domingo, 16 de outubro de 2016

Hora de usar a cabeça

Ao som do tiroteio no morro Pavão-Pavãozinho, reflito sobre o momento político cujo ponto alto na semana foi a votação da PEC que estabelece um teto para os gastos do estado. Sempre houve tiroteio por aqui. Na primeira viagem que fiz ao Haiti ouvi tiros à noite. Pensei: estão fazendo tudo para me sentir em casa. E dormi em paz. Mas o tiroteio dessa semana parece marcar o fim de uma época e o começo de tempos bem mais difíceis. A ruína do projeto do PMDB no Rio acabou levando consigo algo que o sustentava, eleitoralmente: a política de segurança.

Tempos difíceis pela frente. A decisão de criar um teto para os gastos é correta. No entanto, há argumentos da oposição que merecem um exame. Acompanhei os debates e concordo com a tese de que a demanda com saúde e educação deve aumentar nos próximos anos. Como encará-las com recursos decrescentes?

Alguns setores da esquerda propõem questionar a dívida pública. Acredito que isso apenas vai nos levar a uma crise maior. Todos os caminhos da esquerda radical nos farão cruzar a fronteira com a Venezuela e nos fundir com o fracasso bolivariano.

O acerto de determinar um teto pode ser problemático adiante, se o governo se contentar com isso. Não me refiro apenas à reforma da previdência como um rumo de continuidade. Não teremos recursos para atender às demandas. O que fazer? O governo afirma que o dinheiro virá com o crescimento econômico, mais investimento, empregos e, consequentemente, mais arrecadação. Isso leva algum tempo. No meu entender, em vez de simplesmente sentir-se vitorioso com a votação do teto, o governo deveria preparar um choque de gestão. É a única maneira de fazer com que a escassez não torne mais difícil a vida das pessoas vulneráveis.

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Por onde começar? Nem todo o aparato do governo é irremediavelmente incompetente. Existem algumas ilhas de excelência que deveriam ser estudadas, não para que sejam universalizadas artificialmente, mas como fonte de inspiração. Eu faria algumas perguntas simples. Por que a rede Sarah de hospitais funciona? O que é possível aprender com ela e aplicar em outros setores da saúde? Por que funciona a distribuição de água durante a longa seca no Nordeste, organizada pelo Exército Brasileiro? O que é possível aprender da experiência?

O choque da gestão é tão ou mais importante do que acabar com a roubalheira. O cenário que o governo nos apresenta deve ser avaliado com calma para que não surjam falsas expectativas. O governo quer fazer crescer a economia para voltar a gastar. E possivelmente a roubar, porque uma grande parte dele esteve associada ao PT no assalto aos cofres públicos. Portanto a questão é essa: como voltar a crescer de forma sustentável, em termos econômicos, e, ao mesmo tempo, evitar a roubalheira?

A corrupção está sendo combatida pela Lava-Jato e outras operações. As medidas para combatê-las, com o aval de mais de dois milhões de eleitores, estão na mesa dos parlamentares para serem transformadas em lei. Mas o problema da eficácia passa ao largo das considerações políticas. O próprio Congresso é um exemplo de desperdício. Inúmeras vezes defendi a tese de que a redução de mais da metade dos gastos não influenciaria o resultado do trabalho. Sei que pode parecer mesquinho o que vou dizer. Mas o próprio processo de articulação política para reduzir os gastos foi dispendioso. O presidente ofereceu almoço e jantar para quase 300 parlamentares. Ninguém pensou em pagar a própria comida porque, afinal, estavam todos salvando a pátria. É esse raciocínio que dificulta a reforma. O trabalho de todos é importante, poucos se dispõem a buscar uma racionalidade que os tire da zona de conforto.

Os brasileiros, sobretudo os mais pobres, serão de alguma forma tocados pelas medidas de austeridade. Não creio que apenas o crescimento econômico resolverá, magicamente, os problemas acumulados. Será preciso domar o monstro irracional que se tornou o estado brasileiro. Há quem ache que defender os mais vulneráveis se resume a pedir mais dinheiro. De um modo geral, são as pessoas cujos salários e benefícios dependem de mais verba. O desafio agora é gastar bem, fazer com que cada centavo tenha o maior efeito benéfico na vida das pessoas.

A esquerda que caiu não está preparada para essa nova fase. Ela não só acha que os salvadores da pátria merecem comida grátis. Ela acha que os defensores dos pobres podem encher a cueca de dólares. Muito se fala do buraco em que a esquerda se meteu. Acabaram os partidos? Não importa. As ideias de que as pessoas mais vulneráveis têm de ser consideradas não desaparecem. Acabam ressurgindo no próprio bloco dominante.

Não foi apenas a corrupção que nos levou ao fundo do poço. Foram também o populismo de esquerda e a formidável incompetência brasileira. Suas características mais patéticas se expressam na engrenagem do estado. Não sei até que ponto o próprio mundo das empresas foi contaminado e isso virou um traço nacional.

A racionalidade não se obtém em jantares e almoços no palácio. Tem de ser um pão nosso de cada dia.

Democracia e populismo

Se for verdade, como de fato é, que a sociedade e a política brasileira devem ser entendidas como parte constitutiva do “Ocidente”, com estruturas sofisticadas e, por isso, irredutíveis a assaltos ao poder e a revoluções redentoras, daí se segue que por aqui simplesmente não podem deixar de existir um extenso ativismo social e formações partidárias de esquerda ou centro-esquerda como protagonistas da cena pública. Uma premissa desse tipo se apoia factualmente na história do capitalismo democrático, na qual – quer no New Deal norte-americano, quer no compromisso social-democrata europeu – foram atores decisivos social-democratas e comunistas, estes últimos, em particular, na França e na Itália do segundo pós-guerra.

