terça-feira, 4 de outubro de 2016

A volta da caretice

Fala-se muito em esquerda e direita, mas nos esquecemos da “caretice”. Para além das posições políticas, se instala agora no mundo uma espécie de paralisia mental, um medo do novo em meio a uma infinita tempestade de informações que a revolução digital despeja sobre nós. Essa convivência ambígua angustia as pessoas, e a tendência no ar é de um conformismo defensivo, uma recusa a uma escolha ideológica: é a caretice, o amor ao fixo, ao já conhecido.

Eu estava em Londres, em 1967, quando saiu o “Sgt. Pepper”, dos Beatles. Havia em King’s Road uma espécie de comício nos olhares, uma palavra de ordem flutuando no vento, “blowing in the wind”, como cantava Bob Dylan. O mundo careta tremia, ameaçado pelo perigo do comunismo e pela descrença alegre que os hippies traziam.

A revolta da caretice começou nos anos 80. Seu prenúncio foi a morte de John Lennon, assassinado por um psicopata. Foi o sintoma inicial.

Depois, nos anos 90, com o fim da Guerra Fria, pareceu-nos que os Estados Unidos iam derramar pelo mundo seu melhor lado: a democracia liberal – pois achávamos que a liberdade era inevitável, quase uma necessidade de mercado. Com o fim espantosamente súbito da União Soviética e com a chegada de Bill Clinton ao poder, tivemos realmente uma década de modernização e de entusiasmo com o futuro. Mas essa alegria se esvaiu aos poucos – os efeitos colaterais do fim da Guerra Fria estavam só começando, como, por exemplo, o advento terrorista.

Com a chegada dos republicanos ao poder com Bush, a caretice internacional se revigorou. Essa máfia de psicopatas queria se vingar do desprezo que sofreram nos anos 60, se vingar do vexame de Nixon e Watergate, se vingar dos Beatles, dos Rolling Stones, dos negros, da liberdade sexual que sempre odiaram. Imaginem Bush, Karl Rove ou Rumsfeld diante de um Picasso, ouvindo “free jazz”. Eles nos deixaram a “herança maldita”: o mercado global insensato, a destruição do Iraque, o Afeganistão, o Ocidente como cão infiel do Oriente.

Hoje, a política mundial virou um balé impotente, com a razão humilhada e ofendida, para desespero dos que acreditavam num futuro iluminado. Em um primeiro momento, isso nos dá o pavor do descontrole racional sobre o mundo: “Ah... que horror... O humano está se extinguindo, a grande narrativa, o sentido geral das coisas...”

Painting by Vladimir Kush Surrealist Artist
Vladimir Kush
Está se formando uma nova vida social, sem finalidade; no entanto, isso poderá ser muito interessante em sua estranheza. A velha ideia de harmonização da vida, uma visão abrangente do mundo, ficou impossível. O mundo se fragmentou em arquipélagos. Tudo se passará aqui e agora, sempre. Há um enorme presente. O passado será chamado de “depreciação”. É tudo muito novo, tudo muito gelatinoso ainda, com a morte das certezas totalitárias ou individualistas. Configurou-se o vazio do “sujeito”, enquanto descobrimos nossa dolorosa finitude que sempre tentamos esquecer. Mas o que será considerado importante? Será que houve a morte da “importância”? Ou ela seria justamente esta explosão de conteúdos e autores? O “importante” seria agora o quantitativo? Não sei; mas, se tudo é “importante”, nada o é. No entanto, a grande perda de sentido pode ser “revolucionária”.

Nunca tivemos tantos criadores, tanta produção cultural enchendo nossos olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. Há uma grande vitalidade neste cafajestismo poético, enchendo a web de grafites delirantes. Talvez esse excesso de “irrelevâncias” esteja produzindo um acervo de conceitos “relevantes”, ainda despercebidos. Talvez esteja se formando uma nova força vital, uma nova produção de subjetividade, um agente formador de crescimento no mundo que ainda não está claro. Não sei em que isso vai dar, mas o tal futuro chegou; grosso, mas chegou.

A rapidez dessas mutações nos dá frio no estômago, mas a vida mesma dará um jeito de prevalecer, e talvez esse atual fantasma que assombra os metafísicos esteja nos libertando de antigos “sentidos” tirânicos, trazendo uma nova forma de aventura existencial e social, justamente por causa da desorganização da “ideia única”. Sistemas éticos ou racionais surgirão dos microchips, da tecnologia molecular, e não o contrário. Esta é a caricatura: as orelhas vão tender para celulares; os olhos, para telas de cristal líquido; e os cérebros, para chips com bilhões de gigabytes, todos feitos no Silicon Valley.

