quarta-feira, 13 de julho de 2016

Calma, ainda não é o fim

Vivemos um momento de refluxo. Apanhados no meio da confusão das águas, lutando para respirar, é natural que tudo isso nos pareça o fim do mundo. Talvez seja alguma outra espécie de fim, mas não do mundo, nem sequer, longe disso, da presente civilização. Se conseguirmos emergir um instante e afastar a espuma dos olhos perceberemos o quanto avançamos. O planeta era, ainda há poucas décadas, um lugar muitíssimo mais sombrio e perigoso. No final da II Guerra Mundial só havia em África quatro países independentes. Quando eu nasci, em 1960, o apartheid estava forte e firme, e os regimes democráticos pareciam delicadas e precárias excentricidades. Meia dúzia de estrelas brilhando numa noite escura. Muitas democracias estavam em risco, sobretudo na América Latina. Em vários países, incluindo o Brasil, os militares acabariam tomando o poder e instituindo regimes totalitários. Havia guerras explodindo por toda a parte. Os anos sessenta assinalam, aliás, o início da luta armada em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Olhando apenas para o mundo lusófono vivemos hoje uma paz inédita. Pela primeira vez na História não existe guerra declarada em nenhum dos territórios onde se fala a nossa língua. Além disso, todos esses países são formalmente democráticos. Bem sei que o regime angolano está longe de constituir uma democracia autêntica. Ainda assim, acho preferível uma ditadura disfarçada de democracia do que uma ditadura orgulhosa da sua condição. Numa ditadura disfarçada de democracia existe ao menos o reconhecimento público e generalizado da superioridade do modelo democrático.



Não estou a dizer que não enfrentamos perigos. Os perigos são muitos e o recuo é claro. Em Moçambique, têm-se verificado ao longo dos últimos meses confrontos (mais ou menos abafados) entre o exército e guerrilheiros do principal movimento da oposição. Não se pode aceitar que um partido com assento parlamentar mantenha soldados armados tantos anos após o fim da guerra civil. Por outro lado, também não se compreende o reiterado desprezo com que as elites urbanas do país insistem em tratar o resto da população, ignorando as reivindicações das províncias do norte. O novo presidente moçambicano, Filipe Nyusi, parece ser um homem honesto, idealista, não comprometido com a corrupção. O seu maior desafio será conseguir controlar a ala conservadora e corrupta do próprio partido, a Frelimo, a qual vê na crescente inquietação social uma possibilidade de o afastar e retomar o poder.

Em Angola, o presidente José Eduardo dos Santos prepara-se para passar o poder (todo o seu ilimitado poder) à filha mais velha, Isabel dos Santos, que se orgulha de ser a mulher mais rica de África. O primeiro passo terá sido a nomeação de Isabel para o cargo de presidente do conselho de administração da Sonangol, a (ainda) próspera, embora muito mal gerida, petrolífera estatal. A nomeação de Isabel foi recebida com enorme desagrado, gerando desconforto até no interior do partido no poder, o MPLA. Nos últimos dias o governo angolano libertou 17 jovens ativistas, num esforço para atenuar a inquietação generalizada. Os próximos tempos serão com toda a certeza muito agitados.

No universo lusófono (e para além dele) Portugal e Cabo Verde assemelham-se a minúsculos oásis de placidez. Um tédio. Um bendito tédio.

Grande parte da angústia e tumulto destes dias, no Brasil, em Angola, Moçambique, e por esse mundo afora, tem uma mesma origem: a democratização da informação, imposta pelas novas tecnologias, da qual resulta uma maior transparência. A classe política de todos os países em causa, corrupta até aos ossos, sente-se ameaçada e confusa. Rosna, mostra os dentes, e eventualmente morde. A médio prazo, porém, está condenada. Não sobreviverá.

Acredito que, passada a tempestade, virá uma longa e fértil bonança. Mas o temporal está aí, chove, venta e troveja, e os céus não se vão acalmar tão cedo. O mar vai agitado e é preciso que nos preparemos para enfrentar ondas ainda mais altas. Urge criar redes de reflexão globais. Escutar a juventude. Erguer pontes. Imaginar projetos de transição que possibilitem a todos os países em crise renovar as suas classes políticas, evitando guerras civis, e progredindo para democracias mais sólidas e sofisticadas.

