quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A jagunçada do Senado

Não entendi. O Poder Legislativo Federal, a mando de seu maioral, autor do projeto de lei contra o abuso de autoridade, abusando de sua autoridade para obstruir a Justiça promovida pelo Ministério Público Federal e o próprio Poder Judiciário? Caberia agora que outra atitude ao Ministério Público Federal a não ser denunciar o morubixaba ao STF, junto com a Polícia Legislativa e os senadores que a privatizaram, por desvio de função?

Mas o melhor mesmo, em tempos de redução de gastos inúteis para os cidadãos pagadores de impostos, seria que algum nobre senador propusesse tão simplesmente extinguir a Polícia Legislativa. E aproveitasse a iniciativa para acabar também com a Polícia Judiciária, pois se são órgãos de Estado, que solicitem os serviços oficiais da Polícia Federal. Ou seria mesmo razoável que cada poder de Estado tenha a sua própria polícia?

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Já pensaram se a moda pega? De repente, o Judiciário pode querer ter uma chancelaria para chamar de sua. Ou quem sabe um serviço de saúde exclusivo, para não depender do Executivo. Ou mesmo uma escola de Ciências Jurídicas melhor do que os cursos de Direito dos simples mortais. Ou será que já tem e eu, cidadão comum, ignorante e menos igual do que os doutos magistrados, é que não sei de nada?

Sobre o Legislativo Federal, de nível bem mais baixo, uma vez que são meros eleitos, e não concursados, este eu sei que, além de polícia particular, tem planos de aposentadoria e de saúde vitalícios, além de frota de automóveis, passagens aéreas e uma verdadeira administradora imobiliária de centenas de apartamentos e casas “funcionais”. Para não falar que noutro dia estavam para lançar a maquete de um shopping a ser construído num puxadinho de um de seus anexos. Ou será que tomei um chá alucinógeno e estou, na verdade, a assistir a uma peça de Ionesco, o dramaturgo do absurdo?

Já comentei aqui o mal maior de nossa cultura política afeita à doença barroquista da desrazão, disfunção e desproporção. Coisas do tipo de um Poder Executivo que transborda de sua função de executar o Orçamento votado pelo Legislativo e a sentença prolatada do Judiciário, brincando de legislar por decretos e arbitrar por autarquias. Ou de um Legislativo que invade a competência de julgar do Poder Judiciário, como no caso de comissões de inquérito ou mesmo de tribunais de contas, que deveriam ser, na verdade, funções do Ministério Público (de Contas). Judiciário que, por sua vez, invade a competência legislativa quando firma jurisprudência em matéria política no vácuo do Legislativo. E ambos sempre caindo na tentação executiva, como no caso em tela de se armarem de polícias privativas.

Como na mais nefasta tentação totalitária do Poder Executivo que extrapola sua função de se limitar a executar as deliberações do Legislativo e do Judiciário e, na incompetência de regular os mercados por agências cuja autonomia deveria garantir, acaba por tentar suprimir os mercados, criando centenas de empresas estatais monopolistas, ineficientes e agentes de corrupção. Enfim, perpetuamos nossa tradição barroquista de torcer, retorcer e distorcer o sentido das coisas, como na figura da fita de Moebius, onde a face do verso se junta à face do anverso e não sabemos mais o que difere o ser do parecer.

Jorge Maranhão 

Erros e umbigos

As zonas eleitorais nem tinham fechado ainda as suas portas no domingo, e a militância do PSOL já estava percorrendo as redes sociais atrás de culpados pela derrota do seu candidato. Eleitores que declararam abertamente que iam anular o voto, e que já vinham sendo patrulhados desde o início do segundo turno, foram hostilizados e ofendidos. Os justiceiros ainda se saíram com uma pérola inédita:

— Quem anula voto não tem o direito de reclamar depois!

Como se, numa democracia, todo cidadão, independentemente do seu voto, não tivesse o direito (eu diria até o dever, a obrigação mesmo) de reclamar dos seus governantes. Não sei se essa teoria bizarra vale para Porto Alegre, onde o PSOL criou até jingle para promover o voto nulo, mas ela deu panos para as mangas no Rio.

Defendi na minha TL do Facebook a universalidade do direito à reclamação, e uma leitora me advertiu, naturalmente com todo o carinho:

— Você podia ter um pouco de cuidado para não incitar mais o ódio dessa gente que elegeu Crivella.

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E aí chegamos ao cerne da questão, e àquele que talvez seja o maior problema não só do PSOL, mas de toda a esquerda brasileira: a insuportável superioridade moral com que olha para os demais, para “essa gente” que não vota na esquerda — e que calha de ser, nesse momento, a vasta maioria do país. Como se fazer ouvir, como dar o seu recado se, de cara, já desqualifica o interlocutor? E como entender o que está acontecendo de errado se interpreta a mínima crítica como incitação ao ódio?