Cinta Arribas ilustra, en La Tribuna de El Español, el artículo 'Contra la tentación del populismo en el PSOE', de Juan Fernando López Aguilar.:
Cinta Arribas
Lembrar essa premissa é importante num momento de recuo eleitoral e, mais significativamente, de desmantelamento ideal do principal partido de nossa esquerda, após quase década e meia de experiência no poder central e em inúmeros Estados e municípios relevantes. Uma experiência que, ao se concluir por ora de modo negativo, convida à discussão, tanto quanto possível serena, das relações entre esquerda e democracia, bem como das possibilidades de sua ação reformadora numa das sociedades mais injustas e desiguais desse Ocidente que reivindicamos como nosso.

Bem verdade que o surgimento e a expansão do PT se deram num momento de fortes dificuldades do reformismo social-democrata e da “sociedade de classe média” legada pelo New Deal, para não falar da esclerose do socialismo real em sua fase final. Já no final dos anos 1970, as políticas que davam forma ao Estado de bem-estar pareceram encontrar limites fiscais intransponíveis. A resposta conservadora, materializada nas plataformas ditas neoliberais, trazia de volta o espírito da bourgeoisie conquérante, apoiada ainda por cima num conjunto variado de revoluções tecnológicas que mudavam processos de trabalho, desorganizavam classes de referência da esquerda, abalavam sindicatos e partidos de massa – estes últimos enraizados no acanhado espaço nacional, sem acompanhar a unificação capitalista do mundo.

Olhar para a América Latina, especialmente a partir da ascensão de Hugo Chávez na Venezuela e, pouco depois, de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, passou a ser uma atitude bastante comum entre forças políticas e intelectuais da esquerda do “Primeiro Mundo” em busca de fontes rejuvenescedoras. Na parte sul do planeta, afinal, líderes e partidos de esquerda ganhavam eleições, prometiam refundar seus países, incluir as maiorias à margem do processo civilizatório depois de 500 anos de História dependente e colonial.

Exaustos, os reformismos dos países centrais não conseguiam mais frear ou condicionar o “sistema do capital”, muito menos romper os automatismos de seu “sociometabolismo”. Na América Latina, ao contrário, afirmavam-se governos populares e nacionais numa escala praticamente continental, seja na forma moderada do lulismo, seja na mais agressiva e, diga-se com ênfase, crescentemente autoritária do chavismo.

O colapso venezuelano, cuja saída pacífica ainda não está à vista, e a múltipla crise brasileira, cujo desfecho em curso o petismo, agora fortemente redimensionado, interpreta como golpe e usurpação, desfizeram a miragem. Entre os teóricos da “alterglobalização” há quem sugira que, entre nós, não se teria seguido à risca o percurso revolucionário fundamentado em Constituintes exclusivas e em poder hegemônico, esquecendo-se de que onde se foi mais fundo na “criatividade” constitucional o resultado foi a reproposição de formas castrenses de “socialismo”, como na Venezuela do coronel Chávez. Do mesmo modo, onde se aplicou generalizadamente a perspectiva supostamente hegemônica, sem considerar a marca pluralista das sociedades “ocidentais”, os efeitos não foram muito melhores, encaminhando o sistema político rumo ao beco sem saída do partido-Estado, do chefe revolucionário e do respectivo culto à personalidade.

Por certo, estivemos, e estamos, diante de um repertório anacrônico, incapaz de sustentar a argumentação apropriada a uma “esquerda positiva” – para evocar San Tiago Dantas, personagem de uma época tempestuosa que desembocaria em efetiva ditadura militar, não neste simulado “estado de exceção”, rótulo que, na falta de vocação autocrítica, a esquerda petista teima em afixar a uma realidade plenamente democrática, regida por avançada Constituição e marcada por calendário eleitoral rigoroso, à prova de plebiscitos intempestivos e demais expedientes de agitação e propaganda de negativa memória.

A velha Europa e os Estados Unidos, com sistemas políticos duramente testados por agitações e turbulências devidas à emergência de atores regressistas e xenófobos, para não falar de seus congêneres da extrema esquerda, nada têm a ganhar com a importação de temas e métodos do populismo latino-americano, que uma vez mais expõe suas históricas limitações à vista de todos, no Brasil e por toda parte. A genérica retórica antiestablishment, o ataque indiscriminado às “elites” e a divisão das sociedades entre “nós” e “eles”, entre amigos e inimigos do povo, não servem – nunca serviram – à causa do progresso e da civilização.

Renovar os reformismos e abrir os sistemas políticos à participação dos que “perdem” com a globalização, fortalecendo os mecanismos indispensáveis da democracia representativa, é um bom programa para uma esquerda racional na Europa ou nas Américas. Longe de estreitezas paroquiais, ela poderia contribuir para a criação de um “cosmopolitismo de novo tipo”, a fim de regular democraticamente as forças econômicas e governar o impacto social das mudanças tecnológicas, que ora parecem caminhar com as próprias pernas, acima do entendimento e das necessidades das pessoas comuns. E a desorientação que daí decorre nunca pressagia nada de bom.

Beleza não põe mesa

Não pense o Leitor que ao dizer isso declaro que a extraordinária beleza do Rio de Janeiro acabe por cansar seu morador. Longe disso, o único alívio que temos em nosso conturbado dia a dia é a suntuosa visão do estojo no qual Deus pousou o Rio.

Como disse um amigo de Coimbra ao olhar para o mar do alto da Estrada das Canoas: "isto é impressionante, extasiante, espetacular!".

