sábado, 2 de julho de 2016

Golpe, se há algum, está sendo dado pelo Judiciário

Golpe, se há algum, está sendo dado pelo Judiciário – mais especificamente, pelo STF. O habeas corpus concedido pelo ministro Dias Toffoli ao ex-ministro Paulo Bernardo – e sobretudo os termos com que o justificou – foi uma ducha de água fria na Lava Jato.

Aplicada aos demais, esvaziará as prisões de Curitiba. O mesmo STF que estabeleceu a prisão em segundo grau – isto é, antes que a sentença transite em julgado -, desfez, via Toffoli, o instituto da prisão preventiva. Haja paradoxo.

Paulo Bernardo, acusado de desviar R$ 100 milhões de pensionistas e aposentados – dinheiro que a polícia ainda não sabe onde está -, tem agora meios de desfazer provas e garantir a ocultação do que amealhou. Para ele, a liberdade, sim, é preventiva.



Anteriormente, ainda em princípios da Lava Jato, o STF mandou soltar Renato Duque, que tornou a ser preso, dias depois, por estar fazendo exatamente o que a sentença de Sérgio Moro tentara evitar: movimentando uma conta secreta em Mônaco, fornida pelas propinas da Petrobras. A lição, pelo visto, foi inútil.

O ativismo político do STF, que dificultou o quanto pôde o rito do impeachment no Congresso, sobrepondo-se à lei, o torna caudatário do desgaste de que o conjunto das instituições do Estado hoje padece. O caso Paulo Bernardo não é o mais grave.

Teori Zavaski, que cuida dos que, envolvidos na Lava Jato, têm foro privilegiado, foi severo em relação ao juiz Sérgio Moro, por ele ter divulgado o áudio de Lula, em que Dilma lhe dá o salvo-conduto da nomeação ministerial para que não seja preso.

As gravações dos telefonemas de Lula estavam autorizadas pela Justiça. Incidentalmente, Dilma ligou para ele. Não houve violação do sigilo da presidente. Em situação análoga, em 2012, o mesmo STF reagiu de maneira diferente, quando os grampos da Justiça flagraram uma conversa entre o contraventor Carlos Cachoeira (novamente preso) e o então senador Demóstenes Torres.

Demóstenes, como Dilma, tinha foro privilegiado, mas pagou o preço de estar conversando com um investigado. Nem de longe se cogitou de anular a eficácia daquela prova pelo fato de o senador ter sido fortuitamente capturado pelos grampos de uma autorização judicial de instância abaixo da que a lei lhe reservava.

No caso de Lula, apelou-se para uma ridícula minudência: a autorização havia cessado duas horas antes, embora a notícia não houvesse chegado ainda aos agentes e à telefônica – um lapso de tempo inevitável. Prevaleceu o rigor burocrático contra a gravidade do que fora captado. Lula e Dilma adoraram. Deixaram de ser vilões (não obstante o ato imoral que protagonizaram) e tornaram-se vítimas. De quebra, Sérgio Moro levou uma bronca pública.

E não só: Teori requereu tudo o que havia contra Lula, mesmo não tendo ele foro privilegiado, já que sua nomeação ao ministério fora suspensa pelo mesmo STF, por uma liminar do ministro Gilmar Mendes. Desde então, lá estão os processos contra o ex-presidente, sem que haja qualquer explicação para esse privilégio. Ele não é e não foi ministro e já não há o governo a que ele serviria.

A impressão que fica é de que a Lava Jato incomoda o STF, que, sempre que pode, age para detê-la. A presidente afastada Dilma Roussef repetia – e isso foi reiteradamente registrado na mídia, sem que houvesse desmentidos - que tinha seis votos no STF.


Não é difícil para quem acompanha o noticiário identificá-los. E Dias Toffoli, ex-advogado do PT e ex-assessor de José Dirceu, integra a lista dos, digamos assim, suspeitos. Igualmente, outros capturados por gravações – Delcídio do Amaral, Aloizio Mercadante, José Sarney – mencionaram ligações com ministros do STF para tentar sustar denúncias e processos. A reincidência, confrontada com atos como os de Teori e Toffoli, dá verossimilhança às suspeitas.

A presteza com que o tribunal agiu contra Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro – este, goste-se ou não dele, sem qualquer fundamento legal -, não se repete em relação a outros nomes, com protagonismo na defesa do PT.

É preocupante que a instituição que deveria pairar acima dos conflitos políticos, para poder arbitrá-los, tenha se tornado partícipe desse mesmo processo, perdendo a confiança da sociedade. Não é um antídoto contra a crise. É, hoje, parte dela.

'Sépsis' é mais do que o nome de uma fase: trata-s de uma leitura política

Por que o nome da nova fase da operação Lava-Jato é “Sépsis”? É uma boa questão. Isso traduz menos uma especificidade desta fase do que uma avaliação que é de caráter político. Explico. “Sépsis” significa a presença de elementos patogênicos num organismo, especialmente aqueles que provocam pus. Um bom sinônimo é infecção. Eis a origem da palavra septicemia, que é a infecção generalizada. Na origem grega, o vocábulo designa “putrefação”.

A fase “Sépsis”, como vocês poderão constatar, é espalhada, infesta o organismo todo, tem vários focos. Num possível eixo, há Fábio Cleto, um homem ligado a Eduardo Cunha, mas não só. A febre vem também de outros lugares.


Um dos delatores, por exemplo, Nelson Mello, afirmou ter doado, por meio de contratos fictícios, R$ 5 milhões em caixa dois para a campanha do senador Eunício Oliveira ao governo do Ceará em 2014. O pagamento teria ocorrido a pedido do lobista Milton Lyra, que foi alvo de buscas determinadas pelo Supremo Tribunal Federal nesta sexta. Ele é ligado à cúpula do PMDB no Senado.