Quando tudo vai bem é possível ignorar os sonhadores. Prescindir deles. Tratá-los como loucos. Mas em períodos como este, em que tanto está em causa, só o sonho, isto é, a imaginação, nos pode salvar. O que conseguirmos sonhar é porque pode ser feito — é porque tem de ser feito.

José Eduardo Agualusa 

\Macarthismo nas escolas

Nos anos cinquenta, os Estados Unidos foram varridos por uma onda de histeria, capitaneada pelo Joseph McCarthy, um senador republicano do Estado de Wisconsin, que via fluidos comunistas em tudo e em todos.

O termo macarthismo entrou para o dicionário como sinônimo de patrulha anticomunista, de utilização de alegações e técnicas injustas para cercear o pluralismo de ideias e inibir o pensamento crítico.

O Brasil vive algo semelhante na Educação, com a proliferação em várias casas legislativas – inclusive na Câmara Federal – de projetos de lei inspirados no programa Escola sem Partido.


Sob pretexto de combater a “doutrinação ideológica” dos alunos, tais projetos pretendem introduzir nas salas de aula o “monitoramento” pedagógico. Se aprovados, criarão um clima de caça às bruxas nas instituições de ensino. Claramente atentam contra a Constituição, particularmente quanto à liberdade de expressão.

E podem levar o sistema educacional a retroagir ao Brasil pré-República, quando o Estado brasileiro ainda não era laico. Entre outras aberrações, o projeto de lei Escola sem Partido, do deputado federal Izalci Ferreira, (PSDB-DF), proíbe professores a ensinar “conteúdos contrários às convicções religiosas ou morais dos pais”. Onde querem chegar?

A partir dos anos 80, as escolas viram-se diante novas responsabilidades, tendo ao mesmo tempo de fornecer um ensino de forte conteúdo e uma formação humanista, com vistas a preparar seus alunos para novos desafios da cidadania.

O mercado de trabalho do século vinte e um requer, por sua vez, profissionais com novos valores e habilidades, com espírito de liderança, capacidade de mediar conflitos e de entender a relação entre a parte e o todo.

O programa Escola sem Partido ignora esta complexa realidade.

Propõe, concretamente, um enorme passo para trás, por meio de uma escola "a ser tutelada pela família", como se as instituições de ensino tivessem usurpado o direito dos pais sobre a formação moral e religiosa dos filhos.

Inteiramente desprovida de senso, esta proposta cairia no vazio se não fosse o contexto de radicalização política e ideológica no qual o país mergulhou, logo após a disputa presidencial. Só encontrou terreno fértil para prosperar em função da onda conservadora e moralista que varre o mundo e cujos ventos chegaram também ao Brasil. O racismo que pinta com força lá fora, também está presente aqui, inclusive nas redes sociais, assim como a pregação do ódio e da intolerância.

Não por acaso, os arautos do Escola sem Partido voltam-se com especial rancor contra o que chamam de “ideologia de gênero”. Aqui, o nosso macarthismo tupiniquim se manifesta sem desfaçatez. Professores são colocados sob suspeita de direcionar a orientação sexual dos alunos quando abordam temas como homofobia ou sexualidade. Também enquadram no mesmo direcionamento decisões avançadas e progressistas de conselhos de educação que deram passos importantes por romper tabus na questão de identidade de gêneros.

