sexta-feira, 1 de julho de 2016

Quem será o nosso Sílvio Berlusconi?

Foi a primeira pergunta que me veio à mente depois de saber que Renan Calheiros quer votar com urgência um projeto de lei sobre abuso de autoridade que jaz nas gavetas do Senado Federal desde 2011, mas que hoje adquiriu urgência urgentíssima!

Copio de O Globo: “O projeto enquadra autoridades como delegados, promotores, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores. O texto atualiza a lei de 1965”.

Se esse projeto de lei for votado, francamente, nós brasileiros mereceremos o título de campeões da parvoíce. Será que não aprendemos nada com o que se passou na Itália, quando aquele país conseguiu limpar suas arcas, quebrar as correntes da corrupção que o afligia, mostrar ao povo as maldades de que era vítima, mas não pode impedir que seu Parlamento votasse leis que repudiavam todo o trabalho do Ministério Público em favor da permanência do erro, do roubo, das fraudes, dos laranjas, das mãos sujas?

Diz o presidente do nosso Senado que nada disso tem a ver com a Operação Lava-Jato, que atende, isso sim, um grande empenho de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, citando inclusive Gilmar Mendes como um deles, e de muitos advogados.

Pode ser. Tudo pode ser. Pode até parecer mas não ser. Mas que parece muito com as leis que foram votadas no Parlamento italiano e que acabaram por anular as conquistas do Mani Pulite, parece. O que teve um resultado perverso: o poder foi parar nas mãos de Silvio Berlusconi.

“Ninguém vai interferir no curso da Lava Jato. Essa investigação ela (sic) está caminhando, já quebrou sigilo de muita gente, tem muita gente presa e, a esta altura, há uma pressão muito grande da sociedade, no sentido de que essas coisas todas se esclareçam”, declarou Renan. (Essa pressão inexiste na planície. Aqui o que queremos é Toda A Força À Operação Lava-Jato).

Entre outras coisas, o projeto fala que é crime de abuso de autoridade submeter o preso ao uso de algemas. Isso já foi resolvido: só vejo presos com as mãos para trás, mas sem algemas. O respeito que eles não demonstraram pelo Brasil, nós demonstramos por eles!

Outro item: ‘cumprir um mandado com autorização judicial na casa do investigado de forma vexatória’. O que será que isso quer dizer? Deveria a PF enviar um e-mail pedindo ao distinto que permitisse que sua casa fosse visitada e nela se fizessem buscas de documentos comprobatórios de suas atividades lícitas ou ilícitas? Sem esquecer de marcar dia e hora e de pedir Por Favor?

Será que isso não tem nada a ver com a busca e apreensão na residência do ex-ministro Paulo Bernardo que, por ser casado com uma senadora, vive em um apartamento funcional de uma detentora de foro privilegiado? Será que é preciso frisar que quem tem o privilégio desse foro especial é a senadora e não o seu apartamento?

E os grampos telefônicos avisados a priori surtiriam algum efeito? Custo a crer. E você, acredita em fadas e duendes?

Esse projeto de lei é um verdadeiro espanto! O Brasil tem uma quantidade brutal de problemas, nenhum deles mereceu a etiqueta de urgente. O que incomodou mais foi o uso, já de há muito desprezado, da força da Autoridade, do respeito às Leis e ao Poder que sabe exercer seu poder.

Se essa lei for ‘atualizada’, nós, que já estamos mal de vida, ficaremos cada vez mais arrebentados.

E aí, não vai haver quem impeça um Berlusconi de se aboletar no Planalto!

Cadeia só para pobre

(...) a doutrina invocada na decisão do Supremo Tribunal Federal fala da possibilidade de prisão preventiva em crimes como “homicídio por esquartejamento ou mediante tortura, tráfico de quantidades superlativas de droga, o que, a meu ver, reflete a tendência, ainda que inconsciente, de se considerar a existência de riscos apenas em crimes violentos, no mais das vezes cometidos apenas por acusados pobres
Juiz Paulo Bueno de Azevedo, 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo 

Amnésia coletiva?