É bonito um candidato dizer que não pretende cuidar das pessoas, mas governar ao seu lado. Só que é preciso traduzir isso em gestos, e em respeito às opiniões divergentes. Não foi só por causa da corrupção master do PT que o eleitorado rejeitou a esquerda. Foi também, entre outras coisas, por causa do seu autoritarismo, e da sua insistência em assumir o monopólio das boas intenções.

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Li a suposta mea culpa do Freixo na ótima entrevista de Marco Grillo e de Miguel Caballero publicada na edição de terça-feira do jornal. Ele diz que é hora de autocrítica e de entender os erros — mas não dá um passo nessa direção. A grande falha do PSOL na primeira semana do segundo turno teria sido, a seu ver, não reagir à barragem de insultos e mentiras propagados pela campanha de Crivella; já o famigerado discurso da Lapa, aquele em que “A cidade é nossa!” se juntou ao “Fora Temer!”, não teria, na sua opinião, afastado ninguém.

Aquele discurso foi, porém, um divisor de águas. Os eleitores de que Freixo precisava para derrotar Crivella não acham que o impeachment foi golpe, querem que o governo tenha um mínimo de estabilidade para que o país volte a crescer, e sentiram-se insultados com a postura da militância. É perturbador que um político não perceba isso.

Esse equívoco de percepção permeou, aliás, a campanha inteira. Freixo só falou aos convertidos, que, por sua vez, só conseguiram criar um clima de empolgação e de confiança entre si mesmos. A campanha foi uma manifestação política muito bonita — para quem participava dela. O problema é que nem Freixo nem o PSOL têm a mínima ideia de como foi vista do lado de fora, onde estavam os votos a ser conquistados.

“A cidade é nossa!” e “Vai ser desse jeito!” foram dois slogans infelizes e arrogantes, ameaçadores até, para quem não participava da festa. O próprio sinal do 50, inventado por algum marqueteiro sem noção e repetido por Freixo e pela militância à exaustão — uma palma aberta, a outra cerrada num punho — remetia a outros punhos fechados que o eleitor abomina neste momento, do desafio dos petistas a caminho da prisão ao inominável André Vargas defendendo mensaleiros e insultando Joaquim Barbosa no Congresso Nacional.

Outro erro de percepção foi repetir que, com apenas 11 segundos de TV, o PSOL derrotou o PMDB. Não é verdade. O PMDB se derrotou a si próprio. O PSOL não foi para o segundo turno por causa dos seus 11 segundos, mas por causa da teimosia de Eduardo Paes, que insistiu num candidato queimado junto à opinião pública. E também, honra seja feita, graças à falta de espírito cívico de Osório e de Índio que, focados nos seus próprios umbigos, deixaram que o voto de centro se dispersasse.

A esta altura, isso já não faz a menor diferença, mas, se o PSOL quer mesmo amadurecer, e se Freixo quer mesmo saber onde errou, talvez seja interessante lidar com os fatos como eles são, e não com os fatos como gostariam que fossem.

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Não é só Freixo que embarca em erros de percepção. Crivella também está redondamente enganado ao achar que conquistou todos os votos que teve. Ele continua sendo tão desprezado fora do seu curral eleitoral quanto sempre foi, mas, assim como o PSOL deve agradecer a Eduardo Paes por ter chegado ao segundo turno, Crivella deve agradecer a Freixo a grande graça alcançada. Parte ponderável dos eleitores não votou a seu favor, mas sim contra o PSOL.

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Por enquanto, só uma coisa é certa: o carnaval do ano que vem vai ser muito interessante.

Cora Rónai

A voz de Deus, a do povo e a do dono

A voz do povo é a voz de Deus, mas qual é a voz do dono?

Todos já devem ter visto a antiga propaganda de fonógrafo.

Ela mostra um cachorro muito atento à voz que sai do aparelho. É a voz do dono. Do dono do cachorro. O fonógrafo não tinha dono, tinha dona: a RCA Victor, que criou o lema em inglês: “His master’s voice” (a voz do dono).

As expressões nasceram em contextos muito diferentes. “A voz do dono” surgiu nas primeiras décadas do século XVI. Lady More trouxera para casa um cachorrinho, aparentemente perdido, que ela encontrara nas ruas de Londres.

Ela era mulher de Thomas More, estadista inglês e uma das referências solares do Renascimento, autor do livro “Utopia”, que quer dizer em grego um lugar que não existe.