Triste da Educação se cair na armadilha da falsa polarização direita versus esquerda. Ou se quiser patrulhar e julgar moralmente alunos e professores. A Associação Brasileira das Escolas Particulares– Abepar se posicionou no sentid o de condenar a “partidarização” nas salas de aulas. A entidade marcou posição manifestando o desconforto de “professores, coordenadores e mantenedores de escolas” com o projeto de lei do deputado Izalci Ferreira através de nota enfática:

“A democracia  é o valor maior que professamos, o que implica ampla aceitação das diferenças políticas, ideológicas, religiosas ou culturais. Acreditamos, assim, na pluralidade política e ideológica da sociedade brasileira. Entendemos, por isso, que iniciativas que visam interferir na sala de aula, ainda que bem-intencionadas, podem contribuir muito mais para punir a diversidade, o pensamento livre e a fomentar a exclusão do que a limitar a partidarização. ”

No passado, dizia-se que os comunistas comiam criancinhas. Hoje dizem que os professores fazem lavagem cerebral, ou melhor “assédio ideológico” nos alunos, o que pode dar cadeia, se for aprovada o projeto de lei apresentado por outro parlamentar do PSDB, deputado Rogério Marinho, do Rio Grande do Norte. O projeto prevê pena de três meses a um ano de prisão para quem cometer “assédio ideológico”.

O saudoso ministro Paulo Renato Souza -uma socialdemocrata de raízes e de contribuições ineg áveis para a Educação-, deve estar se revirando no túmulo com iniciativas retrógadas de parlamentares tucanos.

E os educadores brasileiros estão correndo o risco de serem vítimas de um macarthismo fora de hora nas salas de aula.

'Honesto', mas não pedinte

Todo dia alguém diz que vai falar o nome do Lula. Estão há dois anos investigando e duvido que se ache um empresário a quem eu pedi R$ 10
Lula, em Petrolina, na sua mais nova turnê 
Charge (Foto: Miguel)

Chamem o ladrão

O Brasil é um país contraditório. Um país rico, com uma população pobre. Um país em que pessoas de bem trancam-se em suas casas enquanto criminosos andam livremente pelas ruas. E agora, com o projeto de lei de crimes de abuso de autoridade, estamos diante do paradoxo absoluto: pretende-se transformar em lei a vontade do criminoso de prender quem o investiga.

No passado, com a indignação da população, diversos projetos de mordaça de autoridades foram derrotados. E essas propostas foram bancadas por políticos de todo o espectro partidário, pois se há um terreno comum a quem está no poder é o interesse de fazer calar investigações, sobretudo quando batem à sua porta.
Tornozeleiras
Agora surge um movimento muito mais insidioso, que se apresenta como se estivesse identificado com o interesse público. Sob o discurso da repressão do abuso de autoridade, que realmente acontece no dia a dia, mas não nas hipóteses previstas nesse projeto, pretende-se, em verdade, não apenas calar investigadores e juízes, mas paralisar investigações de criminosos do colarinho branco, especialmente aqueles que possuem poder político e que durante anos se beneficiaram de um vasto esquema de corrupção.

Essa prática de terror contra funcionários públicos, atemorizando-os com ameaças a sua liberdade, seu patrimônio e o seu bom nome, apenas demonstra o nível de degradação a que chegou o Estado brasileiro. Quem deve ser expurgado da vida pública não é quem investiga, nem o promotor que acusa, muito menos o juiz que julga, mas aqueles que recebem valores desviados do poder público, aqueles outros que vivem de negociatas com os poderes que a lei lhes defere, ou ainda aqueles que, por motivação ilícita, deixam de cumprir sua responsabilidade para com a população.

Isso fica ainda mais claro quando se percebe que o projeto ultrapassa o senso do razoável, senão do ridículo, criando amarras e limites àqueles que atuam contra o ilícito, estabelecendo punições desmedidas para condutas que não deveriam ser sancionadas. A tentativa de retorsão é ainda mais clara quando o projeto cria a hipótese anômala de ação penal privada, em que o criminoso é autorizado a buscar a punição dos agentes públicos que o investigam, em uma solução digna de Kafka.

Nesta verdadeira inversão de valores, o projeto ora em andamento, erigido como prioritário para ser colocado em votação, reflete na medida o interesse daqueles que estão acostumados a não ter suas condutas escrutinadas pela população e pela imprensa, quanto mais submetidas ao Poder Judiciário; daqueles que estão acostumados a ver a ação das autoridades apenas atender a seus interesses individuais; ou então alcançar apenas seus inimigos, agindo como garoto de recados sob suas ordens.