A descrença na política aumentou, as religiões estão florescendo, e o irracionalismo (mesmo disfarçado de sensatez) resistirá bravamente; mas talvez os avanços científicos possam um dia dissolver os fanatismos e as massas submissas a deuses. Sempre haverá o desumano; o pós-humano existirá? Creio que o humano vai prevalecer sempre, para além de uma ficção científica metafísica.

Os jovens de hoje querem alcançar uma forma de identidade alternativa e não almejam mais o “Poder” que está em mil pedaços. Há uma aceitação do mundo como algo irremediável, mas sem conformismo. Antes, lutávamos contra uma realidade complexa, sonhando com utopias totalizantes. Era o “uno” contra o “múltiplo”. Hoje, é o contrário; a luta é para dissolver, não para unir; luta-se para defender o vazio, o ócio possível, luta-se para proteger o “inútil” da arte, o que não seja “mercável”.

Desunificando-se em forma de uma grande esponja, em vazios, em avessos, em buracos brancos que vão se alargando à medida que a ideia do tecido da sociedade “como um todo” se esgarça. Não há mais “células de resistência”; apenas “buracos de desistência”. Agora, os novos combatentes não sonham com o absoluto; sonham com o relativo. E isso pode ser o novo rosto da humanidade se formando. Desculpem o “papo cabeça”, mas creio que um tempo diferente de tudo que conhecemos já começou. Intelectuais deliram com o tempo pós-humano. Mas a própria ideia de “pós” já é antiga. De qualquer forma, talvez o tal “pós-humano” seja interessantíssimo, até divertido. Será que vamos viver dentro de um vídeogame planetário? Não sei... Mas é mais estimulante do que o melancólico lamento pela razão que não chega nunca...

É preciso reorganizar o Estado, mas ninguém se interessa pelo assunto

Trata-se de um assunto tabu, no qual não se fala no Congresso e a mídia finge desconhecer – mas é absolutamente necessário reconstruir o Estado e, por consequência, o serviço público. Quando os parlamentares federais aumentam seus salários, provocam reajustes nas Assembleias e Câmaras de Vereadores. A mesma situação acontece no Judiciário e no Executivo, porque no serviço público, por decisão dos próprios funcionários/sindicatos, tudo foi feito para “unificar reajustes”, e os três poderes disputam entre si essas vantagens, nos salários e nos penduricalhos.

Bancos em greve (públicos e privados), INSS, Correios, Receita e outras categorias, todos os anos com campanhas salariais, movimentos e paralisações. Buscam defender seus direitos e, para obtê-los, usam a sociedade que lhes paga .

Acho graça quando um ministro do Supremo, ao invés de dar sua opinião, se “encosta” na tese de uma colega que, por tempo determinado, será presidente da mais alta corte. Todos se defendem, é impressionante, ao invés de defender os interesses da nação.


É preciso que a sociedade se organize para reconstruir o Estado e cobrar, de todos aqueles cujos salários são pagos por ela, os serviços que devem oferecer como contratados. Então veremos o que irá acontecendo daqui alguns dias. E não precisarão ser muito dias.

Perdoem ser tão insistente e pragmático. Depois de algumas décadas, nas quais os negócios mais escusos tomaram conta de todos os partidos – e são todos mesmo, se salvam só os “vencidos no tempo” e os desligados, é preciso mudar de rumo.

Campanhas eleitorais, regadas com recursos espúrios, aceitemos ou não, irrigaram os mandatos da imensa maioria dos eleitos nos executivos e nos legislativos. Como um câncer incurável, generalizou por todo o sistema.

Infelizmente, os órgãos ainda sadios não estão conseguindo manter o Brasil em condições saudáveis e sustentáveis, a não ser monitorado por aparelhos. Portanto, é preciso mudar tudo, para reverter a insanidade e irresponsabilidade que hoje contaminam os brasileiros.

Apenas como exemplo, tentem analisar a última campanha eleitoral. Os candidatos ou mentem ou são idiotas mesmo. E os eleitores, com certeza, na imensa maioria, são idiotas de fato.

Se um dia já tivemos um Estado brasileiro minimamente organizado, está na hora de reorganizá-lo. Mas, se nunca foi organizado, está na hora de refazê-lo. Se continuarmos afundando como nos dias atuais, só conseguiremos chegar ao fundo do fundo do poço!

Nosso maior problema é encontrar quem se disponha a colocar isso em ordem.

Piano brasileiro

O que o futuro reserva ao PT

O “nós contra eles”, que tanto marcou o discurso do PT nos últimos 14 anos e dividiu a opinião pública brasileira, está com seus dias contados a levar-se em conta o resultado da primeira fase das eleições municipais deste ano. Ao PT deixará de interessar. E também aos que sempre se opuseram ao PT por divergir ideologicamente dele e temê-lo.