Em acordo de delação premiada, Mello contou ainda que procurou a Lava-Jato de moto próprio, depois de perceber que “ultrapassara os limites morais e éticos” ao efetuar pagamentos a Lyra. Segundo o delator, ao tomar consciência dos erros, ele teria ficado incomodado e resolveu procurar o Ministério Público. Data vênia, acho história da Carochinha. Mas não me perco nisso agora.


A dita fase “Sépsis” expressa uma convicção e uma leitura da realidade: todo o organismo político brasileiro está contaminado, nada escapa. Notem que a Lava-Jato vai virando uma matrioska, aquela boneca russa, mas com uma singularidade: de dentro de uma, sempre sai outra, como a original, mas ela também gera rebentos novos.

A cada dia, o encaminhamento das investigações e das delações — e os procuradores dizem que não se investigou nem a metade — aponta para a inexistência de partidos e políticos ao mesmo tempo viáveis e honestos. É a infecção. É o corpo doente. É a putrefação.

O Ministério Público Federal, ou parte dele, julga ter o remédio adequado, o único antibiótico cabível, que são as suas 10 Medidas Contra a Corrupção — ainda volto ao ponto. Algumas delas não vigoram nem em ditaduras. Mas a mensagem está dada: se querem salvar o corpo doente, tem de ser um remédio radical.

Essa matrioska apresenta ainda outra particularidade. A de verdade tem uma última bonequinha. A Lava-Jato não! É claro que a Sépsis vai levar a novos criminosos, que, por sua vez, podem fazer delação, comprometendo outros tantos. Em breve, será preciso fazer o Manual das Operações de Nomes Significativos da Força-Tarefa. Mais um pouco, o Brasil vira a Casa Verde de Itaguaí, do conto “O Alienista”, de Machado de Assim. Quase não sobra ninguém fora da cela.

“Ah, então vamos parar tudo?” Não! Que se investigue tudo. Mas talvez seja o caso de um pouco de método. É só uma consideração. Pessoalmente, não me importo que vá até o último homem…

Só acho que é preciso tomar cuidado com a ideia da “Sépsis”. Já escrevi aqui uma vez: eu nunca gosto quando questões que dizem respeito à política e à sociedade são associadas a doenças, especialmente as que costumam ser acompanhadas de amputações, né?

Melhor é a gente achar, e lutar por isto, que as coisas têm remédio. E que, como dizia Padre Vieira, é sempre bom ter o remédio que remedeia os remédios.

O bangue-bangue é nossa versão do terror

Quem desiste de viajar para a Turquia porque o terrorismo islâmico matou quatro dezenas no aeroporto internacional não pode ignorar uma terrível constatação. No Brasil, vivemos um bangue-bangue sangrento que mata inocentes, bandidos e policiais. Com muito mais vítimas do que as produzidas por guerras convencionais e atentados. É o terror na versão verde-amarela de “ordem e progresso”.

Agora, foi a vez de Jhonata Dalber Matos Alves, de 16 anos, ser morto com uma bala na cabeça e com um estojo escolar e um saco de pipoca na mão. Aconteceu no Morro do Borel, na Tijuca, no Rio de Janeiro. “Meu filho tinha ido à casa do tio, com dois amigos, para buscar pipoca para uma festa junina”, disse a mãe, Janaína. “A minha vida acabou!” A versão oficial é que a polícia atirou “na direção de bandidos que passavam e um tiro acertou o menino”. Moradores negam confronto. Há uma UPP no Borel desde 2010. Mas a “pacificação” acabou faz tempo, muito antes de ser concluída.


Vinte e nove crianças e adolescentes de menos de 19 anos são mortos por dia no Brasil, segundo um novo estudo oficial, que usa como base o ano de 2013. Hoje, esse total deve ser maior. O gráfico é assustador. São 10.520 homicídios por ano. É mais de um jovem morto por hora. É um extermínio. Deveria ser decretado estado de calamidade pública no país e não só nos Estados falidos. É o que mostram os últimos números.

No Estado do Rio de Janeiro, quase dobrou, de abril para maio, o número de mortes em confrontos policiais, de 44 para 84 – vários, sabemos, são forjados para que os PMs não sejam acusados de homicídio. Os roubos seguidos de morte pularam de oito para 16. Somados, os roubos de rua chegaram a quase 10 mil num mês – um assalto a cada quatro minutos. Uma dermatologista de 34 anos morreu com um tiro na cabeça, atacada por bandidos na Linha Vermelha. Ela acabara de inaugurar um Centro de Acolhimento ao Deficiente e voltava para casa. Planejava blindar o carro em julho. O governador Francisco Dornelles chamou sua morte de “um desastre”. Desastre?

Policiais também são assassinados como nunca: 54 no Rio só neste ano – no ano inteiro de 2015, foram 16. O PM José Alves dos Santos, de 31 anos, da UPP de Manguinhos, foi morto com cinco tiros na Zona Norte do Rio. Duas inscrições no carro: CV, de Comando Vermelho, e “morre PM”. Teria sido vítima de falsa blitz montada por traficantes.

A insatisfação e o medo levaram policiais civis a parar e erguer faixa em inglês no aeroporto internacional do Rio. Traduzindo: “Bem-vindo ao inferno. Policiais e bombeiros não são pagos. Qualquer pessoa que vier ao Rio não estará segura”. O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, disse que os ataques a policiais “são um verdadeiro ato de terrorismo”. Não vi a Secretaria de Segurança chamar de “terrorismo” o que nós, cidadãos, vivemos.