Essa é a sensação que temos, cariocas da gema ou por opção, ao atravessar o Túnel Rebouças e dar com a beleza comovente da Lagoa, um simples aperitivo para o deslumbramento que virá a seguir, com o Cristo lá no alto abençoando a cidade.

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O Rio sempre foi acolhedor com seus visitantes, assim como amado por seus moradores. Cariocas, graças a essas bênçãos de Deus, fizeram desta cidade um lugar acolhedor, cuja simpatia rivaliza com a beleza e a tornam um local que os estrangeiros amam visitar e ao qual sempre planejam retornar.

Mas talvez fosse melhor usar os verbos no passado. Sinto que a visita ao Rio será adiada...

O Rio anda violento, bravo, assustador. As UPPs, criadas pelo então Secretário de Segurança José Mariano Beltrame para pacificar as comunidades carentes em áreas menos aquinhoadas da cidade, excelente ideia à qual faltou a adesão firme e forte do governo do Estado, não conseguiram conter o avanço da criminalidade, brutal e estúpida. Será que a ninguém ocorreu que um posto policial, sem a contrapartida de uma política social importante - creches, escolas, clínicas de família, saneamento - não bastaria para desenvolver uma geração bem estruturada, disposta a não permitir que o Mal vencesse o Bem?

...Quando tivemos dinheiro não implementamos o que era necessário. Agora, que estamos quebrados, não adianta chorar pitangas...

Faltou isso tudo, mas não faltou a visão do Lula e seu governador Sergio Cabral em um teleférico ligando a Praça General Osório, coração de Ipanema, ao alto do Pavão-Pavãozinho. Necessário? Pode ser. Se viesse depois das políticas sociais acima mencionadas, talvez merecesse os adjetivos da senhora Christine Lagarde, diretora do FMI que, certamente deslumbrada pela paisagem, não reparou onde o teleférico a levava e declarou que se sentia nos Alpes!

Foi pena que ela não estivesse no Rio no último dia 10 quando, durante um tiroteio violento que ecoou nas imediações da comunidade Pavão-Pavãozinho, as pessoas que vivem, trabalham e circulam por ali de repente não vissem um corpo de homem cair do alto do morro, morto ou vivo, ainda não se sabia ao certo.

Os cariocas perceberam que a ilusão da cidade unida acabara. Vencia a realidade da cidade partida.

Quando tivemos dinheiro não implementamos o que era necessário. Agora, que estamos quebrados, não adianta chorar pitangas. Mas quem sabe podemos exigir que o poder público ao menos controle seus presos e respeite o que o secretário Beltrame - e todos os cariocas de bom senso - pedem: chega de licença de saída da prisão em datas festivas, como Natal, Dia das Mães, e outras.

O bandido que comandou a ação que resultou no tiroteio no Pavão-Pavãozinho estava usufruindo de uma licença da prisão desde maio, para comemorar o Dia das Mães.

Uma flor de rapaz, com toda a certeza...

O juiz na seara alheia

Pode um juiz usar o poder da toga para escrever um despacho sem se ater ao objeto do processo que lhe chega às mãos, usando o espaço para se engajar na ação corporativa da Associação de Magistrados a que pertence?

E mais: tem o direito de fazer nesse mesmo recurso prejulgamento sobre matérias que fogem à sua competência, como projetos de lei e PECs?

É evidente que não. Porém isso é o que se lê num despacho exarado em 3 de outubro passado por um juiz de uma Vara de Trabalho do TRT da 2ª Região. O reclamante, que deve ter atravessado um calvário para marcar uma audiência no dia 5 de outubro, ficou a ver navios ao ver o adiamento para o final de junho de 2017. A razão: o juiz aderiu ao movimento nacional de paralisação de atividades deliberado por uma Assembleia de Magistrados.

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Cumpriu Sua Excelência o dever de fazer Justiça? Tinha direito de parar o múnus judiciário para atender ao movimento corporativista?

Entre as considerações descritas no despacho, o juiz alega “fragilização de ações institucionais de combate à corrupção”, posicionando-se, ainda, contrário à PEC 241, “que afronta direitos sociais e ataca garantias constitucionais” e assim por diante. Distribuiu juízos de valor no despacho, mas nada disse sobre o processo do reclamante.

Ora, juiz não pode fazer prejulgamento. Por mais que se aceite a tese de que juiz é também cidadão – podendo nessa condição expressar livre pensamento – ao magistrado, no exercício da função, impõe-se rigor ético, não podendo antecipar seu ponto de vista sob pena de causar suspeição.

O ativismo judicial

O juiz, ensina Francis Bacon, filósofo inglês, deve ser reverendo e sutil. Ater-se à missão de administrar a justiça. Não é o que vemos. Daí a recorrente observação: há muitos juízes que driblam os princípios que regem a magistratura.

Multiplicam-se as ações de cunho corporativista empreendidas por associações de magistrados e outros operadores do Direito que entram na arena política brandindo armas flamejantes.

A radiografia mostra um amplo aparato judiciário imbricando-se no território da política. Ou seja, o campo da política passa a dividir espaço com a seara da justiça. A imbricação é tão patente que já ganhou conceitos muito conhecidos: judicialização da política e politização da justiça.

O chamado “ativismo judicial” tem algumas explicações: o despertar da sociedade, por meio de seus núcleos organizados; a emergência de novos polos de poder; a promoção da cidadania, na esteira das bandeiras dos direitos humanos e da igualdade, responsável por movimentos como os de defesa das mulheres, de etnias e dos homossexuais; e o vácuo proporcionado pela ausência de legislação infraconstitucional (muitos dispositivos da CF de 88 não foram regulamentados).