Funcionou para o PT enquanto ele foi majoritário no campo da centro-esquerda e controlou o governo federal, fonte em grande parte de sua vitalidade. De certa forma funcionou também para os adversários do PT, empenhados em arrebanhar forças capazes de desalojá-lo do poder. Uma vez que os dois objetivos se esgotaram, perdeu o sentido.

O resultado do primeiro turno da eleição do último domingo mostrou que o PT desceu a ladeira para um dos níveis mais baixos que já ocupou. O partido quase foi dizimado. Não conseguiu eleger prefeitos sequer na metade dos municípios que dominava. Elegeu um único de capital (Rio Branco). Disputará em uma única capital o segundo turno (Recife).


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Nove partidos elegeram mais prefeitos do que o PT – entre eles, até o DEM, que parecia ameaçado de extinção. O PSB, partido de médio porte e antigo parceiro do PT, elegeu mais prefeitos do que ele. Partidos que sempre estiveram na órbita do PT afastaram-se dela e preferiram ir cuidar de sua própria sobrevivência.

Enfraquecido em baixo, não tem o PT como fortalecer-se em cima. Isso restará provado em 2018 quando ele disputar as próximas eleições gerais, de presidente da República, governadores, assembleias e Congresso. Desde já, o PT admite apoiar o candidato a presidente de outro partido. Dificilmente contará com Lula. E, sem ele, não terá outro nome viável.

Ou o PT se isola, correndo o sério risco de virar uma legenda de gueto, ou modestamente, e abdicando do protagonismo, tenta se juntar com os partidos que ainda aceitam sua companhia. O “nós contra eles” em nada o ajudará. Só lhe restará o esforço desesperado para ampliar o “nós” sem desprezar necessariamente o “eles”.

Não será uma tarefa fácil. Para executá-la com êxito, o PT será obrigado a reconhecer seus erros, a refletir sobre eles, a mudar de comportamento, a reconciliar-se com valores que desprezou, a renovar-se enfim, e a ter paciência. Muita paciência. Recuperar-se de queda é mais difícil do que ascender. Em menos de 40 anos, o PT subiu e afundou.

Quando Getúlio Vargas, em 1950, voltou ao poder como presidente eleito e não mais como ditador, os partidos que o apoiaram, PTB e PSD os maiores deles, pareciam destinados a ter vida longa. O PTB ainda existe agora sob a direção de Roberto Jefferson. Gilberto Kassab preside um PSD que nada tem a ver com o PSD original.

A UDN que se opunha a Getúlio desapareceu. Assim como desapareceu o Partido Comunista italiano, o mais poderoso do mundo ocidental nos anos 70 do século passado. O Partido Comunista português ainda existe, mas não passa de uma pálida sombra do que foi um dia.

Esquerda, direita e vice-versa

Está aberto um novo ciclo político em Portugal. Como já houve noutros tempos, de má memória, antes e depois do 25 de Abril. São tempos de fanatismo. De exclusão. De afrontamento sem tréguas. São tempos de esquerda contra a direita, que geram tempos de direita contra a esquerda. Há quem goste. Há quem considere que essa é a grande política, o regresso da política e outras banalidades. Mas sabemos que não é verdade. Com o país assim dividido, perdem-se meios de ação e oportunidades de compromisso e de cooperação.

Há com certeza esquerda e direita. Em muitas coisas, são diversos e querem coisas diferentes. Mas há muito mais. O país e a política não se resumem a isso. Há a cultura, a nação, a religião, a etnia, a região, a idade, a arte, a ciência, o trabalho, o desporto, o amor, boa parte da economia, a educação, a saúde, o património e muito mais onde esquerda e direita não têm qualquer espécie de importância, podem até ser nefastos.

O que nestes tempos de fanatismo marca a diferença entre esquerda e direita é o autor. O que a direita faz é de direita. O que a esquerda faz, de esquerda é. A autoria marca o conteúdo, não o contrário. É o estilo dos déspotas.

A mesma coisa, feita por alguém de esquerda ou de direita, é de esquerda ou de direita. Austeridade, poupança, frugalidade ou rigor: se os responsáveis forem de esquerda, é de esquerda. Se forem de direita, é de direita. Medidas da responsabilidade de partidos da direita são fogo para a esquerda, devem ser condenadas e consideradas roubo. Se postas em prática por gente de esquerda, são detestáveis para a direita e consideradas assalto.

Diminuição das garantias, redução das liberdades individuais, restrição de direitos, violação do segredo bancário e do sigilo de correspondência: estes gestos têm duas interpretações. Feitos pela esquerda, de esquerda são, festejados pelas esquerdas e repudiados pelas direitas. Feitos pelas direitas, de direita são, aplaudidos pelas direitas e vilipendiados pelas esquerdas. Gastos com a defesa, despesa com a segurança e equipamentos para as polícias: conforme o governo, assim estes orçamentos serão de esquerda ou de direita, apoiados pela tribo apoiante, condenados pela tribo oposta.