Apesar do respaldo da opinião pública, o avanço da Lava-Jato e operações afins vem enfrentando sérias resistências de segmentos influentes da sociedade. São reações que merecem reflexão.

Já não há dúvidas sobre a extensão do alarme de senadores do PMDB com a Lava-Jato. E boa parte do Congresso padece, em alguma medida, de temores similares. O próprio governo já não dissimula suas apreensões com os embaraços advindos das investigações.

Há duas semanas, o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, declarou que a Lava-Jato deveria saber sinalizar o momento de caminhar “rumo a uma definição final”. Dias depois, o presidente Temer mencionou que, embora não fosse o caso de fixar prazo para a Lava-Jato, “o país não pode ficar nesta situação por dez anos”. No meio empresarial, ganham força preocupações com as dificuldades de uma ação mais desenvolta do governo diante dos recorrentes embaraços da operação.

Pouco a pouco, a ideia de que é preciso “conter os excessos” e “passar uma régua” nas investigações, “para que o país possa trabalhar”, vem sendo defendida de forma cada vez mais explícita. Com frequência, a defesa vem temperada com vagas menções a exageros da Operação Mãos Limpas, que teria desestruturado de vez o sistema político italiano e aberto caminho para Berlusconi.


Eufemismos à parte, o que vem sendo alegado, à boca pequena, em bom português, é que a persistência na Lava-Jato e operações similares tornará o país ingovernável. Que assim não sobrará ninguém. Que é ingênuo imaginar que a corrupção, entranhada como está no sistema político brasileiro, possa ser eliminada dessa forma. E que o combate à corrupção se faz a longo prazo, com paciência e pragmatismo.

Não é surpreendente que as autoridades responsáveis pelas investigações estejam na defensiva, temendo iniciativas que possam cerceá-las. Mas é pouco provável que tais iniciativas prosperem em meio ao clima de crescente indignação com a extensão e a organicidade das práticas corruptas que se incrustaram no aparelho de Estado. Por ora, o cerceamento das investigações não parece politicamente viável. E se, mais à frente, se tornar viável, é bem possível que a afronta à opinião pública transforme o combate à corrupção no tema dominante da campanha eleitoral de 2018.

Seja como for, é preciso refletir com cuidado sobre as propostas de “passar a régua” na Lava-Jato e operações similares. Para perceber com mais clareza quão despropositada é tal ideia, vale a pena ter em perspectiva uma experiência histórica bastante distinta em que, por razões bem diferentes, a decisão de “passar a régua” nas investigações que se faziam necessárias acabou sendo tomada.

No seu aclamado “Pós-guerra”, Tony Judt relata como o programa de “desnazificação” da Alemanha, ao fim da Segunda Guerra Mundial, foi rapidamente abandonado. Como nada menos que oito milhões de alemães — um sétimo da população remanescente no país ao fim do conflito — eram nazistas, não havia como viabilizar a reconstrução e o fortalecimento do país, num quadro de rápido agravamento da Guerra Fria, excluindo-os desse projeto.

Concluídos os julgamentos de Nuremberg, em 1946, decidiu-se que o mais prudente era fechar os olhos para o muito mais que ainda havia a investigar. E deixar que a Alemanha mergulhasse numa longa e controvertida “amnésia coletiva”, que tornou admissível, por exemplo, que 94% dos juízes e promotores da Baviera, em 1951, fossem ex-nazistas.

Por mais alarmante que seja, a corrupção no Brasil está muito longe de envolver um sétimo da população. A escala é outra. E por bem encastelados que possam estar, os envolvidos em corrupção parecem perfeitamente dispensáveis e substituíveis. Mas o conceito de amnésia coletiva vem a calhar. E dá ensejo à pergunta óbvia.

Por que razão o país deveria compactuar com uma amnésia coletiva na questão da corrupção, justo quando se defronta com o desafio de desmantelar o projeto cleptocrático de poder que o arrastou para o colossal atoleiro em que está metido?