Tudo ia bem, até que um dia apareceu um mendigo dizendo ser dono do cachorrinho. Querendo ser justo e não tendo foro privilegiado — quando discordou do rei Henrique VIII, foi preso na Torre de Londres e depois decapitado —, o famoso político e humanista ordenou ao mendigo que ficasse num dos cantos da sala, pedindo à mulher que ficasse no outro.

A seguir, levou o animal para o meio do recinto e mandou que cada um chamasse o cachorrinho ao mesmo tempo. Sem vacilar, o cãozinho correu para o mendigo, reconhecendo a voz do dono.

A história não terminou aí. Para consolar a mulher, que já se apegara ao animalzinho, Thomas More pagou por ele uma moeda de ouro ao pedinte. A quantia era muito superior à solicitada: um xelim, shilling em inglês, palavra que veio da base etimológica skell, mais o sufixo ing, significando tilintar, ressoar.
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“A voz do povo é a voz de Deus” é mais antiga. Veio do latim vox populi, vox dei, cuja primeira parte deu nome a antigo programa da TV Cultura, e designa também uma empresa brasileira sediada em Belo Horizonte, especializada em pesquisas de opinião.

Todavia, a expressão que dá nome às duas coisas é muito mais antiga. Foi registrada originalmente em grego, mas chegou até nós pelo latim e designava a opinião do Oráculo de Delfos, assim chamado porque sua sede ficava na cidade de mesmo nome, na região central da Grécia Antiga.

Quem quisesse adivinhar a opinião sobre algo, coisa que os institutos de pesquisa mais fazem, entrava ali para perguntar. Compareciam pessoas simples e também poderosas, vindas de todos os cantos. Alexandre, o Grande, por exemplo, esteve ali antes de tomar decisões que mudariam o mundo. Feita a pergunta, a pessoa deveria tapar as orelhas com as mãos e deixar o recinto. As palavras ditas pelos primeiros transeuntes encontrados fora do templo seriam a resposta divina.

Muitos políticos, certos de que passarinho que come pedra sabe o que lhe advém, protegem-se, não com a mudança de hábitos, como o de roubar o distinto público, mas com superstições que lembram estes usos e costumes. A palavra superstição veio do latim e designa excessivo medo dos deuses.

Um dos políticos que mais cuidado toma com isso é o ex-presidente, da República e do Senado, José Sarney, conhecido também por “madre superiora”. Ele só sai de um recinto pela porta pela qual entrou (é ali que o anjo da guarda fica esperando, na outra ele não está); não leva conchinhas para casa (elas já foram habitadas por seres vivos e podem trazer assombrações); detesta animais empalhados (eles atraem maus espíritos) e não aceita jangadinhas de presente, pois elas podem ter sido feitas por presidiários, que nelas deixaram os germes de suas angústias.

Ou será que, depois da Lava-Jato, o medo de todos é outro?

Deonísio da Silva

Teocracia aos pés do Pão de Açúcar

Minha cidade do coração, Rio de Janeiro, será administrada em breve por um bispo evangélico. Um crente da Igreja Universal ganhou a eleição para prefeito, e isso me fez lembrar de uma visita a Alison Flores. Entrevistei o empresário de aproximadamente 40 anos há algum tempo na sede de sua firma em São Paulo, porque queria entender uma coisa: a conexão entre a fé e os negócios. Flores sabe tudo sobre o assunto.

Quando o encontrei, ele estava em frente a um armário cheio de saias jeans. Pegou um modelo azul-índigo, colocou sobre o balcão de vendas e alisou cuidadosamente. Esta saia, disse, está bastante próxima da vontade de Deus. Custa 150 Reais. "Está vendo esta aqui? Tudo um pouco mais comprido do que em outras confecções de moda. Esta saia esconde um bom pedaço da perna."

Flores veste mulheres de igreja evangélicas – onde se sabe que Deus está vendo tudo, de preferência o que está sem pernas ou ombros de fora. As blusas de Flores eram frequentemente de um branco angelical, as roupas deixavam os quadris avantajados bem soltos, e Flores disse sério e amigavelmente: "Nossa moda não permite a vulgarização da mulher de jeito nenhum."

Naquela época eu já tinha ouvido e confirmado pelas minhas pesquisas que o boom das igrejas evangélicas também acarreta um mercado de milhões em produtos secundários. Já estive nos cultos evangélicos no país e percebo que lá vão muitas pessoas da classe emergente. Dentro da igreja – cheia de cadeiras de plástico, altares improvisados e aparelhos de som imponentes – as pessoas vão cantar e rezar, rir e chorar. Do lado de fora, às vezes, em uma feira improvisada, ficam vendedores de carros, de seguros dentários, e firmas de cartão de crédito oferecendo seus negócios.

