, pois foi Temer quem anunciou. É claro que o atual ministro pedirá para sair assim que o outro estiver entrando.

Trata-se de desespero e injustiça jogar sobre os ombros do ex-presidente do Banco de Boston e do Banco Central o ônus do fracasso da retomada do crescimento. É o próprio ministério que sabota as iniciativas de contenção que ele pretendia estabelecer. Para não falar do presidente da República, de seu turno pressionado para fazer bondades em vez das pretensas maldades de Meirelles. A corda sempre arrebenta do lado mais fraco, no caso, o ministro da Fazenda e não o chefe do governo.

A conclusão dessa nova escaramuça na Esplanada dos Ministérios é de que nenhuma nova tentativa de restabelecer o crescimento econômico dará certo se não vier precedida de medidas de contenção e de sacrifício. Se Michel insistir em continuar bonzinho, quebrará a cara. Henrique Meirelles terá sido apenas mais um.

Marketing do arrependimento

“Desculpe, a Odebrecht errou”. Assim começa o anúncio de duas páginas que a maior empreiteira do país publicou nos jornais de sexta-feira (2). Na propaganda, a empresa “reconhece que participou de práticas impróprias”.

“Não importa se cedemos a pressões externas”, prossegue o texto, insinuando que os empresários corruptores foram forçados a financiar os políticos corruptos. “Foi um grande erro, uma violação dos nossos próprios princípios, uma agressão a valores consagrados de honestidade e ética”, continua o comunicado.

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O discurso pode sugerir arrependimento, mas é apenas marketing. Há um ano e meio, a mesma empresa manifestava “indignação com as ordens de prisão de cinco de seus executivos”. “A Odebrecht nega ter participado de qualquer cartel”, dizia a peça publicitária de junho de 2015.

Entre as duas propagandas, publicadas em formato idêntico, o que mudou foi o contexto. A construtora esperava se safar de bico calado, mas foi atropelada por um caminhão de provas e teve que negociar um acordo de delação com a Lava Jato.

As investigações revelaram que a empresa mantinha um departamento exclusivo para o pagamento de propina. Suas planilhas ligam valores milionários a mais de 300 políticos de todos os grandes partidos.

Um pedido de desculpas pode ser melhor do que nenhum, mas seria melhor se a Odebrecht, em vez de posar de Madalena arrependida, fosse direto ao ponto. Num comunicado objetivo, poderia dizer quem subornou, quanto pagou e que obras fraudou, embolsando dinheiro público.

O anúncio desta sexta-feira ainda ilude os leitores ao sugerir que os malfeitos recentes destoaram do histórico de “princípios” da empresa. Velha freguesa do noticiário de corrupção, a Odebrecht deve sua força à ditadura militar.

Apoiada pelo regime, saltou do 19º lugar para o topo do ranking do setor. Numa curiosa coincidência, a escalada começou com a construção do edifício-sede da Petrobras.

Paisagem brasileira

Vista da Praia de Flechas - Niterói  (1884), Hipólito Caron 

Movimentos não caem na cilada do 'Fora Temer'

Em muitas áreas, houve, sim, certa frustração com os protestos desde domingo. A expectativa de muitos, especialmente na imprensa, era de que “a classe média que derrubou Dilma” voltasse, agora, suas baterias contra o presidente Michel Temer. O objetivo de muitos é que esse fosse um primeiro ato a indicar uma fratura na base social que apoiou a transição segundo o que estabelece a Constituição.

Felizmente, os principais movimentos que organizaram o protesto não caíram na cilada. Essa era a torcida da esquerda, que, se apareceu, esteve camuflada. Preferiu não se meter no evento dos “coxinhas”. Afinal, dispõe de seus próprios meios e métodos para se fazer ouvir. De todo modo, é evidente que não vê com maus olhos um protesto de rua que têm como alvos os políticos.

E por que não?

Porque o governo Temer só pode entregar um país substancialmente diferente daquele que herdou se conseguir fazer a reforma da Previdência, cuja emenda será apresentada ao Congresso ainda neste ano. É evidente que, com a crispação em curso e com os políticos acuados, não encontraremos muitos deputados e senadores dispostos a aderir às reformas. Em política, milagres não acontecem. Já os desastres…

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O presidente saudou nas redes sociais o comportamento civilizado dos manifestantes. Sim, também desta feita, embora com uma pauta substancialmente diferente daquela que levou milhões às ruas, eram pessoas de boa-fé a protestar, enfaradas, e com razão, do que se vê em Brasília e em toda parte.