Nesse ambiente de múltiplas interações, dentro do qual convivem instituições em processo de consolidação e uma cultura patrimonialista que subjuga a res publica ao crivo (e à ambição) do interesse privado, é difícil ao sistema judiciário tornar-se imune às pressões políticas.

A partir de 88, a Carta Magna abriu o leque de relações mais intensas. A composição das Cortes, por sua vez, tem proporcionado íntima conexão entre justiça e política. Veja-se o processo de seleção de nomes para compor listas dos tribunais superiores, encaminhadas ao chefe do Executivo, a quem cabe a palavra final.

No torneio de trancas e retrancas, pressões e contrapressões, há jogadores dos partidos, de arenas corporativas (associações de classe) e de grupos. Registre-se, ainda, que o território dos negócios adentrou os domínios do Estado. Portanto, a politização da justiça sob o prisma de indicação de nomes para as Cortes incorpora esse componente.

Em nações desenvolvidas, como a França e a Alemanha, isso é até natural. Parcela da Corte Constitucional passa pelo crivo do Parlamento. Há, ali, intenso atrelamento partidário. Nos Estados Unidos, a nomeação de magistrados também passa pela régua partidária, seja privilegiando democratas ou republicanos (liberais ou conservadores), dependendo do presidente do momento.

Por aqui, é comum se ouvir: “o juiz fulano é ligado ao político beltrano e vice-versa, o mandatário tem afinidade com o juiz tal”. O desenho ganha matiz mais forte quando a aproximação gera suspeita, quando se escancara a influência de atores (políticos/empresariais) nas decisões judiciárias.

As curvas acabam batendo às portas do Conselho Nacional de Justiça. Emerge a velha questão: Quis custodiet custodes? Quem vigia o vigilante? Norberto Bobbio sugere resposta ao pressupor que a indagação, per si, aponta para um vigilante superior. Portanto, aquele Conselho precisa ser um atento vigilante para evitar juízes caminhando por linhas tortas.

A prevalência da coisa acordada

Atente-se, ainda, para o exagero cometido por certas instâncias do Judiciário. Examinemos a questão da prevalência da autonomia coletiva (negociação entre patrões e empregados) sobre a legislação.

O STF, por meio de alguns de seus ministros, se pronunciou sobre a força da coisa acordada sobre a coisa legislada. Mas o Tribunal Superior do Trabalho entende que o princípio da autonomia deve ser “relativizado”, não podendo ser aplicado a todos os direitos que os trabalhadores detêm.

Alguns membros do TST questionam a natureza jurídica do “negociado”, alegando que os precedentes do STF sobre a matéria (negociado X legislado) têm sido pontuais, não podendo se estender indiscriminadamente a toda a pletora de direitos e tipos de negociação.

O TST fecha a questão: a Justiça do Trabalho é quem deve avaliar o que pode ou não ser negociado. E levanta a dúvida: ministros do TST podem julgar em contrário ao entendimento da Suprema Corte?

O fato é a Corte do Trabalho parece defender a manutenção de um estado cada vez mais conflituoso na sociedade. A lógica: quanto mais conflito mais poder deterá. A recíproca é verdadeira. Não por acaso, os altos juízes do trabalho dão a impressão de que também apreciam legislar, extrapolando a função que lhe compete, a de distribuir justiça.

Gaudêncio Torquato

Domingueira em família


As famílas de Tom Jobim e Dorival Caymmi reunidas 
com amigos para ensaio na casa de Tom no Jardim Botanico

Investigação do TSE expõe submundo das finanças eleitorais

Na mesa havia uma montanha de dinheiro: R$ 14 bilhões em contratos, 80% financiados pelo banco estatal BNDES, para a construção da Usina de Belo Monte, no Pará, uma das maiores hidrelétricas do mundo.

O governo Lula decidira obrigar as empreiteiras concorrentes a se juntar num consórcio liderado pelos grupos Andrade Gutierrez, Odebrecht e Camargo Correa. Otávio de Azevedo Marques, então presidente do grupo Andrade Gutierrez, não esquece daquele outono de 2010: “Eu fui chamado pelo deputado, ex-ministro Antonio Palocci, para uma reunião. Na época ele não era ministro, né? Trabalhava na arrecadação de fundos da presidente Dilma, futura presidente, candidata.”

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A conversa foi objetiva, contou dias atrás a Herman Benjamin, juiz-corregedor do Tribunal Superior Eleitoral: “Ele me disse que aquela escolha, feita pela ministra Erenice (Guerra, chefe da Casa Civil na época), precisaria ter um entendimento de que havia um projeto político para ser apoiado. E que nós deveríamos recolher 1% do valor dos nossos faturamentos naquele consórcio: 0,5% para o PT e 0,5% para o PMDB.”

As empresas privadas pagaram na proporção da sua participação no negócio, relatou o executivo. À Andrade coube uma fatura de R$ 20 milhões. “Também pagaram nos outros projetos federais?”, quis saber o juiz-auxiliar Bruno Cesar Lorencini, referindo-se às obras em rodovias, ferrovias e aeroportos. “Também houve contribuições”, confirmou o executivo.

O dinheiro de empresas investigadas por corrupção em contratos públicos irrigou o caixa das campanhas da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer (PT-PMDB) nas eleições de 2010 e 2014. Algumas usaram métodos convencionais de lavagem. Outras, como a Andrade, preferiram disfarçar pagamentos como doações eleitorais.