Em consequência de tais igrejas, crescem gravadoras musicais, cantores de gospel se tornam superestrelas. Pastores famosos ganham milhões em canais de TV. Tem produtos de moda especiais como as saias do Sr. Flores. Aprendi que existe até mesmo uma feira especializada, a ExpoCristã em São Paulo, e grupos de empresários, como o que se autointitula "Clube Ovelhas".

Pessoalmente, não tenho nenhuma opinião formada sobre as igrejas evangélicas. Enquanto católico da região da Renânia na Alemanha, já sei que a fé pode desabrochar em forma de botões bem exóticos. Em Colônia, construiu-se uma catedral para incentivar o negócio com os peregrinos, e mandaram um exército até a Itália para roubar relíquias famosas.

Nas igrejas evangélicas do Brasil já vivenciei excessos assustadores em cultos de exorcismo; já vi exploração financeira de fiéis pobres nas periferias urbanas. Mas também já conheci comunidades florescerem praticando assistência caridosa aos pobres doentes.

Muitas destas igrejas praticam um culto ao bem-estar. Pregam: seja uma boa pessoa, seja trabalhador e dê um dízimo à nossa comunidade. Deus vai te recompensar com bem-estar material, você poderá consumir o quanto você quiser! De alguma forma isso também me fez lembrar a filosofia social de Lula.

Devido a tais experiências, não acredito que preciso mudar do Rio de Janeiro o mais rápido possível. Imagino que a nova teocracia aos pés do Pão de Açúcar surja com um prefeito sedento por fazer negócios. Talvez ele seja tão esperto quanto Alison Flores. "E estes buracos no tecido de suas saias jeans?" Perguntei com dureza ao empresário na época. Havia grandes pedaços rasgados nas saias, através dos quais se podia lançar olhares curiosos às pernas femininas. Flores virou a saia no avesso. "Forro na cor da pele", respondeu triunfante, "totalmente opaca".

E o que são essas saliências esquisitas na parte de trás? "Enchimento”, respondeu o homem, e então riu e explicou. "Também dá para tirar, se quiser. Mas até as nossas clientes gostam de se vangloriar das curvas nos traseiros!”

Thomas Fischermann

Um épico

Maurice Jarre dirige a Royal Philharmonic Orchestra 
em "Lawrence da Arábia", dirigido por sir David Lean

Receita para capturar o Leão

Al Capone não caiu por ser um gângster, o maior de sua época, mas pelo crime banal de evasão tributária. Sem uniformes policiais, longe dos holofotes, auditores fiscais integram as equipes da Lava-Jato que desmontam as redes de corrupção erguidas na administração pública. A Receita Federal converteu-se em ameaça perene aos figurões bandidos da nossa pobre República. É por isso que, do ponto de vista deles, é vital enjaular o Leão, submetendo-o ao comando dos delinquentes de gravata. Os caçadores saíram a campo, armados com um pretexto fabricado no mundo sindical.

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Nos idos de 2009, um certo Paulo Antenor, atual suplente do senador Magno Malta (PR-ES) e então presidente do Sindicato dos Analistas Tributários (Sindireceita), definiu uma fórmula de campanha sindical. Insurgindo-se contra a proposta de reservar o cargo de secretário da Receita a auditores fiscais, explicou que “há muita gente competente na área tributária que não está na Receita”, para concluir alertando sobre o risco de “tornar a sociedade refém de interesses de servidores”. Antenor, o anticorporativista de quermesse, traçava um rumo: de lá para cá, onde está o Sindireceita, aparece uma faixa com o bordão do “controle externo da Receita”.

Auditores fiscais são autoridades administrativas da Receita. Analistas tributários são técnicos auxiliares dos auditores fiscais. Sob a cobertura do bordão “anticorporativista” criado pelo esperto Antenor, o Sindireceita ofereceu um intercâmbio mutuamente vantajoso a políticos de diversos partidos. Basicamente, em troca da “valorização” dos analistas tributários, os parceiros políticos conseguiriam perfurar as regras de autonomia da Receita, nomeando aliados para os postos de chefia do órgão federal. Uma parte crucial desse programa condensa-se no Projeto de Lei 5.864, que será votado na Câmara nos próximos dias.