Quando isto não acontece, quando se veem tendo que justificar seus atos, quando são vistos pelos investigadores como cidadãos iguais a todos que são, como nos tempos presentes, estes integrantes da classe dirigente pregam a mudança da lei, brandem ameaças. Diz-se classe dirigente porque esta manobra não é de autoria apenas de políticos, mas de integrantes de vários estamentos da sociedade brasileira, que se articulam para fazer cessar as investigações, pelos mais variados motivos, todos espúrios.

Somente uma lei séria — coerente com a vontade da população, que estabeleça sanções para aqueles que abusam de seus poderes e com a finalidade ética que deve permear todas as atividades do Estado — pode prosperar. Enfim, cabe novamente à população repelir essa nova ameaça, permitindo a continuidade das investigações que lavam este país de norte a sul, doa a quem doer. Ou então aceitemos a contradição e, em vez do poder público, chamemos o ladrão.

Antonio Carlos Welter e Carlos Fernando dos Santos Lima

É cada um por si e Deus só por alguns

Ao renunciar à presidência da Câmara dos Deputados na semana passada, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi de uma precisão cirúrgica quando desqualificou a atual administração da Casa ao empregar a expressão “interinidade bizarra”. Com o morteiro disparado na direção do primeiro sucessor do presidente (também interino) da República, Michel Temer, o ex-ocupante do poderoso e honorável posto, “sem querer querendo”, como rezava o mote do protagonista de um dos maiores sucessos da televisão brasileira, o mexicano Chaves, definiu a esdrúxula situação sob a qual vivemos todos nesta atual barafunda.


Esta nossa República é tudo menos honrada, serena e lógica. Os três Poderes atuam como se vivessem em mixórdia e intromissão permanentes, um nos outros e vice-versa, chamando o nefasto resultado geral, cínica e equivocadamente, de “autonomia”. Esta se impôs sobre a “harmonia” na base do braço de ferro e do berro mais alto. Nas atuais circunstâncias e há bastante tempo, o lema “ordem e progresso” da Bandeira Nacional não descreve a desordem vigente, a ponto de dever ser substituído por “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Em relação a esse recado generalizado à cidadania, o povo, impotente, fica na condição do “salve-se quem puder” e o resto que se dane.

De acordo com chamada na primeira página deste jornal, domingo, o segundo maior fornecedor da campanha vitoriosa da reeleição da presidente afastada, Dilma Rousseff, Carlos Augusto Cortegoso – conhecido como “garçom do Lula”, por tê-lo servido nos anos de liderança sindical no Demarchi, famoso restaurante no circuito do frango com polenta em São Bernardo do Campo –, movimentou quase R$ 50 milhões naquele pleito. Ou seja, cinco vezes o valor que declarou. Assim, a chapa Dilma-Temer teria cometido, conforme relatório da Receita Federal, duplo crime: foi financiada por caixa 2 e, ao declarar que as doações eram legais, lavou o dinheiro sujo na máquina da Justiça Eleitoral. Um desplante!

Caso o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) constate o duplo delito na investigação que promove sobre a validade dos votos sufragados em 2014, terá de mandar presidente e vice entregarem o poder ao presidente da Câmara dos Deputados, seja ele quem for. Este terá 90 dias para convocar eleição direta para um mandato-tampão até dezembro de 2018, quando, então, já terá sido eleito seu substituto constitucional. Em sufrágio direto e universal, se a disputa for este ano, antes de ser completada a primeira metade do mandato dado como usurpado por abuso de poder econômico (e com uso de dinheiro público, o que é mais grave). Ou em eleição indireta, pelo Congresso, se a decisão for posterior.

Ocorrendo isso, em qualquer das hipóteses, falirá a lorota do “impeachment sem crime é golpe”, que mantém o fio inconsútil do que ainda resta do mandato de Dilma e do PT. Seu substituto constitucional, Michel Temer, eleito vice também de forma supostamente ilícita, sucumbirá junto. E levará no féretro a equipe econômica mais equipada para tirar o Brasil da crise e reconstruir a credibilidade do Estado. A Nação ficará, na hipótese, a reboque de algum aventureiro que emergir das urnas ou do painel do plenário parlamentar, ambos eletrônicos. Não será algo a se chamar de “o melhor dos mundos”. Muito ao contrário!