Ao terror, as forças de segurança do Rio e de São Paulo respondem com mais terror. Agentes do Bope no Rio ignoraram a proibição constitucional de buscas domiciliares à noite e levaram o pânico a quatro favelas do Complexo da Maré. A operação, com blindados, se estendeu madrugada adentro: 150 alunos de uma ONG ficaram encurralados durante três horas. Sitiados. Tudo porque os policiais querem se vingar do resgate humilhante do chefão Fat Family de um hospital público.

São Paulo não fica atrás. PMs e até guardas municipais fuzilaram carros sem saber em quem estavam atirando. Num deles, um tiro na nuca matou o menino de 11 anos Waldik Gabriel Chagas, que estaria num carro com dois adolescentes que fugiram. “Matou meu filho, pagou fiança e foi para casa”, disse o pai de Waldik, motorista de caminhão, separado da mãe.

No outro carro, atingido por 16 tiros em São Paulo, estava um universitário de 24 anos, Julio Cesar Alves Espinoza. Voltava para casa após trabalhar em um bufê. Não parou na blitz talvez por ter várias multas, que tentava pagar com o trabalho noturno. PMs afirmam que o rapaz atirou e eles reagiram. Uma testemunha diz que um policial entrou no carro e disparou de dentro para fora, para simular confronto. Julio morreu com um tiro na cabeça.

Na semana que vem, será morto outro garoto, outra mulher, outro policial. Porque está tudo errado. Policiais são afastados, depois voltam. Mães e avós, com bebês e crianças, fazem fila de madrugada, lutando por vaga na creche ou escola. Os sem-teto e desempregados lotam albergues para alimentar a família. Os traficantes dominam áreas carentes num país em que se rouba de tudo, de merenda a remédio, verba de cultura e obras, contracheque, Fundo de Garantia. Bilhões de reais precisam voltar aos cofres públicos para dar paz e dignidade aos brasileiros. Esse é o verdadeiro golpe que viola a Constituição e saqueia nossos sonhos.

O indulto de Dirceu

Existe uma divergência de entendimento jurídico entre os comandantes da Lava Jato em Curitiba e o Ministério Público em Brasília. Enquanto o juiz Sérgio Moro denuncia mais uma vez José Dirceu por corrupção e lavagem de dinheiro, o Procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pede o indulto do petista pela condenação que ele sofreu do mensalão, em um parecer rebuscado, de difícil entendimento para os comuns dos mortais. A coincidência é que tudo ocorreu no mesmo dia para constrangimento dos procuradores que investigam o ex-ministro.

Dirceu, que já está condenado a mais de vinte anos de prisão, pela sua conduta no presídio, não parece merecer o indulto oferecido por sua companheira de partido, a presidente afastada Dilma Rousseff, que também beneficiou outros mensaleiros. Pelas investigações da Lava Jato, Dirceu, mesmo preso, infringiu à lei porque continuou recebendo propinas do dinheiro que era roubado da Petrobrás pelos ex-tesoureiros do PT, como descobriu os procuradores de Curitiba.

Ao denunciar mais uma vez Dirceu, o juiz Sérgio Moro, disse que havia indícios fortes da participação do ex-ministro em mais uma maracutaia. Afirmou o magistrado em seu despacho: “Presente, portanto, justa causa para a imputação, a justificar o recebimento da denúncia. Presentes indícios suficientes de autoria a materialidade, recebo a denúncia contra os acusados acima nominados”.

A acusação agora é que Dirceu teria recebido 2 milhões de reais em propina do esquema da Petrobrás, gerenciado por Renato Duque, diretor que o petista apadrinhava dentro da estatal. Constatado o ilícito, Dirceu será certamente julgado mais uma vez por Moro, que tem sido implacável com os ladrões das empresas públicas.

Com todos esses crimes nas costas, é no mínimo estranho que Rodrigo Janot solicite ao STF o perdão da condenação de Zé Dirceu quando ele continua sendo investigado pelos procuradores da operação Lava Jato por outros malfeitos. Além disso, ainda pesa contra o ex-ministro de Lula a acusação gravíssima de que, mesmo depois de condenado, ele continuou operando dentro da cadeia com os seus comparsas da Petrobrás e em outras empresas públicas, de onde recebia milhões em propinas.

Há, na verdade, uma contradição jurídica entre o que se investiga em Curitiba e o que se decide na Procuradoria-Geral da República. O indulto, se concedido pelo STF, permitiria que Zé Dirceu respondesse apenas pela última condenação, o que facilitaria a sua saída da prisão em pouco tempo por bom comportamento e por cumprir uma parte da pena. Os procuradores que estão à frente da Lava Jato, pensam diferente: Zé Dirceu, considerado o chefe da organização criminosa, ainda terá que responder por outros crimes e, se condenado por todos eles, terminará seus dias na cadeia. É assim que pensa também o povo brasileiro que viu seu patrimônio ser dilapidado pela quadrilha petista que, como aves de rapinas, devorou os bilhões das empresas estatais no maior escândalo de corrupção já acontecido no país.

Para que esses petistas paguem por seus crimes e não fiquem impunes, Janot e Moro devem trabalhar em parceria visando a convergência jurídica entre as duas investigações. Pelos menos é assim, com um trabalho harmonioso, que os brasileiros esperam pela condenação desses gangsteres, já que não verão todo o dinheiro saqueado por eles voltar aos cofres públicos.

Jorge Oliveira

A cada um, a sua ditadura

Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade! A dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura 
Nelson Rodrigues

Quem acredita que o Supremo pediu a Renan uma lei ditatorial que já existe?