No começo, em 1985, eles eram “técnicos tributários”, servidores de nível médio. Logo, seguindo a onda geral de “valorização” de setores do funcionalismo com valiosas conexões políticas, os salários deles conheceram expressivos aumentos reais. Mas uma mudança de patamar ocorreu em dois saltos, entre 1999 e 2007, quando se tornaram “analistas tributários”, servidores de nível superior. O PL 5.864 completa o percurso, declarando-os autoridades administrativas, atribuindo-lhes funções privativas dos auditores fiscais e promovendo nova elevação salarial real. Será mais uma das “bondades” do Congresso, em benefício de uma casta de mais de sete mil funcionários públicos, na hora em que a maioria esmagadora dos trabalhadores enfrenta a retração salarial e o desemprego.

Comumente, “bondades” como essa são distribuídas por parlamentares em troca, apenas, do apoio eleitoral das corporações sindicais. Nesse caso, porém, há algo mais: a oportunidade de subjugar o Leão, colocando uma coleira no seu pescoço. O “controle externo da Receita” significaria, de fato, violar a autonomia do Fisco, subordinando-o aos interesses de máfias políticas articuladas a lideranças sindicais.

Uma certa Silvia Alencar, atual presidente do Sindireceita, tem muitos amigos, em diversos partidos. Três anos atrás, numa evidência de ecumenismo, sua vitoriosa candidatura sindical ganhou vídeos de apoios de congressistas do PT, PCdoB, PDT, PMDB, PSD e PP. Num desses acasos extraordinários, a relatoria do PL 5.864 ficou com o deputado Wellington Roberto (PR-PB), um dos mais notórios soldados da tropa de choque de Eduardo Cunha. Seu substitutivo, resultante da agregação de diversas emendas, determina o “compartilhamento da autoridade tributária” entre auditores fiscais e analistas tributários. É a realização do sonho do Sindireceita — e de tantos políticos atemorizados pelo avanço da Lava-Jato.

Nenhuma lei diz que o secretário da Receita Federal deve ser um auditor fiscal de carreira, mas a reserva do cargo às autoridades tributárias é parte da tradição e está prevista no regimento interno do órgão. Expandindo o conceito de autoridade tributária a mais de sete mil analistas, o PL 5.864 abre múltiplas rotas para a barganha política da nomeação do secretário — e, numa previsível reação em cadeia, para o preenchimento dos cargos regionais de chefia com funcionários “de confiança”. A Receita ficaria, então, sob o “controle externo” das máfias políticas — assim como, até outro dia, a Petrobras, a Eletrobras, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal.

O estabelecimento de burocracias públicas profissionais, meritocráticas, é uma marca do Estado-Nação contemporâneo. No Brasil, a elite política conseguiu evitar a conclusão desse processo, apropriando-se da prerrogativa de indicar dezenas de milhares de funcionários em cargos de confiança. A operação parlamentar de captura da Receita evidencia que, em meio às turbulências geradas pela Lava-Jato, as máfias políticas encontram meios de reagir, protegendo seus interesses vitais. Afinal, eles conhecem, tanto quanto nós, o epílogo da saga de Al Capone.

A Receita permaneceu, até hoje, relativamente insulada dos balcões de negócios da baixa política. As leis de carreira concentraram a autoridade tributária numa seção singular de servidores concursados, que são os auditores fiscais. Uma série de controles institucionais reduzem as oportunidades de corrupção e a margem de manobras políticas no interior do Fisco. A finalidade do substitutivo de Wellington Roberto é explodir a concha que envolve o órgão, inchando-o subitamente pela adição de uma nova categoria de autoridades tributárias representada por um sindicato altamente politizado.

Os chefes das facções criminosas comandam suas organizações a partir dos presídios. O PL 5.864 deveria ser examinado à luz dessa experiência brasileira. Da sua cela, em Curitiba, Eduardo Cunha tem ao menos um motivo para sorrir, enquanto admira o nascer de um sol quadrado.

Demétrio Magnoli

A marcha fúnebre

A pulverização partidária revelada nas eleições municipais, aliada aos índices de anulação de votos e abstenções (ainda que levemos em conta apenas as cidades onde houve biometria), aponta para uma certa exaustão do atual modelo eleitoral e do quadro partidário. Dois fatores pesaram muito nesses resultados: a recessão econômica e a crise fiscal, de um lado, e o impacto das denúncias de corrupção e da Operação Lava-Jato, de outro. Em ambos os casos, pela responsabilidade que tinha à frente do governo, o PT foi o partido mais atingido, colhendo um resultado eleitoral desastroso e do qual dificilmente se recuperará até 2018.

Pode-se dizer que o PSDB e o PMDB foram os partidos que melhor se saíram na eleição, os números confirmam isso, mas a pulverização dos resultados entre legendas médias e pequenas revela que os dois partidos ainda não garantem uma saída política para a crise que o país atravessa. Isso vai depender do sucesso do governo Temer, de um lado, e da capacidade de o bloco de forças que o apoia chegar a uma candidatura unificada, o que não é fácil. O PSDB dificilmente abrirá mão de um candidato próprio, porém é o PMDB que articula os demais partidos da base.