A eleição direta, única capaz de refletir a vontade popular, é volátil a ponto de ter inflado, de um lado, Jânio, Collor e Dilma, produtos da paixão popular por aventureiros que se fingem de faxineiros contra a corrupção e terminam enredados nos crimes que denunciavam. E, de outro, Fernando Henrique e Lula, representantes de grupos políticos consolidados que terminaram se dissolvendo numa cultura de ácido implacável que derrete idolatrias e reputações. O tucano foi abatido pela vaidade do segundo mandato. O petista, pela ilusão do fogo-fátuo da fortuna fácil.

O esfarelamento dos partidos, flagrado na disputa da presidência da Câmara por meio ano e meio mês, desmoraliza utopias como o parlamentarismo e suas variações “semi”. E revela o pragmatismo de chiqueiro na disputa pela proximidade da gamela em que é servida a lavagem. O baixo clero que elevou Cunha ao cargo que lhe permitiu abrir o impeachment da desafeta de última hora, Dilma, logo se desfez diante da evidente ausência de um mínimo de espírito público nele.

Waldir Maranhão, eleito vice na chapa vencedora por 80% dos pares, muitos dos quais certamente agora fingem tapar o nariz, entregou-se à farra do poder inesperado, participando de farsas tão absurdas como a tentativa de interromper o impeachment no Senado apenas pela vontade de seu líder, Flávio Dino (PC do B), governador do Maranhão. Ou seja, pelo projeto político de entregar o destino de uma das dez maiores economias do mundo à ditadura grotesca que produziu a excrescência albanesa, retrato de miséria política e econômica num continente abastado e plenamente democrático.

Para completar, o bizarro intendente interino tem mais dois diabos a servir. De um lado, Rodrigo Maia (DEM), herdeiro de César Maia, hoje sem relevância na política do próprio Estado, o Rio. E, de outro, pai Lulinha, cujo impávido colosso desmoronou sob sua imagem corroída por várias investigações policiais e jurídicas. Representante de um Estado sem peso político e econômico e incapaz de conduzir sessões da Câmara até o fim, Maranhão balança entre um prócer irrelevante e outro investigado pela Polícia Federal, pelo Ministério Público Federal e Estadual de São Paulo, sob a égide da Justiça Federal no Paraná e da Estadual em São Paulo. A bizarria do interino desfila entre o baile da saudade e a medalha olímpica dos saltos orçamentais.

A hipotenusa do triângulo é o Judiciário do “cada um por si e Deus só por alguns”, regime no qual a paridade de todos é submetida a privilégios que a promiscuidade assegura.

Day after

Relatos das internas dão conta de que o ex-presidente Lula está deprimido e apreensivo. Deprimido porque, longe do poder, já quase não o procuram para conversar. Como não sabe fazer mais nada, o ócio o afeta cruelmente. Sua única distração tem sido cantar senadores para que votem a favor de Dilma no impeachment, prometendo comparecer aos palanques deles nas províncias. Mas, se poucos querem a sua companhia num jantar, quem vai querê-la num palanque?

E a apreensão é pela sombra de Curitiba em sua biografia.


A querida Curitiba só dá desgostos a Lula. Desde que seus agentes literários, Marcelo Odebrecht e Leo Pinheiro, se mudaram para lá há um ano, cessou a procura por suas palestras, pelas quais recebia cachês com que homens como Albert Einstein, Bertrand Russell e Aldous Huxley, em seu apogeu no século 20, sequer sonharam. Mas, pensando bem, o que Einstein, Russell e Huxley tinham a dizer aos ditadores do Oriente Médio, América Central e África, principais plateias do palestrante Lula?

Impressionante como essas investigações estão afetando a vida profissional de tantos que, até há pouco, exerciam funções vitais na economia. José Dirceu, por exemplo, teve cortado o fio do escafandro que lhe permitia prestar assessoria a empresas e governos e lhe rendia comissões dignas de um herói do povo brasileiro. Como ficam os negócios desses investidores sem os contatos de Dirceu?