Negócios com capitalistas, entendimentos com multinacionais, favores a empreiteiros, incentivos a investidores, projetos de equipamento e parcerias: são empreendimentos de esquerda ou de direita, conforme os governos que as fazem, não conforme os méritos da obra.

Corrupção, crime e delinquência: é muito fácil, perante uma qualquer destas realidades, verificar que esquerdas e direitas se comportam de modo simétrico. Simpatizam, toleram ou condenam consoante o autor. As políticas e as medidas contra o terrorismo e a violência têm o mesmo destino: se vierem da esquerda, são de esquerda, aplaudidas pela esquerda e condenadas pela direita. Se vierem da direita, são de direita, festejadas pela direita e opostas pela esquerda.


Quase já não há matérias em que a esquerda e a direita democráticas sejam capazes de, sem trauma, estar de acordo. Quase já não há valores comuns. Com esta divisão exclusiva, toda a esquerda deixa de ser democrática para a direita e vice-versa. Nos debates parlamentares, já se fala de esquerda e de direita como se fossem pestes ou pragas sem salvação.

É natural que haja “paz social”, isto é, ausência de greves, enquanto os sindicatos de esquerda tenham acesso ao poder e os partidos de esquerda possam frequentar os corredores do governo. Também é natural que haja “clima optimista” para os negócios, enquanto os patrões tenham fácil contato com os governantes e os partidos da direita sejam bem-vindos nas antecâmaras dos ministérios. Tudo isso é natural e faz parte do jogo político. Infelizmente.

Um recado das urnas

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Arrisca-se ao papel de tolo quem quiser ver nos resultados de domingo a morte da política. Abatidos nas urnas foram o voto obrigatório e a fragmentação partidária. Generosos, como sempre, os eleitores deram ao Congresso uma nova chance para mudanças

O naufrágio do PT e a necessidade da reforma política

A história da humanidade tem naufrágios que ultrapassaram os tempos, como o do cônsul Pompeu voltando da África para Roma. No Brasil a Bahia nasceu do naufrágio do valente aventureiro Caramuru. Perdemos o bispo Sardinha nas costas do nordeste. E na história universal o Titanic, o supernavio afundado. Nesta semana mais um naufrágio veio para carimbar a história da política brasileira. Depois de 30 anos de belas vitórias, muitas loucuras, falcatruas e numerosas prisões, o PT naufragou de norte a sul do país. Não sobrou nenhuma liderança.

Lula está lá em São Bernardo escondendo-se da Polícia Federal. Dilma não quer ficar em Porto Alegre, mas fora de lá não tem onde se esconder. José Dirceu, Palocci, Vaccari, não podem atender o telefone. Preso não atende telefone. Não sobrou ninguém. Nem o talentoso ex-ministro Tarso Genro, porque ninguém quer papo com ele.

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Perder São Paulo já seria uma derrota dolorosa, mas compreensível. O que é inexplicável é o PT, depois de tantos mandatos, ser escorraçado da capital, sem conseguir sequer chegar a um segundo turno. Nem isso. Foi derrotado, humilhado e ofendido.

Com exceção do distante, minúsculo e boliviano Acre, em todos os estados onde tentou disputar alguma coisa foi varrido pelos eleitores. Não se salvaram nem o Rio Grande do Sul onde já teve berço e cama. Nem o ABC paulista com seus numerosos sindicatos e alguns outrora poderosos diretórios políticos e sequer no Nordeste que já foi um dia proclamado como território sagrado do partido. De tanto esconder-se, dele os eleitores e as urnas se esconderam. Como a Itabira do poeta, o PT ficou reduzido a um retrato na parede. Mas como dói.

Algum tempo vai ser preciso, mas logo logo o país sentirá o alívio que foi o sumiço do PT. Chegará ao fim a ladainha escondida atrás de discursos demagógicos, explorando a ingenuidade popular. Nunca mais ninguém dirá que nunca antes na história deste país houve alguém como ele ou que é mais honesto do que Jesus Cristo.

Parece pressa, mas chegou a hora. O Congresso tem o dever de começar uma reforma política para ficar pronta antes de 2018. Houve avanços, mas ainda são poucos. Acabar com o financiamento empresarial das eleições foi um salto. Mas não basta. É preciso regulamentar o financiamento individual para que espertos não finjam estar dando dinheiro que é dele quando não é.