Rogério Furquim Werneck

TV Memória

A ambição inicial de Lula e Franklin Martins ao criar a TV Brasil era uma emissora pública que pudesse ser uma alternativa à “mídia monopolizada” (para eles, as grandes redes e emissoras independentes de televisão que competem ferozmente entre si por audiência e patrocinadores). Para tanto, seria como uma BBC inglesa, uma TVE espanhola, que vendem produções para o mundo inteiro e têm grande audiência e credibilidade em seus países. Dinheiro seria fácil, difícil era encontrar ideias e talentos, profissionais competentes e criativos, que já estavam empregados nas TVs privadas, restando contratar o que sobrou no mercado e companheiros de partido. Deu no que deu.


O filósofo Herbert Marcuse, ídolo das jovens gerações esquerdistas dos anos 60, decretava que na era das comunicações de massa “o meio é a mensagem”. No caso da TV Brasil, o sinal trêmulo e a imagem borrada são o meio mais coerente com o conteúdo da programação, que pretendia dar uma visão alternativa e plural do Brasil, mas se tornou apenas uma televisão chapa-branca — a menos vista entre todas as emissoras brasileiras. Salva-se só o ótimo “Sem Censura”, que tinha mais audiência quando era da TVE.

Sim, todo país precisa de uma boa TV pública, independente, com diversidade e credibilidade. Não sou contra a TV Brasil, mas, como foi planejada e administrada, tentando competir com emissoras privadas com telejornais toscos e telenovelas angolanas. São R$ 250 milhões jogados fora por ano, porque a média de audiência é zero. Não é nem 0,5%, é zero mesmo. Qual o sentido de falar para ninguém?

A TV Brasil poderia seguir a estratégia vitoriosa do canal Viva, que conquistou grandes audiências exibindo programas dos arquivos da TV Globo. Um bom rumo para uma TV pública de um país desmemoriado seria se tornar uma espécie de preservadora e difusora da memória nacional (a RAI e a RTP portuguesa têm canais “Memória”) exibindo programas e documentários da rede de emissoras estatais que se espalham pelo Brasil. Só os arquivos de programas musicais da TVE do Rio de Janeiro têm milhares de horas de arte e cultura, a custo zero.

Nelson Motta

Nossos 'serial killers'

O procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato, comparou a corrupção a um assassinato em série, "que mata sorrateiramente milhares de pessoas em estradas esburacadas, hospitais sem remédios e ruas sem segurança". Significa: o dinheiro desviado para bolsos partidários ou particulares resulta em desassistência, pobreza e morte. Para Dallagnol, e com razão, o corrupto equivale a um "serial killer".

Em Londres, há duas semanas, fui à caça do "serial killer" mais famoso do mundo: Jack, o Estripador — o homem que, entre agosto e novembro de 1888, matou seis mulheres em Whitechapel, bairro miserável da zona leste da cidade. Sua identidade nunca foi descoberta. A cada 20 anos, alguém vem com a solução "definitiva" do caso, que logo se revela inconsistente e será substituída por outra.


Munido de mapas, nomes de ruas e tudo que sei sobre o Estripador, fui de táxi à distante Whitechapel. As velhas ruas por onde ele circulou ficaram modernas, sem interesse. Mas uma delas, a Gunthorpe Street, cenário do quarto assassinato, conserva a atmosfera original: sinistra, quase um beco, de paralelepípedos, prédios feios e sujos. Jack andou por aquelas pedras. E um pub, o White Hart, de 1721, continua lá — ou ele ou suas vítimas o frequentaram.

De repente, farejando o otário, saem das tocas as ofertas de "excursões guiadas" pelos passos de Jack, turmas com hora marcada a 10 libras por cabeça e venda de camisetas, chaveiros, abridores de garrafas. É decepcionante. Mas inevitável: Jack, o Estripador foi há 128 anos. Hoje, só mesmo para fins turísticos.

É o de que precisamos aqui — que, um dia, se possa promover excursões guiadas aos nossos "serial killers", digo, corruptos, por seus escritórios em Brasília, Rio, São Paulo. Mas, para isso, precisarão estar extintos ou a ferros.