E como ficam os negócios de Dirceu sem os contatos do governo?

Sobrou até para uma escola de samba gaúcha, que um ex-tesoureiro do PT ajudava, dizem, com dinheiro do Ministério do Planejamento. Por gratidão, a escola bordava o nome do benfeitor em sua bandeira e compunha sambas-enredo em sua homenagem. Com a prisão do tesoureiro, a escola pode perder até a sua madrinha de bateria.

É o "day after" do poder.

Brasil, um país contraditório e surreal

O nosso é um país de contradições. Aprovamos quotas raciais em concursos para cargos públicos e para o acesso às universidades, mas continuamos matando cada vez mais negros, cada vez mais jovens. E, quando parece que estamos avançando, voltamos atrás.

Segundo relatório da ONG Anistia Internacional, entre 2007 e 2013 o número de homicídios decorrentes de intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro, um indicador importante de civilidade e de respeito aos direitos humanos, caiu de maneira ininterrupta. Mas a tendência positiva foi interrompida em 2014 e, desde então, não pára de piorar. Dos mortos, a grande maioria é de negros e jovens.

Os dados de outro relatório recente sobre a atuação de policiais no Rio de Janeiro, produzido pela Human Rights Watch, assustam. De acordo com a pesquisa, nada mais nada menos do que um quinto de todos os homicídios registrados na cidade do Rio de Janeiro no ano passado foi cometido por policiais.

Só em 2015, foram 645 pessoas mortas pela polícia. É claro que muitas dessas mortes podem ser justificadas com base na lei. Mas muitas foram resultado de balas perdidas e de execuções. Muitas foram de crianças, algumas que simplesmente estavam sentadas à frente das portas de suas casas ou caminhando pela rua. E o Rio de Janeiro não é uma exceção no Brasil. Segundo dados da Ouvidoria das Polícias de São Paulo, entre 2010 e 2016 as polícias civil e militar mataram pelo menos 191 menores de idade, sendo 10 destes com menos de 14 anos.

A Anistia Internacional lançou este mês um novo aplicativo para celulares, o “Fogo Cruzado”, por meio do qual qualquer cidadão pode registrar a ocorrência de tiroteios nos bairros do Rio de Janeiro. Também pode dar outras informações, como se há ou não vítimas fatais ou feridos. Um mapa colaborativo mostra o número e o local das ocorrências.

Outros aplicativos semelhantes, que nos acostumamos a usar nos nossos cotidianos, servem para ajudar a fugir de congestionamentos, informar onde há uma farmácia aberta de madrugada, ou um bom restaurante... Os cariocas agora poderão checar onde houve o tiroteio mais próximo e onde não ir para evitar balas perdidas.

Infelizmente, aqueles que moram nas periferias, os mais pobres, jovens e negros, continuarão sem ter para onde escapar. Continuarão no fogo cruzado.

O nosso não é apenas um país profundamente desigual, contraditório, e que volta ao passado quando parecia finalmente estar avançando. O nosso é um país surreal.

Comunidade carente


Eu moro numa comunidade carente 
Lá ninguém liga pra gente 
Nós vivemos muito mal 
Mas esse ano nós estamos reunidos 
Se algum candidato atrevido 
For fazer promessas vai levar um pau 

Vai levar um pau pra deixar de caô 
E ser mais solidário 
Nós somos carentes, não somos otários 
Prá ouvir blá, blá, blá em cada eleição 

Nós já preparamos vara de marmelo e arame farpado 
cipó-camarão para dar no safado que for pedir voto na jurisdição 
É que a galera já não tem mais saco prá aturar pilantra 
Estamos com eles até a garganta 
aguarde prá ver a nossa reação
Zeca Pagodinho

Cinco anos de prisão por um protesto contra a Vale

Em 20 de novembro, 15 dias depois do rompimento de uma barragem de mineração em Minas Gerais causar o maior desastre ambiental do país, um grupo de cerca de 30 pessoas realizou um protesto em Marabá, município do Pará onde moradores costumam se mobilizar contra ações de mineração executadas na região. Levaram para o trilho da Estrada de Ferro Carajás cartazes pintados à mão em solidariedade às vítimas do desastre e, segundo os organizadores, depois de cerca de 30 minutos foram embora. Por conta deste ato, Evandro Medeiros, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, poderá ser preso por até cinco anos.