Recursos fartos levaram a um recorde de gastos. Nunca uma campanha presidencial foi tão cara quanto a de 2014. A chapa Dilma-Temer liderou nos votos e na gastança: declarou despesas equivalentes a R$ 514,2 milhões (valor atualizado pelo índice IGPM/FGV). A oposição achou que a derrota foi provocada pelo “abuso de poder econômico” do governo e pediu uma devassa nas contas.

Há 21 meses a Justiça investiga a origem e o destino desses recursos. Financiamento eleitoral ilícito é punível com a cassação dos eleitos. Desde o impedimento de Dilma, em maio, o processo avança no TSE com um único alvo: o antigo vice-presidente. Numa ironia da história, Temer, o sucessor de Dilma, hoje é um presidente “sub judice” — por iniciativa do seu principal avalista político, o PSDB. O inquérito sobre o caixa da campanha presidencial de 2014 está expondo em detalhes, pela primeira vez, como funciona o submundo dos negócios e das finanças eleitorais.

Na quinta-feira, por exemplo, o TSE resolveu decretar a quebra do sigilo de três gráficas (Red Seg, Focal e VTPB). Juntas, teriam sido responsáveis por 15% dos gastos totais declarados pela chapa DilmaTemer na eleição de 2014. A documentação coletada mostra o seguinte: do total de despesa declarada pela chapa PT-PMDB com serviços dessas empresas (R$ 77 milhões, em valores corrigidos), o tribunal só conseguiu comprovar regularidade sobre 21% (R$ 16,1 milhões).

Significa que só existem comprovantes fiscais para R$ 16 de cada R$ 100 gastos pela chapa Dilma-Temer nessas gráficas. Dois terços desses gastos da chapa Dilma-Temer foram concentrados em gráficas (Focal e VTPB) que não dispunham de empregados ou maquinário suficiente e multiplicaram por dez seu movimento de caixa com “serviços” ao PT e PMDB nas eleições presidenciais de 2010 e 2014.

Criada como empresa de “banca de jornais e revistas”, a VTPB se transformou em “impressora de material publicitário” em julho de 2014, às vésperas da campanha eleitoral. É controlada por Beckembauer Rivelino de Alencar Braga, filiado ao PT paulista, segundo o TSE. Já a Focal tem como controlador Carlos Alberto Cortegoso, militante do PT mineiro com histórico em inquéritos sobre lavagem de dinheiro na política.

Foi personagem no caso do mensalão, delatado pelo publicitário Marcos Valério Fernandes, que repassou-lhe R$ 1 milhão (valor atualizado). Cortegoso também aparece em dois processos sobre corrupção em curso na Justiça Federal, em Curitiba. Num deles figura como receptor de sete imóveis do pecuarista José Carlos Bumlai, que se confessou à Justiça como o “trouxa perfeito do PT” em negócios ilícitos com a Petrobras.

Em outro foi delatado como intermediário da empresa Consist na lavagem de R$ 67 milhões para o PT (80% obtidos na cobrança de taxas ilegais sobre empréstimos consignados tomados por servidores do Ministério do Planejamento). Ao conferir as despesas declaradas pela chapa Dilma-Temer em 2014, peritos judiciais estranharam pagamentos elevados por alguns “serviços” em eventos de campanha.

À Focal, por exemplo, pagou-se R$ 204 mil pela “organização” de um “comício de Michel Temer na quadra da Portela”, no Rio. E R$ 431 mil pela “organização” de uma “coletiva de imprensa no Hotel Royal Tulip Brasília” para Dilma. Os documentos apresentados para justificar gastos de R$ 77 milhões com as gráficas são sugestivos. A “organização” de carreatas custou R$ 390 mil em Aracaju, R$ 204 mil em Campinas e R$ 138 mil em Padre Miguel, no Rio.

Gastou-se R$ 322 mil para “organizar” uma ca- minhada de Dilma em Canoas (RS). Outros R$ 416 mil num percurso de 1,3 mil metros no Centro do Recife, e R$ 127 mil em 500 metros da rua Barão de Itapetininga, em São Paulo. Cobrou-se R$ 404 mil pela “organização” de um encontro de Dilma com estudantes em Maceió. E R$ 314 mil pela reunião com artistas no Leblon, Rio. E um “ato pela Igualdade Racial”, em Nova Lima (MG), custou R$ 302 mil.

Os preços da “organização” de comícios oscilaram entre R$ 433 mil (Guaianases, SP), R$ 639 mil (Goiânia) e R$ 719 mil (Ceilândia, DF). Nesses eventos, supostamente, foi consumida parte dos 693 milhões de santinhos da chapa Dilma-Temer que teriam sido impressos por uma das gráficas sob investigação. Volume suficiente para distribuir três panfletos a cada brasileiro, com ou sem título de eleitor.

José Casado,

Boa notícia: Petrobras volta à editoria econômica

Num instante em que a Petrobras ainda frequenta o imaginário das pessoas como um antro de incompetência e roubalheira, é uma tremenda novidade que a estatal, transferida para a editoria de polícia, volte a frequentar as manchetes do noticiário econômico. Além da importância econômica, a decisão da Petrobras de reduzir o preço da gasolina e do diesel tem relevância política. Pela primeira vez em muitos anos, o brasileiro tem a sensação de que a maior estatal do país voltou a ser gerida segundo critérios exclusivamente empresariais.

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Na gestão de Dilma Rousseff, os preços dos combustíveis eram decididos em Brasília, no Palácio do Planalto. Transparência zero. No ano eleitoral de 2014, registrou-se uma passagem cômica. Aloizio Mercadante, então chefe da Casa Civil, dizia que o governo represava tarifas e preços dos combustíveis para o bem da sociedade. Guido Mantega, então ministro da Fazenda, dizia que não, absolutamente, não havia controle artificial dos preços. E Dilma se fingia de morta.