Ruy Castro

Democracia é mais que um 'hastag'

O Brexit ainda não mudou minha vida. Mas sem a UE, eu não teria conseguido estudar tão facilmente no Reino Unido. Meus amigos se queixam agora sobre o resultado do referendo através das redes sociais. Mas colocar às centenas a mesma imagem de perfil em suas contas, por solidariedade? Não. Eles não chegam a tanto.

Somente no perfil de dois conhecidos encontrei a imagem de uma bandeira da União Europeia, na qual uma das 12 estrelas é substituída por uma lágrima. No mais, ninguém chora de forma simbolicamente relevante por causa da UE. Mas há petições, iniciativas e hashtags de protesto contra a saída dos britânicos, e pedem até mesmo um segundo referendo.


A juventude está decepcionada com a geração de seus pais e avós. Os jovens são os primeiros a serem beneficiados pelo projeto de paz europeu, pela liberdade de movimento, pelas oportunidades educacionais. "Vocês não querem nos permitir o acesso a essas conquistas" acusam os jovens britânicos, em direção aos mais velhos, porque foram estes que votaram predominantemente pela saída. "Bem feito", respondem, "quem mandou somente um terço de vocês ter ido às urnas."

Realmente, embora três quartos dos jovens britânicos tenham votado pela permanência na UE, a maioria dos jovens abaixo de 24 anos não foi votar. Mas a baixa participação do eleitorado jovem não é uma novidade na Europa. Por outro lado, somos muito empenhados e inovadores quando se trata de comentar assuntos políticos na internet. Quando, há um ano, a crise financeira da Grécia quase provocou a saída do país da zona do euro, um jovem britânico organizou uma campanha de arrecadação de fundos. No final, ele conseguiu apenas um milésimo da quantidade necessária, mas juntou 1,9 milhão de euros, o que não é nada mal.

Por que não podemos nos engajar da mesma forma em um dia de votação? O referendo teria tido outro resultado se aquele jovem britânico tivesse recolhido 1,9 milhões de votos, em vez de euros, pela permanência de seu próprio país na UE. Será que a urna é algo analógico demais para uma geração que cresceu com a internet? Será que temos que pensar seriamente em transferir decisões democráticas para a internet? Não, isso não.

Andar para um local de votação ou votar por correspondência pode ser algo que dá trabalho, mas com uma caneta na mão, a pessoa toma uma decisão de uma forma diferente do que com um clique. Pois sejamos honestos: não importa qual a idade das pessoas, às vezes o polegar para cima, a "curtida", é uma coisa fácil demais. A força de sedução das redes sociais há muito tempo foi descoberta pelos populistas. Não é à toa que comentários de incitação ao ódio se tornaram um grande problema na rede, e que os políticos alemães tenham se reunido com o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg.

Claro que o meio político também tem um problema. Sobretudo a UE não é tida como algo particularmente próximo do povo, servindo de motivo para piada devido a coisas como um decreto sobre o grau de curvatura dos pepinos. Mas mesmo defensores de carteirinha da UE, como o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, percebem isso agora. Na cúpula em Bruxelas nesta semana foi possível ouvir dele e de todos os chefes de Estado e governo presentes, em uníssono: "A UE quer mudar, ela tem que ser algo para o povo."

Para participar do debate, podemos, naturalmente, nos expressar na internet com hashtags e convocações. Mas nossa voz, nosso voto, ainda conta mais quando vem da cabine de votação. Esta falha dos jovens britânicos mudou agora a vida de muitos de nós. Por isso, não devemos esquecer, como europeus, que, no final, a cruzinha na cédula de votação é que decide – e não as muitas "curtidas" para a imagem de um perfil.

Libelo

De que mais precisa um homem senão de um pedaço de mar – e um barco [com o
nome da amiga, e uma linha e um anzol pra pescar ?

E enquanto pescando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos, uma pro caniço, outra pro queixo, que é para ele poder se
perder no infinito, e uma garrafa de cachaça pra puxar tristeza, e um pouco
de pensamento pra pensar até se perder no infinito...
..............................