Ilustração "Tarde - A Marcha Fúnebre de Renato Viana", de Roberto Rodrigues
Roberto Rodrigues (1906-1929)
O resultado das eleições municipais revelou um imenso espaço a ser ocupado no vácuo do colapso eleitoral do PT, que conta apenas com o carisma do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para sobreviver, mas sem os recursos financeiros das grandes empreiteiras e a base de apoio municipal com que contava. Em tese, esse espaço pode ser ocupado pelo PMDB e pelo PSDB, juntos ou separados, mas a cortina em relação ao que acontecerá até o pleito de 2018 ainda está fechada.

O imponderável nas eleições de 2018 é a Operação Lava-Jato, não a recessão econômica e o impacto do ajuste fiscal nos humores do eleitorado. A delação premiada do empresário Marcelo Odebrecht e de seus executivos promete um novo capítulo na crise ética, no qual o eixo das denúncias pode se deslocar dos governos Lula e Dilma e atingir em cheio a Esplanada dos Ministérios e os governos estaduais, isto é, o PMDB e o PSDB, entre outros partidos da base. Na Praça dos Três Poderes, a discussão é como salvar a elite política do país, que pode ser varrida do mapa pelas revelações de como se relacionava com a empreiteira.

Há dois aspectos em questão: a forma como os grandes partidos políticos se financiavam para se manter no poder, cujo esgotamento determinou a adoção do financiamento público nas eleições municipais; e o nosso “capitalismo de laços”, que garantia contratos, empréstimos e isenções fiscais privilegiadas para as empresas que financiavam os partidos. Para se defender da catástrofe, a elite política discute duas propostas: a reforma partidária, com adoção da cláusula de barreira, que hoje reduziria o número de partidos para nove; e uma anistia para o “caixa dois eleitoral”, que blindaria os citados na delação premiada de Marcelo Odebrecht, desde que o dinheiro tenha sido destinado às campanhas eleitorais, e não ao enriquecimento pessoal.

É aí que a porca torce o rabo. Essa reação do Congresso encerraria a crise ética? O mais provável é que a elite política fique ainda mais desgastada e os grandes partidos sofram nas urnas a mesma dèbâcle do PT. Além da reação contrária de delegados federais, procuradores da República e juízes de primeira instância, que protagonizam as investigações da Operação Lava-Jato, existe mobilização da opinião pública contra essa “anistia” ao caixa dois eleitoral. Mas nada garante que a reforma partidária proposta para salvar os grandes partidos, incorporando as pequenas legendas que se fortaleceram nas eleições municipais, salve os seus candidatos majoritários. Com todo respeito aos que choram seus mortos no dia de hoje, a disputa eleitoral de 2018 pode se tornar uma grande marcha fúnebre para os principais líderes políticos do país.

Nesse aspecto, a melhor aposta ainda é no julgamento dos envolvidos pelo Supremo Tribunal Federal. O problema é que a Corte não consegue dar conta do volume de processos e o estoque de políticos enrolados só aumenta. No Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dos 432 recursos contra decisões da Lava-Jato tomadas na primeira instância, apenas 17 tiveram êxito. As tentativas de mudar as leis a toque de caixa para favorecer os políticos envolvidos nos escândalos até agora fracassaram. Mas, ao julgar os envolvidos na Operação Lava-Jato, o STF estabelecerá jurisprudência e dosimetria das penas, caso a caso, de acordo com a correlação entre o caixa dois eleitoral e os crimes conexos. Com certeza haverá um grande expurgo na política nacional, mas os que forem absolvidos poderão protagonizar a renovação da vida política nacional.

Imagem do Dia

Canola Fields in Xinghua, China.:
Plantação de canola em Xinghua (China)

Um em cada cinco jovens na América Latina não estuda nem trabalha

A economia latino-americana viveu uma década de ouro, que incorporou milhões de pessoas à classe média, que passou de 21% da sociedade para 35%. Mas os jovens dessa região não se beneficiaram tanto quanto era esperado. Agora além do mais estão em uma situação muito vulnerável por causa da crise que enfrenta essa área do planeta com a queda do preço das matérias-primas. São 32 milhões de jovens latino-americanos entre 15 e 29 anos, um em cada cinco, que não estudam nem trabalham, de acordo com o relatório Perspectivas Econômicas da América Latina, da OCDE.