Como bem registrado por nosso editor, jornalista Carlos Newton, é preciso investigar para saber se esse tal projeto de lei que visa punir membros do Ministério Público por abuso de autoridade partiu mesmo do Supremo Tribunal Federal, como declarou o presidente do Senado, Renan Calheiros. O STF é o órgão máximo do Poder Judiciário nacional. E segundo o artigo 61 da Constituição Federal, ao STF também é dado o credenciamento para dele partir a iniciativa de leis complementares e ordinárias.

Mas daí a dizer que essa tal lei, com 45 artigos, foi “pedida” pelo STF é preciso que Renan diga quando isso aconteceu e se o STF mandou uma minuta, os motivos, os considerandos, ou seja um esboço da lei ao Congresso.

É muito estranho, muito suspeito e muito inacreditável que o STF, do alto de sua majestade, enviasse ao Congresso proposta para submeter membros do Ministério Público a uma lei que importa estabelecer limitações e severas punições aos membros de uma instituição cuja missão constitucional é a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
 Além disso — e muito mais que isso — o Ministério Públco é instituição essencial à função jurisdicional, é instituição única, indivisível e com independência funcional. Ninguém, absolutamente ninguém ingressa na carreira de promotor de justiça sem concurso público.

Ninguém acorda advogado e vai dormir promotor público, apenas por indicação política, por ter reputação ilibada e notório saber jurídico. Nenhum promotor de justiça no Brasil ingressou na carreira de “paraquedas”.

Tem o MP autonomia funcional e administrativa e a atuação de seus membros não pode sofrer coação nem intimidação por legislação oportunista e casuísta, como essa que Renan disse que vai ser votada “a pedido” do STF.
O Ministério Público da União compreende os MPs Federal, do Trabalho, Militar, do Distrito Federal e Territórios e os Ministérios Públicos dos Estados. Seus membros são guardiões da execução e comprimento das leis. São os defensores do coletivo da sociedade. E como não poderia deixar de ser, a atuação deles é imprescindível e absolutamente necessária para que as autoridades públicas-políticas não cometam corrupção, não é mesmo doutores Deltan Dallagnol e Carlos Fernandes de Souza?

Aliás, nem precisa votar e aprovar esta tal lei de 45 artigos, segundo Renan, “pedida” pelo STF. Isto porque já existe a Lei nº 4898, de 9.12.1965 e que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, cível e penal, nos casos de abuso de autoridade dos próprios membros do Ministério Público.

É lei do regime ditatorial. São 29 artigos certamente muito mais rigorosos do que esses outros 45 da tal lei que Renan diz que o STF “pediu”. Na lei 4898 tudo está previsto no tocante às responsabilizações administrativas, cíveis e penais.

O emprego de algema a quem é preso não constitui constrangimento algum. Primeiro, porque a algema visa a proteção da própria pessoa presa, que fica impossibilitada de usar as mãos para agredir e até mesmo, de forma inesperada, desarmar os policias que a escoltam e usar a arma deles tomada e atentar contra a própria vida e a vida dos outros. Segundo, porque somente as pessoas honestas e de bem é que se sentiriam constrangidas se fossem presas e algemadas sem motivo algum.

De resto, essa outra gente não tem sentimento, menos ainda constrangimento, não é mesmo Jorge Zelada, José Dirceu, Pedro Barusco, Paulo Roberto Costa…?
No que diz respeito ao sigilo dos inquéritos policiais, isso já consta no Código de Processo Penal. Também sobre a divulgação de gravação de conversas telefônicas feitas com prévia autorização judicial, lei já existe a respeito, somente permitindo a divulgação com a autorização judicial.

É preciso ter em mente e ficar registrado que uma investigação policial e/ou do Ministério Público, quando visa apurar a prática de crimes contra o dinheiro e o patrimônio públicos, contra o erário nacional, isto é, quando está em causa investigação de interesse público, nada pode ser escondido das vítimas. E vítimas somos nós, o povo brasileiro, que devemos ser sempre os primeiros a saber o que aconteceu de verdade, o que já foi feito, o que está e o que será feito para identificar, processar e submeter a julgamento os autores dos crimes.

O sigilo somente é admissível quando o alvo é um menor infrator, ou quando disser respeito às questões de família, que não são do interesse público.

Andar na linha: um grande desafio para o Brasil

“Cada povo tem o governo que merece”. Ouvir essa assertiva é bastante comum quando o assunto envolve a corrupção generalizada que assola nossa classe política, especialmente com o advento das redes sociais e seu potencial de difundir os repulsivos pormenores dos cada vez mais frequentes escândalos desenredados pelos órgãos de investigação e imposição da lei. Levando-se em conta a disposição do brasileiro médio em descumprir normas, como furar filas ou burlar o Imposto de Renda de Pessoa Física, costuma-se inferir que, na verdade, os agentes políticos que desviam bilhões do orçamento público não são muito diferentes de nós, pessoas comuns, mas apenas tiraram proveito de oportunidades as quais, em seu lugar, também capitalizaríamos em proveito próprio. Quer dizer, portanto, que somos todos “farinha do mesmo saco”? É difícil concordar com tal desvario, especialmente porque fazê-lo implicaria em aceitar que somos todos possuídos por espíritos vigaristas, e que nossa cultura jamais permitirá que possamos viver um dia sem reportagens dando conta de suborno e propina no noticiário. Prefiro ponderar que ocorre justamente o oposto: o exemplo ruim vem de cima, contaminando toda a sociedade e desmotivando o cidadão a observar a legislação pátria.