Medeiros, professor da Faculdade de Educação do Campo, foi acusado de incitar o protesto e a ocupação dos trilhos pela Vale, uma das maiores mineradoras do mundo, alvo da manifestação, que além de ser controladora da Samarco -empresa que geria a barragem que rompeu em Minas Gerais- opera a Estrada de Ferro Carajás, por onde escoa sua produção da região. A empresa apresentou uma queixa crime na delegacia contra ele e, na semana passada, o professor foi indiciado sob suspeita dos crimes de "incitar, publicamente, a prática de crime", com pena prevista de até seis meses, e de "impedir ou perturbar serviço de estrada de ferro", com pena de até cinco anos.

Protesto nos trilhos da Vale que pode levar professor à prisão
Para o delegado Washington Santos de Oliveira, de Marabá, os indícios do crime do professor apareceram em fotos e vídeos do dia da manifestação enviados pela Vale. Nas imagens, o professor aparece falando ao microfone, o que caracterizaria sua liderança do ato, e os manifestantes estão sob a linha férrea, cometendo um ato que poderia "resultar em desastre", crime previsto pelo artigo 260 do Código Penal, que versa sobre o perigo de desastre ferroviário. "A Constituição assegura o direito de reunião e de livre manifestação, mas eles se encontravam em linha férrea, que tem essa proteção legal. O mero fato de eles estarem no trilho resulta em crime de perigo de desastre ferroviário", explica.

A Vale acusa o protesto de ter impedido o transporte de cargas e de passageiros. Em um acordo com o Governo federal, a empresa disponibiliza um trem uma vez ao dia para levar pessoas em um trajeto que liga Parauapebas (Pará) e São Luís (Maranhão), o mesmo feito por sua produção de minério. "Em casos de obstrução da linha férrea, a empresa precisa adotar os procedimentos judiciais para preservar o direito de propriedade e a manutenção do transporte de cargas e passageiros", disse a mineradora, em nota. A empresa também entrou com um processo civil contra o professor, a quem acusa de organizar o protesto.

Lula utiliza contra Michel Temer veneno vencido

Em viagem ao município baiano de Juazeiro, Lula criticou o plano do governo de Michel Temer de levar parte do patrimônio público ao martelo para reduzir o rombo nas contas da União. “Eles estão tentando criar condições para Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica serem vendidos. Eles não sabem governar e precisam vender o patrimônio público. Mas eles podem saber o seguinte: eu sei'' governar.

Obrigado pela crise a aposentar o triunfalismo do ‘nunca antes na história desse país’, Lula perdeu a agenda e o discurso. Sem assunto, foi deselegnate e desconexo. Perdeu a elegância ao expor seu desejo de voltar —‘eu sei’ governar— num instante em que Dilma luta pelo mandato. Desentendeu-se com o nexo ao usar contra Temer o mesmo veneno privatista que usava no passado para tirar o tucanato do eixo.


Lula não se deu conta de que esse tipo de secreção venenosa está com o prazo de validade vencido. O bom-senso indica que não convém gritar incêndio no teatro. Do mesmo modo, Lula não deveria gritar ‘teatro!’ no incêndio. Se as chamas da Lava Jato revelam alguma coisa é que o caso da Petrobras e dos bancos públicos é de reestatização, não de privatização. Levados ao balcão sob Lula e Dilma, esses pedaços do Estado foram desossados e desestatizados.

Lula voltou a chamar impeachment de “golpe”. E atribuiu a Eduardo Cunha a ruína que carbonizou a gestão-companheira de Dilma. Disse que a economia “desandou de 2015 para cá, sobretudo porque elegeram um cidadão como presidente da Câmara que se utilizou do cargo para atrapalhar a Dilma a governar este país.'' Referia-se a Eduardo Cunha: “Me parece que agora ele está para ser cassado''.