Pedro Parente, o novo presidente da Petrobras, promote transparência na definição dos preços dos combustíveis, agora sem interferências alienígenas. Isso é ótimo para os negócios. Na primeira reunião sobre o tema, o preço caiu. Isso tem efeitos positivos sobre a inflação e os juros. Delfim Neto costumava dizer que, se o governo administrar um circo, o anão começa a crescer. Se a Petrobras se mantiver longe das nomeações políticas e a salvo dos sábios de Brasília, a bilheteria do circo pode melhorar.

Imagem do Dia

Cherry Creek Bike Path, em Denver (EUA)

Mau uso da linguagem

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 Pawel Kuczynski

Chove. Antigos dirigentes do partido explicam-se na televisão. " Acreditavam " no partido. " Acreditavam" que tinha havido "erros", faltas , mas " acreditavam", por exemplo, que "Estaline não sabia" nada disso. Etc. . Mas não se pense que não misturavam estes lugares-comuns com factos reais, a chamada "fé" com pensamentos ou sentimentos reais. A lição que podemos extrair: estes homens dedicaram a vida a um mau uso da linguagem. Mas também, o que já é mais grave, promoveram esse mau uso da linguagem à categoria de consenso. E, com a partida, deixaram para trás estropiados no mau uso da linguagem, que requerem , agora, urgente socorro linguagem , e , quais farrapos de papel dispersos, subitamente pusessem a nu as suas feridas morais. Para onde quer que olhe, estalam próteses morais, chocam muletas morais, rolam cadeiras morais. Não se trata de esquecer uma época como se esquece um qualquer pesadelo: porque eles foram esse pesadelo e deviam esquecer-se de si mesmos, se quiserem viver. E, na realidade, ainda ninguém procurou saber se, após uma longa morte, é possível, é sedutor, viver de novo. Quem é que já ressuscitou - não, claro, para proclamar o milagre mas tão-somente para vegetar , para , essencialmente, fazer a mesma coisa que antes (para nada), e sem se dar conta da experiência da ressurreição? É possível imaginar Lázaro no papel de Chaplin?

Imre Kertész

Lula só esqueceu de combinar com o destino

Quatro meses depois de transformar Dilma Rousseff em sucessora, cinco semanas depois de transferir o gabinete no Planalto para o poste que fabricou, Lula resolveu começar com mais de um ano de antecedência a campanha presidencial na Venezuela. Em 24 de fevereiro de 2011, como revelou nesta sexta-feira o site de VEJA, o palanque ambulante comunicou ao embaixador Maximilien Arveláiz, representante da república bolivariana no Brasil, que só a certeza de que Hugo Chávez conseguiria outro mandato no ano seguinte poderia livrá-lo da insônia perpétua.

“Eu durmo tranquilo porque sei que ele está na presidência, mas também perco o sono pensando que Chávez pode perder as eleições de outubro de 2012”, disse Lula durante a reunião sigilosa num hotel de São Paulo com o embaixador venezuelano. “Uma derrota de Chávez seria igual ou pior que a queda do muro de Berlim”. (Se encarasse o tema numa prova do Enem, o estadista de araque não conseguiria rabiscar nem dez linhas, todas ininteligíveis, sobre o episódio que precipitou a dissolução do império soviético. Juntara-se à Irmandade dos Órfãos do Muro certamente por ouvir as lamúrias de Fidel Castro sobre aquela tremenda safadeza do imperialismo ianque).


Antes que o diplomata lhe perguntasse, o ex-presidente contou que já planejara o que fazer para que o amigo venezuelano permanecesse no poder ao menos até 2017. Em parceria com José Dirceu, ele cuidaria da montagem e da coordenação de um “comando de apoio à reeleição” sediado em território brasileiro. A primeira missão do grupo seria acelerar a entrada da Venezuela no Mercosul, um triunfo político que ampliaria o campo de manobra de Chávez no subcontinente. “Isso é fundamental”, sublinhou Lula.

Tão fundamental quanto o desembarque na campanha chavista de um especialista em fazer o diabo para ganhar eleição, foi em frente o cabo eleitoral. Para encorpar a votação do amigo venezuelano com uma propaganda eleitoreira exemplarmente enganosa, Lula tinha o homem certo: João Santana, naturalmente. No telegrama que resumiu a conversa no hotel, endereçado ao chanceler Nicolás Maduro, o embaixador Arveláiz rebatizou o marqueteiro do reino lulopetista de “Joel” Santana. O conhecido treinador de futebol está fora dessa.

Em maio, outro telegrama avisou a Maduro que Lula pousaria na Venezuela em 2 de junho, depois de uma escala em Cuba, e pretendia aproveitar a oportunidade para acertar com Hugo Chávez, em conversas a dois, os detalhes do projeto eleitoral. Oficialmente, ressalvou o embaixador, o visitante baixaria por lá para participar de um encontro com empresários organizado por Emilio Odebrecht. É uma informação preciosa: já estava em ação, disfarçado de palestrante, o camelô de empreiteira que seria aposentado pelas descobertas da Operação Lava Jato.

Só faltou combinar com o destino, sabe-se hoje. Surpreendido durante a campanha pelo câncer, Chávez morreu em março de 2013 sem assumir o mandato conquistado cinco meses antes. A partir de 2 de agosto de 2012, José Dirceu afastou-se do grupo de cúmplices para dedicar-se em tempo integral a escapar de punições pelo envolvimento com a quadrilha do Mensalão. Condenado por corrupção pelo Supremo Tribunal Federal, foi preso em 12 de novembro de 2012. Depois de alguns meses em liberdade condicional, foi atropelado pelas investigações da Lava Jato e continua engaiolado em Curitiba.