Pulverizar a responsabilidade por um crime entre todos os membros de uma coletividade é uma prática bastante disseminada no Brasil. Quando um bandido mata uma pessoa em um latrocínio, sempre surgem vozes bradando que a culpa por aquele delito pertence a todos nós, na medida em que permitimos que pessoas de baixa renda vivam sem o mínimo necessário para que usufruam de uma vida digna. Sem nem aprofundar-me no mérito de que tal argumento representa, no mínimo, preconceito contra os despossuídos (e cria a sensação, no homicida, de que ele tem o “direito” de puxar o gatilho), indago: então a culpa por atos de corrupção também deve ser dividida entre todos os eleitores que escolheram determinado representante desonesto? Essa mentalidade coletivista deturpa o fato de que a pena por um crime não deve passar da pessoa do condenado, e apenas contribui com a sensação de impunidade vigente em nosso país. Votos obtidos junto a eleitores de boa-fé (sejam eles 54 milhões ou quantos forem) não podem ser usados como salvo conduto para transgressões, ou mesmo para compartilhar a autoria de malfeitorias.

Se assim não fosse, então o que se poderia esperar dos cidadãos do Paraná, por exemplo, nas eleições estaduais de 2014, notadamente para o cargo de Governador? A eles foi apresentado o seguinte “cardápio”: Gleisi Hoffmann – indiciada pela Polícia Federal, juntamente com seu marido Paulo Bernardo (que chegou a ser preso) por corrupção na Lava Jato; Roberto Requião – envolvido nos crimes apurados pela operação “Custo Brasil”; e, finalmente, o escolhido Beto Richa – contra quem o Superior Tribunal de Justiça autorizou abertura de inquérito para investigar suposta relação com esquema de corrupção (ele teria recebido doações ilegais). Qualquer um dos candidatos acima elencados desonraria as atribuições de chefe do Executivo estadual. Faz sentido, pois, acusar os paranaenses de terem votado errado naquela eleição, desviando o foco, desta forma, do verdadeiro problema (criminosos possivelmente saindo incólumes após lesarem tantas pessoas)? Será que os Venezuelanos merecem estar vivendo entre a inanição e o caos por terem votado em Hugo Chávez no início dos anos 2000? O caso deles é muito pior, mas a mesma lógica pode ser aplicada para absolver nossos (mais) sofridos vizinhos do Norte.

Este, aliás, é um dos principais divisores de água entre o “baixo clero” e os criminosos de colarinho branco: nossas ações eventualmente em desacordo com as leis e os costumes não possuem potencial agressivo contra um grande número de vítimas. Se alguém fura uma fila, não consigo imaginar os prejudicados sofrendo mais do que apenas indignação. Agentes políticos, a seu turno, são capazes de, por meio de simples negociatas ou canetadas, causarem padecimento a milhões de pessoas, com efeitos prolongados indefinidamente, e transfigurados em diversas facetas (desemprego, insegurança, fome, saúde precária, educação deficitária). As cominações penais, entretanto, costumam guardar relação inversamente proporcional com os prejuízos causados: políticos envolvidos em esquemas de apropriação de verbas estatais e que venham a passar algumas “temporadas” atrás das grades constituem exceção a um sistema que, normalmente, não pune tais criminosos com a severidade necessária para que seus pares passem a acreditar que a retidão na vida pública vale a pena. Muito ao contrário – Carlinhos Cachoeira às gargalhadas dentro do camburão da Polícia Federal não me deixa mentir.

Ora, se o custo de descumprir a lei é relativamente baixo, fica mais fácil entender porque os brasileiros que preferem“andar na linha” são frequentemente tachados de “otários”. Neste cenário, o “macete” passa a valer mais do que o conhecimento, e o “bizurado” é capaz de auferir melhores retornos do que o trabalhador diligente. Se o Prefeito não está nem aí para a minha rua (a deixou virar um queijo suíço e embolsou os recursos para sua recuperação), por que eu, indistinto sujeito, deveria me comprometer com sua limpeza, por exemplo? Constitui uma máxima das forças armadas que “o comandante é o espelho da tropa”. Ou por outra: uma mesma tropa pode se comportar de maneiras totalmente diversas sob diferentes comandos. Será mesmo que nosso povo seria tão despreocupado em seguir as normas se vislumbrasse bons exemplos vindo de cima – de seus comandantes?

Vale dizer: e se o brasileiro pudesse experimentar a sensação de que, uma vez colaborando com todo o sistema legal, este lhe recompensaria regiamente, ao invés de puni-lo com a percepção de que todos os que burlam este sistema estão em vantagem sobre ele? Brasileiros que alugam carros em viagens aos Estados Unidos e ao Canadá, e dirigem como verdadeiros lordes (ao passo que, em nosso país, conduzem como o personagem Dick vigarista), ajudam a elucidar esta questão: o ambiente condiciona, e muito, nossas condutas. Outra evidência disso surge quando se propõe o exercício de reflexão invertido: o que acontece quando estrangeiros que residiam em países de cultura mais submissa às normas vem morar no Brasil por um período prolongado? Sabemos do que a singular capacidade de adaptação do ser humano às condições externas é capaz: é claro que esses outrora lordes irão, gradativamente, perder a consideração e o respeito pelo sistema – inclusive em se tratando de pessoas jurídicas, que vem para cá fechar negócios sabedoras de que precisam “jogar o jogo” de acordo com nossos hábitos pouco salutares, ou nada feito.

Contribui sobremaneira para que o arcabouço jurídico de nosso país seja solenemente ignorado por muitos brasileiros o excesso de regulações e leis. O estapafúrdio número de parlamentares das três esferas do poder querem justificar sua existência, e, neste intuito, passam a legislar em escala industrial – com o agravante de que, enquanto muitos projetos para a elaboração de legislações importantes ficam esquecidos em gavetas, verdadeiros escárnios com o cidadão são propostos e aprovados. Tem como culpar alguém por não levar a sério um Estado que estabelece a obrigatoriedade de uso de determinado tipo de extintor de incêndio automotivo, e meses depois muda de ideia e revoga tal determinação, por exemplo? Não à toa, muitas leis no Brasil “não pegam”, caindo em descrédito e não surtindo nenhum efeito prático na vida de ninguém. Aliás, o único resultado desta overdose de leis insensatas é indicar ao brasileiro que ele não deve esquentar muito a cabeça com as normas.