De que mais precisa um homem senão de um pedaço de terra -- um pedaço [bem
verde de terra -- e uma casa, não grande, branquinha, com uma horta e um
modesto pomar; e um jardim – que um jardim é importante – carregado de [flor
de cheirar ?

E enquanto morando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos para mexer a terra e arranhar uns acordes de violão quando a
noite se faz de luar, e uma garrafa de uísque pra puxar mistério, que casa
sem mistério não valor morar...
.................................

De que mais precisa um homem senão de um amigo pra ele gostar, um [amigo bem
seco, bem simples, desses que nem precisa falar -- basta olhar -- um
desses que desmereça um pouco da amizade, de um amigo pra paz e pra [briga,
um amigo de paz e de bar ?

E enquanto passando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem [senão
de suas mãos para apertar as mãos do amigo depois das ausências, e pra
bater nas costas do amigo, e pra discutir com o amigo e pra servir bebida à
vontade ao amigo ?
...................................
De que mais precisa um homem senão de uma mulher pra ele amar, uma [mulher
com dois seios e um ventre, e uma certa expressão singular ? E enquanto
pensando, enquanto esperando, de que mais precisa um homem senão de [um
carinho de mulher quando a tristeza o derruba, ou o destino o carrega em
sua onda sem rumo ?

Sim, de que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher -- as
únicas coisas livres que lhe restam para lutar pelo mar, pela terra, pelo
amigo ...
Vinicius de Moraes

Entre verbos e verbas

Ora, se o mundo desaba em tempestades de verbos, e desaba, derramando acusações e atirando culpas e você protestando inocência, eu não sei de nada, eu sou até inocente e ainda assim as afrontas paradas no ar, os inquisidores em gritos mudos, os dedos em riste parados no ar, armadilhas eletrônicas, tudo assim tão sorrateiro quanto invisíveis, convém não se deixar acuar.

Quando você mal desperta e vê as coisas assim e assim como se fossem lhe assar, o melhor a fazer é meditar, meditar, não se deixando acuar, porque talvez você precise agora de muita serenidade para olhar um pouco mais para dentro de si, até onde as lentes dos olhos da sua consciência livre, intimoratos, possam alcançar.

É bem possível que lhe tenha chegado a hora de dar um passeio lento no seu passado, lembrando-se daqueles quantos que nós conhecemos na estrada e que se atrasando na marcha foram ficando, ficando. Se atrasando e ficando para sempre para trás.

Uns não chegaram porque gastaram os seus sonhos todos de uma só vez, querendo tudo o quanto antes ao mesmo tempo com aquela fome de antes de ontem. Outros, por despreparo para as próximas horas, por incompetência até para sonhar.

No coletivo, não adianta nada querer conciliar as ações sem conciliar os sonhos. Todos, mas todos mesmo, tem o seu direito a sonhar.

E se estamos no coletivo, melhor ainda. Um sonha atrelado ao sonho de todos e todos sonham atrelados ao sonho de um. Isso é como apertar ao peito hipotético mais humanidade do que Cristo. Feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. (Fernando Pessoa, Tabacaria.)

Mas agora, depois de sobrevoar num lampejo esse estado de coisas e voltar com os olhos a por pés no chão, as mãos cheias de indignação, vendo de perto essas incertezas carregadas de ânsias sem idades, ainda bem, ainda bem, que não deixamos que se desprendesse de nós esta certeza de que continuamos infensos a essas negações ao senso comum de que o direito sem lógica e sem bom senso não realiza a justiça, só servindo, quando muito, aos protestos das inocências.

Ah somos juristas, sim, operários do direito, sacristões nos altares de Thêmis que ainda nos restam pelos templos judiciais, ah somos juristas submetidos a tantas leis injustas porque mais a serviço do Estado centralizador e a cada dia mais autoritário. Ah somos juristas, sim, inconformados, aliás, muito inconformados.