João Santana, que ajudou Chávez a ganhar a eleição, também afundou na roubalheira do Petrolão de mãos dadas com a mulher, Mônica Moura. Depois de algum tempo engaiolado em Curitiba, o casal tenta driblar o caminho de volta à cadeia pelo atalho da delação premiada. Enredado em distintas maracutaias, réu em três processos, Lula há muito tempo deixou de ser convidado para comícios e palestras no Brasil e no Exterior. Hoje, só juízes federais se interessam pelo que tem a dizer o chefão encurralado.

Os cinco irmãos do Brics

Michel Temer, a direita, e os presidentes dos países que formam o BRICS  (Foto: EFE)
Eles eram fortes, solidários, rebeldes e queriam mudar o mundo dominado pelas nações industrializadas 

Era uma vez um grande banco americano que sonhava com a ascensão econômica de países emergentes. No ano de 2001, ele lançou um fundo de investimentos com o sonoro nome de Bric e entusiasmou investidores de todo o mundo.

O banco também causou entusiasmo naqueles países emergentes que haviam sido cuidadosamente selecionados por ele: Brasil, Rússia, Índia e China. Em 2010, a África do Sul também foi incluída na venerável família, que aí virava Brics.

Grandes visões de futuro floresceram nessa comunidade. Os países-membros sentiam-se ligados entre si e queriam mudar o mundo. Eles se rebelaram contra o domínio das nações industrializadas no Banco Mundial, no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Eles evocaram uma nova solidariedade entre os países do sul.

O grande banco americano estava tão feliz com o enorme interesse dos investidores que não ouviu as palavras de ordem antiamericanas, cada vez mais fortes, provenientes da família Brics. Ele queria apenas participar do crescimento econômico e continuou a divulgar o fundo.

O sucesso econômico insuflou os países dos Brics. Eles proclamaram o mito da coesão crescente. Eles evocaram as suas relações comerciais e a sua cooperação. Eles fundaram um banco comum, realizaram encontros de cúpula anuais e elaboraram detalhados comunicados.

Mas, antes do oitavo encontro de cúpula, em Goa, deu-se uma grande tragédia. Justamente o anfitrião do encontro, a Índia, teve que ver como seu vizinho e inimigo, o Paquistão, recebia ajuda em forma de dinheiro e armas da China, o mais forte entre os membros dos Brics. E o Brasil continuava lamentando a falta de apoio dos outros Brics para a sua entrada no Conselho de Segurança da ONU.

As queixas dos participantes ficavam cada vez mais fortes e já podiam ser ouvidas muito além da cidade de Goa. Por que o mundo é sempre tão injusto? Por que os preços das commodities têm de cair todos ao mesmo tempo? E por que crises políticas e econômicas se sobrepõem constantemente?

Os veneráveis participantes da cúpula de Goa tentavam desesperadamente encontrar semelhanças entre si e, assustados, viam que não havia mais nenhuma. A China começou até mesmo a vasculhar antigas estatísticas e descobriu que, no ano de 2015, o seu volume de comércio com os Estados Unidos superou aquele que manteve com todos os irmãos do Brics.

No ano passado, as exportações para os EUA renderam a Pequim fabulosos 482 bilhões de dólares. Perto disso, os 244 bilhões de dólares gerados pelo comércio entre todos os países do Brics parecem até modestos. Até o presidente russo, que por esses dias anda meio sensível quando o tema é Estados Unidos, teve que admitir isso.

E, mais uma vez, o grande banco Goldman Sachs seguiu em frente a passos largos. Depois de anos de perdas, ele fechou o fundo do Brics em 2015 e deu um fim à lenda do eterno crescimento e do amor fraternal entre os países emergentes. Os países dos Brics, porém, continuaram a contá-la. E viveram felizes para sempre.

67% do trabalho dos vereadores do Rio é irrelevante

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Charles Darwin, D. Pedro II, Martin Luther King e Valesca Popozuda possuem um elo improvável no meio da Cinelândia: a Câmara Municipal. Os quatro ganharam homenagens da Casa na atual legislatura. Darwin e Luther King agora têm dias comemorativos no calendário oficial do Rio. Em 2013, o aniversário de 188 anos do imperador foi celebrado em sessão solene. E a funkeira recebeu a maior condecoração da cidade: a Medalha Pedro Ernesto.

Embora sem impacto na vida dos cariocas, homenagens assim são prerrogativas dos vereadores. O problema é quando elas ocupam espaço demais nas agendas de quem foi eleito para fiscalizar o Executivo e legislar. Propostas sem relevância marcaram a atuação de boa parte dos vereadores cariocas nos últimos quatro anos. Trinta e três deles — de um total de 51 — conseguiram se reeleger. Mas o que fizeram para merecer um novo mandato?

Para saber a resposta, O GLOBO analisou todas as 30.177 proposições dos 33 reeleitos, disponibilizadas no site da Câmara, e constatou que 67% delas (20.316 no total) não fariam falta. A análise seguiu critérios da ONG Transparência Brasil, que, ao avaliar a produtividade do Congresso Nacional, considera “homenagens, batismo de logradouros, simbologia, cidades-irmãs, pedidos de convocação de sessões solenes para comemorações e homenagens, datas comemorativas e criação de honrarias” como propostas “sem relevância”.