O brasileiro, então, passa a viver em conformidade com um conjunto de regras paralelo ao Estado de Direito, mais adequado a sua realidade (totalmente desconsiderada quando da confecção das leis) e que lhe permite viver melhor – ao menos levando em conta os resultados de curto prazo. Até mesmo moedas locais têm sido adotadas, como decorrência natural do sentimento de não pertencer ao grupo de beneficiários de tudo aquilo que sai de Brasília, e de não confiar nas resoluções emanadas do poder público.

Vejamos como até mesmo no futebol tal fenômeno se manifesta: o famigerado “fair play”, onde o jogador adversário deveria, em tese, jogar a bola para fora do campo sempre que outro jogador (ainda quede outro time) precisasse de atendimento médico. Como a FIFA, entidade máxima do futebol mundial, e cuja reputação não faz inveja a nenhum político brasileiro, sempre omitiu-se de delegar ao árbitro do jogo esta responsabilidade de paralisar a partida nestas circunstancias (ao contrário, ela estimula o fair play), muitos jogadores, naturalmente, passaram a usar em proveito próprio tal possibilidade, fingindo lesões e causando desentendimentos. Ou seja, não existe vácuo no poder: se a autoridade designada não souber resolver um conflito, ele será solucionado por aqueles afetados por este conflito – da forma que melhor lhes convier, por certo. Essa tendência a autotutela também é percebida quando assaltantes são amarrados a postes, constituindo demonstração clara de descrença no Estado e em sua capacidade de promover a ordem.

Constatar que o brasileiro tem encontrado pouca alternativa senão descumprir determinadas leis não visa justificar odesrespeito às normas, mas sim explicar que, como bem ressaltado no clássico filme Jurassic Park, “A vida sempre encontra um meio” – e o povo também: se o governo o coloca contra a parede, ele vai reagir, tal qual manda o instinto de qualquer animal. E essa reação, no mais das vezes, é extremamente prejudicial à sociedade como um todo. Se apenas determinados empresários “amigos do Rei” são beneficiados com a regulação estatal, os demais empreendedores buscarão meio alternativos de sobreviver à carga tributária escorchante, inclusive sonegando impostos – infração legal que irá importar em perdas para todos os destinatários de recursos públicos.

Antes que alguém ventile a hipótese de reforma eleitoral como solução para o problema aqui aventado, enfatizo que o destino da maior parte do dinheiro público roubado não são campanhas eleitorais, e sim contas na suíça (ou bolsas e sapatos de Paris). Instituir o voto distrital, o recall, o Parlamentarismo, seriam todas medidas que contribuiriam, sem dúvida, para o saneamento do sistema representativo, mas somente a efetiva punição de todos os envolvidos em corrupção pode representar uma verdadeira mudança de paradigmas.

E, nesse intuito, é providência essencial reduzir o tamanho do Estado brasileiro. É piada de mau gosto acreditar que os órgãos de controle externo irão, de alguma fora, reunir condições para fiscalizar tantos contratos públicos, celebrados Brasil afora a cada minuto, enquanto estou escrevendo este texto, inclusive. Se a ocasião faz o ladrão, por que oferecer tantas ocasiões aos agentes políticos? Não é crível que um cachorro vá postar-se diante de uma costela assada e não devorá-la, a não ser que tenha muito receio das consequências, e/ou que a carne esteja fora de seu alcance. E ambas as diligências, no caso em tela, são indispensáveis.

A educação (tanto a formal quanto aquele fornecida em casa) também deveria proporcionar ao brasileiro condições de entender que, na vida em sociedade, não é recomendável pensar apenas em si mesmo, e que agir como se estivéssemos em uma bolha, normalmente, faz a bolha estourar. Mas convenhamos que é missão quase hercúlea para um professor persuadir um aluno a seguir regras quando só o que o jovem vê na TV é roubo e impunidade, bem como é tarefa quase inexequível convencer um filho das vantagens de ser honesto no Brasil atual (haja cara-de-pau). Ou seja, quando a teoria que se pretende lecionar encontra-se tão afastada da prática diária, tal ensinamento afigura-se como pura abstração – e entra no ouvido direito e sai no esquerdo.

Será que nós, brasileiros, merecemos viver no caos urbano, sob o pretexto de que somos um povo de malandros e aproveitadores? Toda boa pergunta merece uma boa resposta, e, muito embora não seja o caso desse questionamento, eu respondo: Não! Tenho plena convicção que este país tem jeito, e que, dentro de algumas décadas, nosso povo pode vir a estar irreconhecível, cumprindo as leis e tomando atitudes pensando no coletivo, e não apenas objetivando lograr vantagens para si próprio. E seria um ótimo pontapé inicial se o exemplo viesse de cima – ou do Planalto Central.

Vida, paixão e morte do PT

O PT não nasceu em São Bernardo, São Paulo. Nasceu em Criciúma, Santa Catarina, Em 1978, o jovem prefeito de Criciúma, Walmor de Luca, líder estudantil de esquerda, deputado federal de 1974 no levante eleitoral do MDB, realizou um seminário trabalhista nacional com os grupos políticos que se reorganizavam no país lutando pela anistia e as eleições diretas e com as mais destacadas lideranças sindicais da oposição.