Muita coisa há para reformular. Por exemplo: por que não começar a discutir um sistema parlamentarista que seja integral ou ao menos um que seja misto? O país está maduro para esta reforma. Mais urgente ainda é acabar com o vergonhoso carnaval dos partidos. Cinquenta partidos (funcionando ou a funcionar) tornam a democracia um fantoche. Eles passam a ser fundados ou a existirem apenas em função da teta gorda do Fundo Partidário e dos negociáveis tempos de TV e de rádio.

Mais de 10 partidos já seriam um exagero, e 50? Tornam-se um sórdido balcão de negócios. É claro que essas coisas não se implantam do dia para a noite. Mas na hora em que algumas dezenas de parlamentares sérios, que existem no Congresso, se dispuserem a preparar um projeto de cláusula de barreira, como existe em todas as democracias, a pressão da opinião pública virá irresistível. É preciso querer e fazer.

O excelente deputado Miro Teixeira tem tempo, independência e autoridade para começar esta batalha.

A escravidão também jamais iria acabar. Mas um dia acabou.

O fecho do feixe

There’s a lover in the story, but the story’s still the same / There’s a lullaby for suffering and a paradox to blame / But it’s written in the scriptures and it’s not some idle claim / You want it darker / We kill the flame 
Leonard Cohen (“You want it darker”)

Ontem fiquei doente. No cinzento domingão da eleição, fiquei me contorcendo na cama, somente com um breve intervalo para votar. O motivo, no entanto, estava longe de ser ideológico. Na noite anterior, após uma bebedeira com um amigo a que não via há tempos, comi algo que não desceu bem. A conclusão desta mistura de elementos, álcool e alimentação ruim, foi uma longa e dolorosa ressaca. Voltando à política, relembro minha agonia física e surge-me à mente o seguinte questionamento: em matéria de representatividade, o que o brasileiro vem consumindo? O que temos digerido seria fruto de um processo às pressas e atraente na superfície, ou um cozido mais perverso, como aqueles que escolhem o veneno para temperar sua fatal refeição?

Li há pouco um interessantíssimo comentário do tradutor e poeta Guilherme Gontijo Flores, autor dos belíssimos e mordazes livros “Brasa enganosa” e “L’azurblasé”. Ele elenca exemplos de situações típicas de novela, como José Mayer e Vera Fischer divididos em suas agonias de membros da elite, alienados sem culpa do mundo em míseras preocupações sexuais. Prosseguem mais duas cenas de teledramaturgia, em que personagens negros e LGBT são tolerados na condição de figuras arquetípicas, em um pastiche sórdido que justificaria uma incapacidade de ascensão social. Finaliza com uma descrição bem real de eleitores abastados vibrando com a vitória de colegas do country ganhando prefeituras em capitais estaduais. “Nossa narrativa é toda aristotélica: sofremos a tragédia dos ricos e rimos dos pobres que nós mesmos somos. Na hora de votar, como povo, escolhemos a figura com que nos identificamos”, afirma o escritor.

Alienação da TV:

Torna-se uma reflexão mais intrigante perante os eventos que cercearam o país nos últimos anos. Concorde-se ou não com suas motivações, as alterações no cenário político criaram uma impressão de tábula rasa. O próximo passo está para ser escrito e é imprevisível. Será? O sistema seria um mecanismo que trava, mas, eventualmente, retoma seu funcionamento e engole aquilo que o engasgou como uma planta carnívora? Ou, como integrados, sua operação pode alterada por dentro? Nesta dicotomia, as duas maiores capitais do país, São Paulo e Rio de Janeiro, simbolizam que não há resposta fácil. A culpa é da hubris dos deuses ou da ousadia dos mortais? Em todo caso, estaremos condenados a um destino predeterminado ou poderemos sair da caverna para além das sombras?

As eleições paulistana e carioca demonstram a rejeição aos governos anteriores. Mas este é o efeito, o fim de uma tragicomédia talvez anunciada. Enquanto um município fez uma opção clara pelo conservadorismo, outro encontra-se dividido pela indefinição de qual modelo seguirá, desde que não fosse o anterior. É infeliz constatar isso, mas, em um país em um a cada três de seus habitantes culpa a mulher em caso de estupro, não foi a conduta agressiva que tirou o candidato oficial da jogada. Vale mencionar que o vereador mais votado na cidade maravilhosa é membro de uma família ligada à extrema-direita. Seu pai, que todos sabem quem é, alcançou o mesmo resultado há dois anos quando se elegeu deputado federal. Logo, Rio de Janeiro progressista? Menos, queridos. Bem menos…

Como Leonard Cohen profetiza em sua voz cavernosa, há uma canção de ninar para o sofrimento e um paradoxo a ser responsabilizado. A história é a mesma. Os personagens farão aquilo que esperamos deles, enquanto dermos a audiência. Não é somente a mídia que produz monstros. Apenas exteriorizam e trabalham estes sentimentos presentes dentro de nós num pacote atraente, previsível e brega. Champanhe com gosto de guaraná aguado, enfim. Parece bom à vista, mas causa um piriri… À medida que analisarmos aquilo pelo que desejamos ser, e não por que é, veremos tudo escuro e nossos estômagos se contorceram. Abrir os olhos dói, como aceitar sua própria tragédia. Se o prato enjoou, não basta esperar uma nova receita. Você é o que come. É preciso arregaçar as mangas e fazer você mesmo, supervisionar o preparo, garantir a qualidade do que pediu. É menos utópico que muita dieta. Palavra de quem perdeu 15 kg nos últimos meses.