Em muitas áreas, inclusive da imprensa, o que se queria era ouvir o eco “Fora Temer”. Analistas e colunistas os mais variados tentaram e tentam ainda jogar no colo do governo federal tanto a anistia que nunca houve como o que se chama de desfiguração das tais “Dez Medidas”.

Não há a menor evidência desse comprometimento. Antes Executivo e Legislativo trabalhassem assim de forma tão coordenada. Fosse assim, essa parceria também poderia valer para as medidas virtuosas. A verdade é que não é assim. O Congresso, o que não é anormal nas democracias, tem a sua própria agenda.

Nos dias que correm, o Congresso sente-se acuado pelo Ministério Público Federal. E está mesmo. E não apenas por bons motivos, diga-se. Quando um ente do Estado elege o Poder Legislativo como a fonte original de todos os desatinos da República e passa a se mover como se dispusesse de um mandato divino para dizer quem vive e quem morre, é claro que a reação é esperada, vira parte do jogo.

Essa guerra precisa acabar. E a única maneira de isso acontecer é cada uma dos entes voltar a seu leito, atendo-se a suas funções institucionais. Ou caminharemos para o pior dos mundos.

Voltarei, é certo, a esse assunto. Ainda que discorde da pauta que foi às ruas — e discordo, sim, porque a Lava-Jato não corre risco nenhum —, louve-se a sensibilidade dos movimentos de rua que não cederam à pressão mais do que indiscreta por associar a repulsa a eventuais manobras do Congresso ao “Fora Temer”.

Não se tratou, em suma, como queriam alguns, de um ato contra o governo.

Tanto melhor.

Asfalto intima Temer a optar: ética ou aliados?

O brasileiro voltou às ruas neste domingo. Foi a primeira grande manifestação desde o impeachment de Dilma Rousseff. O asfalto roncou a favor da Lava Jato e contra os políticos que cruzam o caminho da investigação com o propósito de “estancar a sangria”. O principal alvo foi Renan Calheiros. De quebra, alvejou-se Rodrigo Maia. Mais importante: concentrados no Congresso, os descontentes sinalizaram que podem cruzar a Praça dos Três Poderes a qualquer momento para encarar o Palácio do Planalto. Michel Temer foi, por assim dizer, informado do seguinte: se quiser fazer os brasileiros de bobos, não encontrará material.

O governo de Michel Temer equilibra-se em cima de um paradoxo. Promete consertar a economia. Mas busca a responsabilidade fiscal com o velho método de sempre: o fisiologi$mo. Preservou e até ampliou os espaços que a clientela da Lava Jato ocupava sob Lula e Dilma. Temer mantém a cabeça nas reformas e os pés na lama. Para ele, o inaceitável é apenas o outro nome de pragmatismo. Seus operadores alegam que, se o presidente não jogar esse jogo, não governa. E o asfalto responde: 1) o Brasil é outro. 2) A Lava Jato, que já dissolveu a presidência de Dilma e a credibilidade de Lula, bem pode carbonizar Temer.

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Há uma semana, Temer dividiu a bancada com Renan e Maia numa entrevista oportunista. Duas semanas depois de dizer que não se meteria na decisão do Congresso sobre a anistia do crime de caixa dois, o presidente informou que vetaria a esperteza caso o Congresso se atrevesse a aprová-la. Dias depois, descobriu-se que há males que vêm para pior. De madrugada, a Câmara desossou o pacote anticorrupção e injetou nele a vingança travestida de controle do “abuso de poder” de juízes e procuradores. Na sequência, Renan tentou empurrar goela abaixo do plenário do Senado o pacote que os deputados desfiguraram.

É preciso “ouvir a voz das ruas”, afirmou Temer no domingo passado. E agora: ''A força e a vitalidade de nossa democracia foram demonstradas mais uma vez, neste domingo, nas manifestações ocorridas em diversas cidades do país”, anotou o Planalto em nota oficial. “Milhares de cidadãos expressaram suas ideias de forma pacífica e ordeira. Esse comportamento exemplar demonstra o respeito cívico que fortalece ainda mais nossas instituições. É preciso que os Poderes da República estejam sempre atentos às reivindicações da população brasileira.''

O teor da nota revela que a ficha de Temer ainda não caiu. Hoje, os principais aliados do presidente estão na cadeia (Cunha), no banco dos réus (Renan), nos inquéritos do STF (Jucá), ou nas delações da Odebrecht (Padilha e Moreira). As ruas intimam o presidente a fazer uma opção: a ética ou os aliados? Diante de um cenário assim, faltou um par de frases à nota da Presidência da República. Algo assim: “Michel Temer tranquiliza a sociedade brasileira. Assegura que vetará qualquer proposta que lhe chegue do Congresso com providências que ameacem o bom andamento da Operação Lava Jato.”