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A pobreza e a marginalização se alimentam especialmente com essa geração, de acordo com o relatório, publicado no contexto da 25ª Cúpula Ibero-americana em Cartagena de las Índias (Colômbia). Cerca de 64% dos jovens latino-americanos vivem em lares pobres e vulneráveis.

A América Latina foi, nos últimos anos, uma das grandes promessas do planeta. Um crescimento sustentado na maioria dos países, graças ao aumento do preço das matérias-primas, e políticas de inclusão da era dourada da esquerda fizeram com que o mundo olhasse para essa região com enormes expectativas. A classe média aumentou, nasceram polos empresariais, cresceu o comércio e milhões de pessoas saíram da pobreza enquanto se expandia significativamente a cobertura da saúde pública e da educação. Mas o ponto de partida era tão baixo, a desigualdade tão forte, que o primeiro vento contrário, com uma desaceleração da economia latino-americana nos últimos cinco anos que agora já é claramente uma recessão, com dois anos de queda do PIB regional pela primeira vez desde a década de oitenta, pode destruir a maior parte dessas conquistas. E o bloco mais vulnerável parece ser a juventude, de acordo com o relatório da OCDE que se especializou em analisar a situação desse grupo.

Todos os dados analisados indicam a mesma coisa: a saída do desastre latino-americanos dos anos oitenta e parte da década dos noventa diminuiu abruptamente quando ainda não tinha chegado a um ritmo suficiente para tirar a região de seu atraso em relação aos países mais avançados. A América Latina tem uma grande vantagem sobre a Europa, os EUA e outras regiões mais desenvolvidas: é muito jovem. Um quarto da população tem entre 15 e 29 anos. No entanto, as carências na educação, formação profissional e a desigualdade e falta de oportunidades em vastas áreas da região, especialmente nas periferias das grandes cidades, colocam em risco essa vantagem.

As conquistas até agora têm sido importantes, segundo o relatório. Mas não são suficientes. Entre 2000 e 2015 caiu de 42% para 23% a proporção de latino-americanos com menos de quatro dólares disponíveis por dia. Isso é causado por melhores salários, mais empregos e mais transferências. Mas em 2015, tudo isso foi truncado e sete milhões de pessoas caíram de volta na pobreza. Já há 175 milhões de pobres, 29,2% da população, e outras 25 ou 30 milhões de pessoas estão em risco de cair nela se a recessão continuar.

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No final de tudo, o povo é que decide

A esquerda brasileira precisa repensar o seu papel na política se quiser continuar dando as cartas. As eleições municipais deste ano mostraram que o PT que, na década de 1980, se apresentou ao país com uma roupagem de vanguarda e defensor intransigente da ética na política, foi para o ralo da história. A população disse não a corrupção e condenou o partido e seus militantes ao ostracismo nessas eleições municipais. A direita – ou melhor, o centro – abocanhou as duas principais prefeituras do país: São Paulo e Rio de Janeiro, um sintoma de que o eleitor desaprovou os governos petistas e suas alianças à direita. Por essa amostragem eleitoral nas duas capitais mais importantes do país pressupõe-se que a campanha presidencial de 2018 caminha seguramente para uma vitória de um candidato conservador.

Por esse resultado, ninguém pode se queixar do eleitor brasileiro e nem dizer que ele não sabe votar, como disse Pelé em um de seus surtos antropológicos. Quando Sarney enterrou a economia como primeiro presidente civil da república, o eleitor respondeu elegendo Collor que parecia um caçador de marajás de verdade. Dois anos depois a desilusão veio com o impeachment dele e as acusações de corrupção no seu governo. O povo foi às ruas e o mandou para casa. Surgiu então Itamar Franco que deu a partida para a estabilidade econômica tendo à frente da economia o ex-senador Fernando Henrique Cardoso. O Brasil caminhou para a prosperidade e para estabilidade econômica com a nova moeda. FHC ficou no governo durante dois mandatos sem grandes atropelos.

Resultado de imagem para o povo decide ilustraçãoDurante esse período do troca troca de presidente depois da ditadura, o PT foi o partido que mais se destacou na oposição. Fez oposição cerrada a todos os presidentes. Para mostrar que pensava diferente dos demais políticos votou contra o novo modelo da Constituição. E mais: Lula, o líder da oposição, como Deputado Federal, abriu o verbo contra seus parceiros, chamando-os de picaretas para o delírio dos brasileiros. Mas a boca dura não o levava a lugar nenhum. Algo faltava para que Lula emplacasse a sua candidatura a presidente da república, depois de três tentativas frustradas. E esse algo mais apareceu: a direita vestida de vice. José Alencar, o empresário da indústria têxtil de Minas Gerais, surgiu pelas mãos de Zé Dirceu para tirar o ranço incendiário do Lula e acenar com o apoio dos empresários e banqueiros que desconfiavam de um governo de Lula.