Lula estava lá. E também Olívio Dutra, líder dos bancários do Rio Grande do Sul. Perguntei a Lula:

– Quem é esse Olívio?

– É o melhor de nós. Olívio é quem vocês pensam que eu sou.

Também estavam lá Jacó Bittar, petroleiro de São Paulo, e outros dirigentes sindicais do ABC paulista, do Rio, Paraná, Santa Catarina, Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará, o pais quase todo.

Desde a primeira assembleia, um assunto centralizou os debates: o movimento sindical deve ter partido político? As lideranças sindicais devem entrar para partidos políticos?

Lula era totalmente contra. O argumento dele era que os sindicatos eram mais fortes do que os partidos políticos e a política descaracterizava o movimento sindical e desmobilizava os trabalhadores.

Durante dois dias discutimos muito. Estávamos lá um grupo de socialistas e trabalhistas, cassados ou não, ligados a Leonel Brizola (José Talarico, Rosa Cardoso, João Vicente Goulart, eu, outros). Defendíamos a reorganização dos trabalhistas e socialistas em um só partido, liderado por Brizola, que havia saído do Uruguai e ido para os Estados Unidos.

Lula não queria partido nenhum. Mas houve tal pressão de líderes sindicais de outros estados que Lula balançou. O argumento dele era que os sindicatos poderosos, como os do Rio Grande do Sul, de Minas, de São Paulo, do ABC, não precisavam de partidos. Mas, e os mais fracos, que eram mais de 90% no país? Esses necessitavam de cobertura política. Lembrei os sindicatos do fumo e cacau no Recôncavo e no sul da Bahia.


No último dia, no jantar, vi Lula mudando de posição. Já rouco de discutir, pediu uma água. Veio, toda branquinha, em uma garrafinha. Pedi um gole. Era uma cachaça mineira. Pediu outra. E fez um belo discurso, caloroso, defendendo as lutas dos trabalhadores nos seus sindicatos. Mas não combateu mais os partidos. Concordou que era uma luta só.

De Criciúma Lula saiu direto para Belo Horizonte e Salvador. Foi conversar com os petroleiros de Minas e da Bahia, onde já o esperava o presidente do Sindicato do Petróleo e deputado socialista Mario Lima.

Walmor de Luca devia ter ganho carteirinha de padrinho do PT.

No dia 10 de fevereiro de 1980, em um colégio de freiras, em São Paulo, sob as bênçãos da Igreja e nos braços dos trabalhadores do ABC, nascia o PT, o mais luminoso partido da história política brasileira. Mais até que a Revolução de 30, um parto das oligarquias, o PT era um filho do povo, comandado pelos trabalhadores e acalentado pelos estudantes nas faculdades, pelos padres nas sacristias. Sob as bênçãos de Deus.

Em Santo André, vigilante, firme e lúcido, Dom Jorge Marcos de Oliveira, o bispo do PT. Apoiando-o com seu quase silêncio e sua sabedoria, o arcebispo Dom Evaristo Arns e Dom Balduino, Dom Pedro Casaldaliga, Dom Jairo Matos no sertão baiano. Logo a melhor juventude brasileira começou a ver no PT uma tocha para as suas esperanças. E a universidade, que mal sabia onde ficavam os sindicatos, viu no PT o seu futuro. Mas de repente chegou o poder. E o PT mergulhou profundamente no lamaçal da corrupção.

Lula, o operário do ABC, descobriu o dinheiro. E o triplex de Guarujá e o sítio de Atibaia, o contubérnio com as empreiteiras e, mais grave, o escândalo dos escândalos que está surgindo agora nas lanternas da Lava Jato: os 50 bilhões de dólares do BNDES distribuídos com os ditadores amigos e em propinas externas que já estão surgindo.

O advogado Luiz Francisco Correa Barboza disse ao Globo: “Não só Lula sabia do Mensalão como ordenou toda essa lambança. Não é possível acusar os empregados e deixar o patrão de fora”.

No dia 12 de agosto de 2005, em um pronunciamento, pela TV, a todo o povo brasileiro, Lula pediu “desculpas pelo escândalo”. Os companheiros do partido no banco dos réus e ele, só ele, de fora. Logo ele que é o grande réu, “o réu”.

Trabalhadores do Basil

O homem estava sentado num tamborete rústico, com os joelhos cruzados e a cabeça baixa. À sua direita havia uma mesinha de desarmar, entulhada de lápis de vários tipos e cores, folhas de papel em branco, borrachas, tesoura e um pouco de estopa. Havia ainda uma tabuleta em cima da pequena mesa, apoiando-se na pilastra onde estavam expostos seus trabalhos: fotografias coloridas de grandes personalidades e caricaturas também de grandes personalidades.

Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos.

Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça:

-- Você, Maria.

Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.

-- Aconteceu alguma coisa?

-- Não – murmurou a mulher.

O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência.

-- Não houve mesmo nada? – tornou o homem.

-- Claro que não, Zé. Eu vim à toa.

-- E os meninos?

-- Mamãe está com eles.

-- Como é que você arranjou para chegar até aqui?

-- Uai, eu vim.

-- A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa.

-- Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui.

-- Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido.

-- Fez alguma coisa hoje, Zé?

-- Fiz um – respondeu levantando-se. – Senta aqui. Você deve estar cansada.

A mulher sentou no tamborete, desajeitada.

-- Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem.

-- Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos.

-- Mas ela não estava doente?

-- Você sabe como mamãe é.

-- E o Tonhinho?

-- Está lá.

-- O carnegão saiu?

A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria.

-- Espera um pouquinho aí – disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas.

A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura.

-- Esses pastéis.

-- Oh, Zé, para que você fez isso?

-- Vamos, come um.