Apesar dos acontecimentos recentes, humanidade está cada vez melhor

Tudo vai de mal a pior. Não faltam motivos neste ano para sustentar essa crença, sobretudo depois que as eleições britânicas e norte-americanas revelaram o que parece ser um padrão, expresso na emergência eleitoral de uma direita regressiva e xenofóbica. Já houve outros surtos de resistência à globalização capitalista; os atentados de 11 de setembro de 2001 foram o epicentro do mais recente.

O que parece novo, desta vez, é que a reação não provém de núcleos externos ao sistema e incompatíveis com ele, mas de todo um contingente interno que se sente alijado pelo progresso. Não é possível antecipar se o atual surto representa uma onda passageira ou o prenúncio de um futuro tenebroso e distópico.

Tomados, porém, numa outra escala cronológica, que se mede em séculos e décadas, os dados disponíveis atestam uma melhoria exponencial nas condições materiais da humanidade. O processo começou há três ou quatro séculos, com o surgimento simultâneo da ciência e do capitalismo modernos, que urbanizaram e industrializaram o mundo.

Num livro imenso e persuasivo, "Os Anjos Bons da Nossa Natureza" (Companhia das Letras, 2013), o psicólogo evolutivo Steven Pinker havia demonstrado como a violência vem se reduzindo nos últimos séculos, e despencou na segunda metade do século 20. No ano de 2002, por exemplo, mais pessoas morreram por suicídio (873 mil) do que a soma de mortos em conflitos armados, crimes comuns e atentados (741 mil).

"Progress" (Oneworld Publications, 2016), do pesquisador sueco Johan Norberg, mostra que evolução parecida aconteceu sob diversos ângulos mensuráveis. O livro não traz novidades, mas compila uma série impressionante de estimativas esparsas. Desde 1800, por exemplo, embora a população tenha aumentado 7,5 vezes, a riqueza per capita se multiplicou por dez.

Não se trata de fantasia aritmética. A subnutrição, que afetava metade das pessoas em 1945, hoje atinge pouco mais de 10%. Em 1980, 25% tinha acesso a rede sanitária; hoje são mais de 60%. O índice de pobreza absoluta, em que sobreviviam 44% da população em 1981, caiu em 2015 para 10%. A expectativa de vida, estagnada em 30 anos durante séculos, chegou a 50 anos na década de 1960 e hoje está em 71.

As calamidades que nos acometem ou ameaçam são subproduto do próprio progresso, refletido na exaustão de recursos, no adensamento maníaco das metrópoles e na superpopulação, que deve escalar dos atuais 7,4 bilhões até passar de 11 bilhões no final do século, quando se estima que a universalização dos padrões de classe média a faça refluir.

Àquelas melhoras se deve acrescentar que a escravidão está quase extinta, os direitos das minorias são reconhecidos em número crescente de países, pessoas com deficiência têm mais apoio logístico, há menos ditaduras. Claro que essa evolução vale pouco para a parcela substancial ainda excluída dela, e não estanca a impaciência com a demora em erradicar de vez, se não a infelicidade, ao menos a miséria.

Impaciência que não é compartilhada pelo historiador israelense Yuval Noah Harari, para quem o avanço científico está se acelerando de tal modo que no horizonte de duas ou três gerações a espécie terá se libertado não só da escassez e da violência, mas da própria morte, no sentido de a reprogramação genética e a fusão entre humano e máquina virem a propiciar longevidade indefinida.

Harari é um historiador de longos períodos com talento extraordinário para ver a floresta mais do que as árvores. Como todo divulgador inspirado, comete generalizações e simplificações brutais. Sua inventividade vai além dos vislumbres sarcásticos de sua prosa (sobre redes sociais, por exemplo: se lhe dão algo de graça, provavelmente o produto é você).

É autor de dois livros de enorme ambição explicativa, "Sapiens - Uma Breve História da Humanidade" (L&PM, 2015) e "Homo Deus - Uma Breve História do Amanhã" (Companhia das Letras, 2016), o segundo talvez menos interessante que o primeiro ou redundante demais com ele, ambos dilatados até o tamanho requerido pelo consumidor americano, que gosta de livros como baldes de pipoca, bem volumosos.

Seu forte é abordar linguagem, capitalismo, democracia etc. como sistemas de crença religiosa, fantasias compartilhadas numa infinidade de conexões intersubjetivas que multiplicam a capacidade prática do conjunto. Como todo profeta, porém, Harari mantém-se ambíguo, contemplando um cenário de ficção científica em que a humanidade se dissolve no oceano cósmico dos algoritmos, o que pode ser tanto aterrador como uma ótima ideia.