Por que os pesos da balança pendem mais e quase sempre a favor do Estado e seus privilegiados condôminos? (Carca, mano!) Até quando há in dúbio não se fala mais em pro réu. Diz-se "pró societás", o que não quer dizer nada, pois essa menção aí sai regada por lei editada pela maioria dos que dominam o aparato estatal, leia-se, executivo e legislativo, contando sempre com a lealdade dos juízes à literal letra da lei. Da injusta lei.

Ah vocês que mexem com esse negócio de leis, de judiciário, de alunos de direito; vocês que falam empolado a língua dos códigos em demonstrações de erudição, enferrujada erudição; ah vocês juízes, sim, também vocês juízes fiquem por aí quietos em seus marfins e não nos venham com esses papos de cidadania, direitos sociais, cortes internacionais. É a lógicas dos políticos vendidos, falsos hebreus nos cancelos do Faraó.

Nós, os juízes; nós os advogados; nós do Ministério Público; nós, policiais civis federais, nós todos temos responsabilidades, sim, com o olhar triste das crianças famintas e sem infância dos nossos 11 milhões de desempregados. Somos compromissados, sim, contra esse alheamento com que são tratados as centenas de milhões de analfabetos contados entre crianças e adultos neste vasto País.

Não somos indiferentes às centenas de milhares de moçoilas das beiras de estradas e dos lugarejos distantes engravidadas de mais bocas futuras predestinadas à fome ou à subnutrição e de olhares que irão se abrir às carências de direitos e de futuros.

Nossa responsabilidade não ignora esse atraso de décadas em que vegeta a maioria da nossa gente, sem água tratada para beber, sem teto seguro para morar, sem esgotos, sem saúde pública, sem escolas de qualidade, os ratos em festas nos lixões das ruas.

O patrimônio e a vida de cada um à mercê do previsível assalto. Ou da morte. Vana est sine viribus ira, vã é a ira sem a força! Lecionava-se na Roma antiga.

Purgaremos penas noturnas infindáveis a nos doerem na consciência se, catando e incinerando um a um os nossos erros, não assumirmos a humildade com que devemos, de novo, nos reunir, respeitando a capacidade de cada um para na trincheira certa, agirmos coletivamente, e aí sim, confiantes na vitória coletiva.

É utopia? Não. É o sonho possível.

Edson Vidigal

Moradores constoem ponte por menos de 2% do orçamento da prefeitura

A ponte tem apenas 25 metros de extensão, mas a obra erguida por moradores de uma cidade do interior do Rio de Janeiro passou por cima de enormes problemas de dinheiro, ineficiência e até de corrupção que assolam o Brasil. A história ocorreu em Barra Mansa, a cerca de 130 km do Rio de Janeiro.

Lá há dois bairros de casas simples, muitas com tijolos expostos: Nova Esperança e São Luiz. Os bairros são separados por um riacho de vegetação densa, que complicava a vida dos moradores.

A questão, dizem, é que apenas um dos bairros conta com um posto de saúde. E apenas na outra margem há um ponto do ônibus que vai para o centro comercial da cidade.


Ponte em Barra Mansa

Para acessar esses serviços, os moradores tinham que contornar o riacho por cerca de 2 km.

Instalaram passagens de madeira, mas toda chuva mais forte carregava as estruturas improvisadas rio abaixo. Pediram uma ponte à prefeitura, mas a resposta foi que não havia recursos em razão da crise econômica.

Cansadas de esperar por duas décadas, duas donas de casa que moram em lados diferentes do rio - Manoelina dos Santos, de 72 anos, e Juracy da Conceição, de 65 anos, tiveram uma ideia: e se os moradores fizessem a ponte?

“Se dependessemos do poder público, iríamos esperar mais 10 anos" diz o comerciante Adalto José Soares, de 52 anos, filho de Manoelina. “Aí tomamos essa atitude, arrecadamos dinheiro com os moradores e fizemos", afirma, em conversa com a BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Resultado: uma ponte bem mais barata, 98% do valor estimado pela prefeitura, e com recursos levantados em apenas um mês - uma lição em um país cujo poder público parece em decomposição.