Daniel Russell Ribas

Imagem do Dia

Parque Nacional de Plitvice, na Croácia

Abstenção não revela crise de representatividade porcaria nenhuma!

“Devo registrar uma preocupação: acabei de verificar um número imenso de abstenções, votos em branco e nulos , o que revela o que ouso dizer ‘a indispensável necessidade’ de uma reforma política do país, algo que penso que o Congresso Nacional deva cuidar com muita propriedade.”
A fala acima é do presidente Michel Temer ao chegar ao Paraguai nesta segunda para sua primeira visita bilateral. Está acompanhado dos ministros José Serra (Relações Exteriores), Raul Jungmann (Defesa), Alexandre de Moraes (Justiça) e Marcos Pereira (Desenvolvimento, Indústria e Comércio). Parlamentares também acompanharam a comitiva da viagem, que começou pela Argentina. O presidente já está de volta.

Vamos lá. Eu sempre tenho receio quando se fala em reforma política sem que se diga o que se quer. Temo ou pelo amor ao perfunctório ou pelas atitudes desastradas. A barbaridade da proibição da doação de empresas a campanhas decorre, de fato, uma decisão do Supremo, mas é bom lembrar que a ideia prosperou, sim, no Congresso à esteira do moralismo burro que alguns tentaram colar à lava-jato. Esse moralismo boçal é sempre o túmulo da moral. Faz muito barulho e não serve pra nada. Obtém sempre resultados contrários àquilo que diz pretender.

Muito bem! As abstenções, votos nulos e votos brancos, quando somados, apontam para um número elevado, sim. Eu quero fazer reforma política, já disse. Acho que é preciso implementar o parlamentarismo com voto distrital. Mas eu quero mais: também reivindico o voto facultativo. Se votar é um direito que tenho, não posso ser punido se não exercê-lo. Isso é uma estupidez. O voto obrigatório numa sociedade democrática é uma excrescência.

Por que digo isso? A abstenção nunca foi tão alta? Pois é…Não obstante, o país nunca foi tão democrático. Como é que ficamos, então? Eu quero fazer uma reforma política, sim, mas não é para levar nem mais nem menos pessoas paras as urnas. Eu a defendo porque considero que o parlamentarismo com voto distrital cria melhores condições de o cidadão vigiar o poder e porque o modelo pode nos proteger contra crises. Ou melhor: um governo inepto ou ladravaz pode cair sem ameaça de crise institucional.

No tempo da ditadura, os eleitores compareciam quase religiosamente para votar — menos para prefeitos de capitais, governadores e presidente —, e, no entanto, por óbvio, a democracia não vivia crise nenhuma porque democracia não havia. Acho que Temer falou aquilo que sabia que queriam ouvir. Imaginem se ele diz: “Ah, esse negócio de abstenção não tem a menor importância”.

Então ficamos assim: a reforma política é, sim, importantíssima, mas não porque o poder enfrenta uma crise inédita de legitimidade como se diz por aí. Precisamos mudar porque o que temos é ineficiente. E eu insisto que uma reforma decente tem de contemplar o voto facultativo. E a abstenção será certamente maior do que hoje.

O digníssimo cidadão tem o direito de não querer participar da escolha desde que não reivindique o direito de desrespeitar a lei.

Simples.

O resto é papo de direitista autoritário, de esquerdista autoritário e de otário autoritário, uma categoria crescente e barulhenta.

Presidente Temer, tome a iniciativa de reunir os líderes políticos para tratar do parlamentarismo. Não seja apenas mais um cronista nesse debate. Já os temos em excesso.