Assim, a esquerda pragmaticamente chegava à presidência sem assustar a elite que Lula tanto combatia. Zé Dirceu, com isso, vestia uma roupa nova no seu líder que logo se deslumbrou com o poder e juntou-se aos empresários e banqueiros para governar com estabilidade política e econômica. O apoio do parlamento veio em seguida com os acordos petistas com as figuras até então carimbadas de direita pela cúpula do PT. Não demorou muito, Lula logo se uniu a José Sarney, Collor, Maluf e outros próceres da política brasileira. E quando a corrupção invadiu o Palácio do Planalto foi desse pessoal que ele se socorreu para que o mensalão não desabasse sobre a sua cabeça.

O eleitor, mas uma vez, reconduziu Lula à presidência da república, mas com certa desconfiança. Ao contrário de FHC, Lula só ganhou a reeleição no segundo turno disputando com Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, mas um político sem carisma. Aos trancos e barrancos, Lula terminou o mandato e elegeu seu sucessor. Conduziu ao altar a burocrata Dilma, que nunca se submetera a uma eleição. Nem de síndico. Mais uma vez, o eleitor fez a vontade de Lula, mas com ressalta: levou a Dilma para o segundo turno. A Dilma, coitada, entrou em parafuso. Era muito areia para o caminhão dela. Jogou fora a história, a firmeza nos princípios ideológicos e, a exemplo do Lula, foi buscar na direita o apoio para governar orientada por seu guru. Estaria até hoje no poder, se o eleitor não tivesse dissolvido essa aliança de conveniência indo às ruas para pedir o fim da corrupção e do seu governo que se agarrou aos conservadores de direita para insistir em ficar no poder.

Como você pode ver, eleitor, essa coisa de esquerda no Brasil é uma falácia. Para governar, a esquerda sempre se aliou com à direita. Por isso, podemos assegurar que os brasileiros são os protagonistas de toda essa história. Quando a coisa desanda eles vão às ruas e muda tudo. Foi assim com a ditadura militar, com o movimento das Diretas já e, agora, com o PT. E assim sempre será, como dizia João Ubaldo: viva o povo brasileiro!

Gatinhos bonitinhos

A solução para conflitos agora reside em um ser. Argumentação, busca de termos comuns ou mesmo imposição de vontade se tornaram meras falácias. Terapia instantânea para ventilar outros sentimentos e manter sua autoafirmação em um mundo que esmaga a individualidade a cada clique. Em meio à luta por espaço, apenas um território é considerado neutro, em que a paz e a tolerância reinam peludas. É uma imagem, na verdade. Esta utopia são as fotos de gatos. Se forem filhotes, melhor ainda.

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O fenômeno do “gatinho bonitinho” transcende as redes sociais. Investimos nosso tempo e confiança em qualquer imagem que transmita esta segurança pela fofura. Basta um sorriso, um olhar, que imediatamente tentamos ver o lado positivo em algo que não necessariamente é aquilo que se apresenta. Ignorem-se os avisos, esqueça as atitudes… Ninguém com esta voz doce pode ser tão mal.

A busca pelo gatinho bonitinho, este ser que parece dependente, mas cheio de vontades próprias, aos poucos virou uma síndrome. Há uma falta gritante de empatia, que provoca qualquer chance de alcançá-la uma necessidade. Não precisamos de alguém que trabalhe em conjunto, mas que precise ser cuidado por nós. O gatinho fofinho está em qualquer esquina, aguarda adoção. Até crescer e tornar um animal que ache que nós precisemos ser cuidados.

É uma mistura de carnaval com UFC. A fantasia foi trocada. O lobo se veste de gato, emana um sorriso e finge guiar um bando de Alices perdidas. Senhor, há tanto em jogo que não devemos rezar “Pai nosso”, mas sim a oração de São Jorge. Porque o Mal ronrona e afia as garras escondido. A imagem é mais importante que o conteúdo. Em algum lugar, McLuhan se desespera em ver que sua teoria, supostamente ultrapassada, mutou em uma quimera midiática.

Queremos um gatinho fofinho com a voracidade de um tigre. Sorria para nós e destrua nossos opositores, amém. Fora a imagem, não há meio termo.

No turbilhão da melancolia, fico os gatinhos fofinhos de verdade. Os felinos merecem nosso apreço. Os humanos, não. Quando acordarmos do país das pretensas maravilhas, talvez descubramos. Enquanto isso é o momento de guardar nossas nove vidas. Vamos precisar.

Daniel Russell Ribas