O morubixaba do PT esqueceu de mencionar que Cunha virou problema lá atrás, ainda no governo Lula, quando recebeu do petismo salvo-conduto para instalar nos cofres de organizações como a Petrobras e a Caixa os dutos que drenaram verbas públicas para suas contas secretas na Suíça.

Lula e Stalin, os deuses que falharam

Em “O homem que amava os cachorros”, o escritor cubano Leonardo Padura reconstrói a atmosfera de perseguição montada por Stalin, nas décadas de 1930-50, a Trostski e seus outros inimigos. A perseguição se dava no nível físico (espiões, policiais, caça-recompensas) e no moral, por meio de mentiras, intrigas, aleivosias e canalhices diversas. Stalin fazia ainda uso de cães intelectuais — em geral gente em busca de glórias efêmeras, como um prêmio ou um elogio — na desconstrução de seus adversários. Não vem à toa a admiração de Hitler pelo regime soviético: o nazismo fará uso de seus vira-latas provocadores (exemplo: a turma que avançou sobre Janaina Paschoal) e Stalin forjará o oportuno Inimigos do Povo (exemplo: a campanha contra ex-petistas como Fernando Gabeira e Luiza Erundina). O nazismo muito deve ao stalinismo (exemplo: Marilena Chauí difundir que Sérgio Moro é filhote do FBI e os SS digitais repercutirem a difamação).

Padura fornece ao leitor um retrato do clima policialesco criado por Stalin. São creditados nas costas de Trotski, mesmo exilado e banido, o poder de uma hipotética conspiração, a autoria de documentos apócrifos... Tudo balela. Cena construída para distrair os militantes dos reais motivos do desastre econômico perpetrado por Stalin e sua megalomania estatista. Depois, Stalin jamais foi marxista e só foi de esquerda (oportunista) até chegar ao poder (exemplo: nunca antes neste país...). Lá, usurpou o sonho de vários gerações. Muitos deram suas vidas por acreditar estarem defendendo a revolução e ainda lutaram contra o que julgavam ser o jogo da direita (exemplo: fazer vaquinha para pagar a multa do companheiro José Dirceu e depois carregar seu cadáver político, de boca fechada).

Os paralelos com a história política brasileira atual são assustadores. Padura recriou o Brasil clivado por ideologias de apostilas ao contar a história de Trostski e seu algoz, Ramón Mercader: as falsas informações plantadas na imprensa mundial (os amigos dos cães), os supostos complôs (olha o pré-sal aí, gente), com o objetivo de atiçar na militância ralé (a turminha do Facebook) um ódio contra o ex-dirigente da Revolução Russa, que passa a apupar sua biografia sem entender nada do riscado (exemplo: Trotski caiu ao propor uma plataforma econômica em interação com as forças do mercado. Stalin o satanizou. No poder, depois de ver seu barco estatal afundar, Stalin praticou... a política defendida por Trotski, de braço dado com o capital internacional. Você pode pensar em Dilma/Joaquim Levy e Lula/Henrique Meirelles e não estará errado). Vale lembrar também que a visão econômica de Stalin era identificada como sendo nazinacionalista. Stalin era o sonho de Hitler.

As mentiras urdidas por Stalin repercutiam facilmente. Os intelectuais se calavam. E quando ousavam... Foi o caso de André Gide, escritor francês e militante de esquerda. Após visitar a convite a União Soviética em 1936, percebeu a arapuca e denunciou o engodo. Afinal, acreditava, era seu dever alertar as forças de esquerda que Stalin era tão-somente um ditador, e nada tinha de progressista (o Brasil não conhece o Brasil...).

Pobre Gide. Até então, seu homossexualismo não fora um estorvo nas fileiras da Causa. Segundo os stalinistas, como se poderia acreditar num escritor que tinha o hábito de gostar de homens? Era traidor... e gay. Trinta anos depois e milhões de mortes, Kruschev repetiria o mesmo diagnóstico de Gide. Sabe, o que aconteceu? A ficha só caiu em 1989, quase 40 anos depois e outras milhares de mortes.

Miguel De Almeida