Depois da surra, tudo é velório para o petismo

Desde que trocou o tino político pelos confortos de sua ex-presidência, Lula passou a ser movido por uma desastrosa autoconfiança. Na véspera da eleição, ele fez a defesa inconsciente do voto útil. Parecia decidido a convencer o eleitor a tomar qualquer decisão, desde que desse uma surra no PT. Lula foi a um comício do candidato petista à prefeitura de São Bernardo do Campo. E declarou o seguinte:

Carpideiras:
“Você que ouviu tantas vezes nos últimos anos a Rede Globo de Televisão agredir o PT, a imprensa criminalizar o PT, eu queria fazer um apelo pra vocês, homens de bem, mulheres de bem, trabalhadores e trabalhadoras: amanhã, na hora de votar, é importante vocês saberem que urna não é lugar pra depositar ódio ou preconceito. Urna é lugar pra depositar esperanças e sonhos…”

O contrário do antipetismo que Lula supõe existir no noticiário é o pró-petismo reivindicado por ele —um sentimento inocente, que aceita todas as presunções do PT a seu próprio respeito. Isso inclui concordar com a tese segundo a qual os petistas têm uma missão especial no mundo, de inspiração divina e, portanto, inquestionável.

Como qualquer religião, o petismo pode cultivar seus dogmas. Mas o desembaraço autocrático de Lula tem limites. Discurso que agride a realidade, trata a plateia como imbecil. E se a surra de domingo ensinou alguma coisa é que o brasileiro já não está disposto a avalizar a pretensão petista de ser uma potência ética, que só deve contas à sua própria noção de superioridade e ao seu destino evangelizador.

À beira da urna, Lula escancarou a impostura. Alguém que acaba de se transformar em réu por corrupção e lavagem de dinheiro, depois de 13 anos em que o Estado foi saqueado pelo seu partido e pelos esquemas que o acompanharam no poder, e ainda consegue ostentar a pose de vítima da imprensa ou é um cínico ou é um distraído. Em nenhum dos casos é um líder político que mereça respeito.

A declaração de Lula —“Urna não é lugar pra depositar ódio ou preconceito. Urna é lugar pra depositar esperanças e sonhos”— talvez seja citada no futuro como um resumo da ópera petista, como uma apoteose da incapacidade do PT de compreender o vexame em que se converteu. A reação das urnas foi compatível com a dimensão da ofensa.

Em certos momentos, o desalento pode ser justificável. O que ninguém aguenta mais é a esperança sem causa. O eleitorado ensinou a Lula que urna é lugar para depositar consciência. No Brasil, a eleição é loteria sem prêmio, é a ilusão de que é possível começar tudo de novo, do zero, para ver se finalmente dá certo. O voto vem se revelando um equívoco renovado a cada quatro anos. O eleitor pelo menos decidiu cometer erros novos.

Depois da surra de domingo, tudo é velório para o petismo. Aquele partido imaculado de outrora cometeu suicídio. O cadáver do ex-PT pode inspirar o surgimento de outro PT. Mas isso depende da disposição de Lula e de seus discípulos de protagonizar um gesto de contrição.

Uma expiação mais rápida teria feito bem ao PT. Mas o partido ainda não se deu conta de que o arrependimento é a última serventia do crime. A julgar pelo silêncio pós-eleitoral de Lula e do resto da seita, o PT talvez só descubra os prazeres do remorso depois que a autocrítica não adiantar mais nada.

Em tempo de indigência...

Nenhuma relação existe entre a minha profissão e os versos que faço. E não é esse o mal. O mal está no carácter desapaixonado, frio, mecânico do trabalho; na ausência de uma participação da inteligência e da sensibilidade na maioria das atividades profissionais; na servidão implacável do homem instalada no próprio cerne de uma civilização que se propõe, justamente, abolir a servidão. O mal é a ausência do homem. "O deserto cresce", dizia Nietzche. O deserto não cessa de crescer. 

One Size | Edgy art. Men if you happen to order one, please get the one which has a six pack.: Numa sociedade alienada até à medula, como a nossa, só a vagabundagem tem a força e o prestígio de um destino; mas vagabundo parece que não chega a ser profissão, salvo quando se tem conta farta no banco. Como não é o meu caso, e a poesia não dá para pagar o almoço, o jantar, e outra vez, e outra vez, até ao fim do mundo, parece não haver saída. 

Enquanto se não descobrir como há-de viver o poeta sem comer, não haverá solução para estas cigarras que persistem em sonhar alegria até ao seio da morte. A não ser que se ponha em prática o que Platão já aconselhava na República: desterrá-los, simplesmente. "Para que poetas em tempos de indigência?"
Eugénio de Andrade, "Rosto Precário"

País sem líderes


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É estranho que uma Nação com 206 milhões de habitantes, 31 anos de uma democracia que suportou bem dois processos de impeachment do presidente da República, 35 partidos políticos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), liberdade absoluta de opinião política e eleições a cada dois anos encontre dificuldades para construir novos líderes políticos. Mas essa é a realidade brasileira. Não há como fugir dela
João Domingos

Sic transit gloria PT

A expressão “sic transit gloria mundi”, atribuída ao monge agostiniano Tomás de Kempis (1418), cai como uma luva para a atual situação do PT. A se confirmarem as pesquisas de intenção de voto, o Partido dos Trabalhadores será varrido do mapa de todas as capitais brasileiras, exceção de Rio Branco, no Acre.