Conceder medalhas é uma das atividades prediletas dos vereadores. A Pedro Ernesto já foi dada para cerca de 5 mil pessoas desde sua criação, em 1980. A atual legislatura responde por 13% desse total, com 660 homenageados. Além de Popozuda, estão entre os laureados o cantor Thiaguinho, o pastor Silas Malafaia e o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab.

Neta do ex-prefeito Pedro Ernesto, a psicanalista Maria Helena Mossé defende que haja mais rigor na concessão de medalhas. Segundo ela, a iniciativa acabou virando uma forma de autopromoção e bajulação política.

— A família não concorda com essa entrega indiscriminada. Tentamos até acabar com a concessão da medalha, que foi entregue a muitas pessoas que não a mereciam — criticou.

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Dos dez políticos com percentual mais alto de propostas sem relevância, seis são do PMDB. Mas o campeão nesse quesito é o vereador João Mendes, bispo da Igreja Universal e filiado ao PRB. À primeira vista, seus números impressionam, com 4.378 proposições, recorde absoluto entre seus pares. Mas 96,6% delas não têm qualquer utilidade pública. Só de moções de louvor e aplausos foram 4.201, um agrado que ele reservou, principalmente, a pastores, bispos, diáconos, reverendos, apóstolos e missionários de sua corrente religiosa. Quando solicitou uma homenagem ao pastor Marcos Falcão, deu a seguinte justificativa:

“O bom pastor dá sua vida pelas ovelhas. É um homem que, às vezes, tem que agir como super-homem. Um líder que, às vezes, tem que agir como servo. Um servo que, às vezes, tem que agir como líder”.

Procurado, Mendes não deu entrevista, mas sua assessoria de imprensa disse que “o vereador conhece muita gente e instituições que fizeram um trabalho social importante”, daí o número tão alto de moções. Ela citou projetos de lei de autoria do vereador, como o que regulamentou as Academias da Terceira Idade e também o sistema de alarmes contra desastres naturais em áreas de risco, aprovado na legislatura anterior, em 2012.

Homenagens a religiosos se proliferam na Casa. Vereadora também pelo PRB, Tânia Bastos concedeu título honorário para Eduardo Benedito Lopes, então líder do partido no Senado e presidente da legenda no Rio. Trinta de suas moções foram destinadas a missionários “evangelizadores”, sendo que muitos deles sequer atuam na capital, mas em missões em Petrópolis, Macaé e Nova Iguaçu.

Outro exemplo é o vereador Eliseu Kessler, do PSD, que, entre seus projetos, apresentou um pedido de criação do Dia do Músico Evangélico. Ele também propôs a Semana da Carioquice Masculina e a Semana da Carioquice Feminina. O político defendeu ainda a cessão de um selo de utilidade pública para uma igreja pentecostal em Bangu e concedeu moções de louvor e aplausos a dez pastores.

Caçula da família Bolsonaro, Carlos, vereador mais votado do Rio, com o apoio de 106.657 eleitores, propôs, em sua legislatura anterior, em 2011, a criação do Dia do Orgulho Heterossexual. Abandonou a proposta, mas outros três vereadores reavivaram o projeto no ano passado. Jimmy Pereira (PRTB), Eliseu Kessler (PSD) e Alexandre Isquierdo (DEM) ainda tentam aprovar o texto, que segue em tramitação na Câmara.

Com o melhor desempenho pelos critérios da Transparência Brasil, Vera Lins (PP) preferiu não dar entrevista. Disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que encontra-se em um momento delicado, já que acompanha a mãe em um tratamento de câncer. Também destacou que o resultado do levantamento “soa como um incentivo”.

Paulo Pinheiro (PSOL), que teve o sétimo melhor desempenho entre os parlamentares, afirmou, por sua vez, que “o principal problema desta legislatura é o poder do Executivo sobre a Câmara”. O vereador demorou quase cinco anos para colocar em votação uma lei de transparência na saúde que obriga as dez Organizações Sociais que administram unidades médicas na cidade a publicarem seus contratos na internet.

— Lamento que a Câmara tenha sido sequestrada pelo Executivo — afirmou.

A quantidade de integrantes do Executivo homenageados pelos vereadores da base do governo é razoável. Os secretários Rafael Picciani, que era da pasta de Transportes e hoje está na Coordenação de Governo; Helena Bomeny, de Educação; Daniel Soranz, de Saúde; Jorge Arraes, de Concessões e Parcerias Público-Privadas; o presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Porto, Alberto Gomes, e também subsecretários foram agraciados com medalhas e títulos.

Apesar de o país e, principalmente, o estado terem afundado em uma crise financeira de forma progressiva desde 2013, os membros da Câmara viveram anos de intensa prosperidade econômica. Em média, os 33 vereadores reeleitos para a próxima legislatura dobraram seus patrimônios. Somando-se os bens de todos eles, saíram de um montante de R$ 15.474.840, declarados à Justiça Eleitoral em 2012, para R$ 31.424.681, um aumento acumulado de 103% — mais do que qualquer rendimento de aplicação financeira no mesmo período.

Os bons ventos, por outro lado, não foram sinal de muito trabalho para parte dos políticos, reeleitos ou não: nesses mesmos quatro anos, 67 sessões ordinárias foram canceladas por falta de quórum, entre um total de 408 previstas — uma média de 16% de sessões canceladas. Neste ano eleitoral, porém, as cadeiras vazias foram companheiras fiéis dos vereadores que decidiram aparecer no plenário: em mais de 31% das sessões de 2016, nada foi votado por falta de políticos presentes. O quórum mínimo para que uma sessão comece é de sete vereadores. Segundo dados da Câmara, cada vereador faltou, em média, a 22 sessões no decorrer do mandato.

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