-- Você não devia ter comprado.

-- Vamos.

A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer.

-- Come o outro, Zé.

-- Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu.

-- Então eu vou levar ele pros meninos.

-- É pior, Maria.

O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantar-se:

-- Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém.

-- Não, eu passei a manhã toda assentado.

A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu:

-- Acho que eu vou andando.

-- Já vai?

-- Mamãe não aguenta eles, você sabe.

-- Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo.

O homem tirou uma nota de dentro do bolso do paletó e estendeu-a para a mulher.

-- Volta de bonde.

-- Não, Zé.

-- É muito longe, criatura.

-- Não.

-- Ora, minha nega

-- A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa.

-- Vou ver se levo.

O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes.

-- Não chega tarde não, viu, Zé.

-- Chego não.

-- Você vai fazer.

-- Hoje eu sei que vai melhorar.

-- Vai sim, Zé. Eu seu que vai. Eu sei.

A mulher se afastou rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato.

Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias.

Wander Piroli

'Brasil precisa abandonar a pura fixação por crescimento'

Deve-se manter uma boa parte da economia no país para que a população em geral tenha benefícios – e não somente uma pequena elite. Meu conselho seria abandonar essa pura fixação por crescimento e partir para um desenvolvimento sustentável e social-inclusivo
Reinhard Loske 

Países perseguem o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) como condição necessária para o desenvolvimento e a redução da pobreza. Devido às crises políticas e econômicas, o Brasil está há dois anos em recessão – e os prognósticos para o futuro ainda não são muito positivos.

Mas para Reinhard Loske, professor de política, sustentabilidade e dinâmica da transformação da Universidade de Witten/Herdeck, na Alemanha, o Brasil, por conta do seu potencial e recursos naturais disponíveis, tem as melhores possibilidades para se desenvolver de forma positiva ao se concentrar no desenvolvimento interno e na economia regional, e não somente na exportação de matérias-primas.

"Meu conselho seria abandonar essa pura fixação por crescimento e partir para um desenvolvimento sustentável e social-inclusivo", afirma Loske, que foi deputado federal pelo Partido Verde de 1998 a 2007 e secretário estadual de meio ambiente e transporte do estado de Bremen.


Todos os países perseguem o crescimento econômico. Por que, em sua opinião, o decrescimento da economia poder ser positivo?

Historicamente, essa fixação pelo crescimento econômico é nova. Essa concepção de steady state economy se espalhou dos anos 1930 até 2000. O crescimento em países industrializados já está saturado e, hoje, não é mais o crescimento que está em causa, mas a sustentabilidade – quer dizer, desenvolver a economia de uma forma que, essencialmente, seja necessário usar menos recursos como energia, recursos, territórios etc.

Já nos países em desenvolvimento, eu vejo diferente. Existe a necessidade de desenvolver a economia para uma grande camada da população que ainda não tem acesso a recursos. Mas, com uma estratégia de crescimento estritamente pura, isso não é possível. Esse desenvolvimento descampado como os países industrializados fizeram é incompatível com a sustentabilidade. Eu recomendo que países como Brasil, África do Sul, Índia e China tentem se desenvolver o máximo possível de forma sustentável e, ao mesmo tempo, zelem fortemente pela justiça social.

O Brasil está há dois anos em recessão. O desemprego aumenta, e a renda cai. Como um político pode "vender" um cenário como esse de forma positiva?

Pesquisas sobre bem-estar mostram que é necessário um certo nível material para que todos possam viver decentemente. E, a partir de um ponto, a correlação entre felicidade da população e valor do PIB já não existe mais. Em países como Brasil há algumas camadas da população que são pobres e, por isso, precisam do desenvolvimento. Mas nestas nações há também uma classe de consumidores que vivem com certo nível material que, a longo prazo, não é sustentável para o mundo.

Por isso, eu aposto numa estratégia na qual sustentabilidade, desenvolvimento e justiça social sejam igualmente importantes. A atual crise econômica no país tem causas internas, como a corrupção estrutural e má governança. Além disso, a estratégia do extrativismo, de depender somente da extração de matérias-primas, é problemática. É preciso implementar mudanças mais profundas como a produção regional, cooperativas regionais de práticas agrícolas etc. Isso porque uma orientação baseada somente na exportação descampada de recursos não trouxe nada realmente a longo prazo para nenhum país.

Na Europa, e principalmente na Alemanha, há um debate sobre o tipo do crescimento econômico. Há, juntamente com o PIB, outros indicadores para medir o crescimento que serão mais importantes no futuro?

As principais críticas sobre o crescimento na Europa e América do Norte são: o limite ecológico do crescimento; o limite sócio-cultural – que diz que a felicidade das pessoas, em certo ponto, não se correlaciona mais com o crescimento; e se o PIB realmente mede, de forma adequada, o nosso bem-estar. Hoje se discute alguns indicadores de bem-estar alternativos ou complementares ao PIB como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Índice de Bem-Estar Econômico Sustentável (ISEW, em inglês) e o Happy Planet Index (HPI) – sobre este último sou um pouco crítico. Mas, por toda parte está a ideia de que a economia é importante, mas não é tudo.

É importante também medir a qualidade do meio ambiente, saúde, educação, participação social e, quando nós observamos estes indicadores alternativos, concluímos que não é nos países mais ricos onde estão as pessoas mais felizes, mas onde é possível tirar muita felicidade a partir de poucas coisas materiais. Na Alemanha, temos a capacidade de tirar pouca felicidade de muita prosperidade. Quer dizer, há bons indicadores alternativos de bem-estar muito bons que incluem aspectos sociais, ecológicos e econômicos que cujas afirmações são mais sólidas do que só o PIB.