Segundo o Google, a frase era utilizada no ritual das cerimônias de coroação papal até 1963, quando o mestre de cerimônias, de joelhos diante do papa, dizia três vezes e em voz alta: “Pater Sancte, sic transit gloria mundi”. Estas palavras dirigidas ao papa, serviam como lembrete da natureza transitória das honras terrenas

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O PT, que imaginava que ouviria do povo brasileiro na sua “inexorável” vitória em 2018 “Pater Sancte Lula, sic transit gloria mundi”, não acreditou nesta sábia expressão. Pensou que, uma vez tendo atingido o poder, jamais seria dele apeado. E que seu líder seria entronizado e mandaria para sempre.

Não é o que está acontecendo.

Presidanta impedida, muitos dos seus amigos e correligionários presos ou acusados de corrupção, a principal figura do partido, Luis Inácio Lula da Silva, o mesmo do tríplex no Guarujá e do sítio de Atibaia e que já é réu de dois processos, viu desmoronar o seu castelo de cartas. Haja vista o que aconteceu em Campinas, quando menos de 1.000 pessoas comparecerem ao seu ato de apoio ao candidato Marcio Poshmann, que muito provavelmente perderá para Jonas Donizete.

Marcio Poshmann é uma exceção, já que os candidatos do PT noutras capitais fogem de seus símbolos máximos como o diabo foge da cruz, tentando tapar o sol com a peneira e cuspindo no prato que comeram.

A ex-presidente Dilma foi ao Rio apoiar sua amiga Jandira Feghali e o que aconteceu? A candidata do PCdoB viu seus índices de preferência afundarem ainda mais. Jandira, que faz parte da tropa de choque da Dilma no Senado junto com Gleisi Hoffmann, que também é ré, e Lindbergh Farias, ainda por cima é mal educada. Em pleno debate proporcionado de graça pela TV Globo, acusou a emissora de ter “apoiado o golpe contra a democracia e contra uma mulher eleita”. Uma grosseria sem tamanho, própria de uma pessoa radical que tendo perdido a sua causa perde também a compostura. Vai afundar ainda mais.

Em São Paulo não se viu o Lula participando de comícios em favor do seu poste Fernando Haddad, que está em vias de perder o importante reduto petista para o PSDB e correndo o risco de não ir nem mesmo para o segundo turno. Corre risco idêntico o candidato Celso Russomano, já que um vídeo no qual ele aparece dando apoio incondicional a Dilma em 2014 está bombando na internet.

Em Belo Horizonte, forte reduto petista, o candidato do PT tinha até quinta feira míseros 4% de intenção de voto.

Na minha terra, Porto Alegre, Raul Pont amarga um distante segundo lugar para Sebastião Melo (PMDB), e mesmo assim embolado com o brilhante deputado Nelson Marchezan Júnior (PSDB).

E assim vai pelo Brasil afora.

Talvez o melhor subproduto das eleições municipais de hoje seja o fim do PT. Os ideólogos do partido que diziam que o futuro da agremiação estaria intrinsecamente ligado ao sucesso do segundo mandato de Dilma tinham razão. O fracasso subiu-lhes à cabeça.

O próprio Lula disse recentemente que “não tem 2018 se a gente não tiver 2016”. Tomara que ele esteja certo,

Tarso Genro, um dos mais prestigiado quadros petista, que perdeu a reeleição para o governo do Rio Grande do Sul em 2014, vaticinou que o PT só sobreviveria se se reinventasse. Esta reinvenção poderia até mesmo contemplar a mudança de nome do partido, deletando a sigla de duas letras do cenário político nacional.

O povo não vai esquecer dos desmandos da administração petista que jogaram o país na maior crise da sua história. Uma crise não só econômica, mas uma crise moral e ética sem precedentes, talvez com efeitos mais devastadores sobre a sociedade do que qualquer outra.

Estamos assistindo o ocaso de uma era que gostaríamos de esquecer.

Há um consenso entre analistas políticos que as revelações da justiça sobre o papel de liderança de Lula no esquema criminoso operado pelo Partido dos Trabalhadores serviram para demolir não só a base do partido como também a figura do ex-presidente, cujo peso eleitoral está virando pó.

Talvez ele agora, dentro da sua conhecida soberba, possa ter a humildade de reconhecer como é fugaz a glória do mundo.

Ele e seu partido, que está caindo aos pedaços, vítima de seus próprios erros e condenado pelas urnas.

Que o PT descanse em paz.

Faveco Corrêa