segunda-feira, 30 de maio de 2016

O bicho-papão de Curitiba

Temer diz que, ao perceber que cometeu um erro, reconhece e muda o rumo. Usou até uma figura rara na linguagem cotidiana: a mesóclise. Tudo bem com a mesóclise e a disposição de reparar o erro. Mas ele não pode cometer tantos, senão a sinceridade acaba sendo ofuscada pela sensação de que não compreendeu o momento.

O ponto central é a recuperação econômica. Ao aprovar a meta orçamentária com um déficit de R$ 170,5 bilhões, ele disse: é uma bela vitória. De um ponto de vista tático é uma vitória, mas revela a pedreira que teremos de enfrentar para voltar a crescer de forma sustentável.

Dada a gravidade da crise, os erros na política acabam ameaçando as expectativas de recuperação. Muitas vozes, por exemplo, advertiram sobre a presença de investigados pela Lava-Jato no Ministério. Escrevi algumas linhas sobre isso, lembrando como regredimos nessa prática em relação ao governo Itamar. Por achar que era muito óbvio, nem me detive num argumento essencial: é mais do que provável que ministros investigados tentem estabelecer uma tática comum para se defender da Lava-Jato e outras operações em curso.

Um governo que já tem a cúpula investigada, ao optar por ter também ministros investigados, corre o risco de entrar no mesmo círculo infernal do governo Dilma. Sua única alternativa é focar na economia e avaliar o que realmente importa: salvar a pele dos caciques ou ajudar o Brasil nesse transe.

No caso do Ministério da Cultura, ficou a impressão de que apenas voltaram atrás. E que tudo na política cultural brasileira vai bem. Essas isenções de Lei Rouanet muitas vezes beneficiam artistas de grande sucesso no mercado. Eles não precisam desse incentivo.

Por outro lado, há setores que não têm poder de pressão, mas que precisam da ajuda do governo. É o caso da Serra da Capivara, um tesouro da pré-História do Brasil com pinturas comoventes em suas cavernas. Ali está o Museu do Homem Americano.

Ainda no Parlamento conheci a luta da antropóloga Niéde Guidon para manter o Parque Nacional e o Museu do Homem Americano. O dinheiro nunca aparece. Ela já dá sinais de cansaço, depois de ter descoberto artefatos que indicam a presença humana há 50 mil anos e conseguir mantê-los até agora.

O Parque da Serra da Capivara fica em São Raimundo Nonato, no Piauí, perto da Bahia. O governo construiu um aeroporto internacional em 12 anos e gastou R$ 20 milhões. O aeroporto nunca recebeu um voo. É um museu a céu aberto que se deteriora, aliás como tantos outros museus edificados no Brasil. E o Museu do Homem Americano está ao lado de um aeroporto virgem que também se deteriora.

É um problema, no meu ponto de vista, que tem de ser equacionado por uma política cultural. Jamais teremos uma passeata de Aleijadinhos, pintores rupestres, mestres do barroco ou do rococó. Passeiam apenas dentro de nós.

De um modo geral, quando se fala em pensar no Brasil, além do Sudeste, fala-se sempre em distribuir melhor as verbas de incentivo aos artistas. No Rio, o prédio ocupado pelos produtores culturais, edifício Gustavo Capanema, foi apenas o cenário de um protesto. Mas é, na verdade, um museu da arte moderna brasileira, num prédio que teve também a participação inspiradora do arquiteto francês Le Corbusier. O prédio é dividido com a burocracia do setor cultural. Ele foi concebido para um uso burocrático. Mas, hoje, essa coexistência dificulta seu uso pleno como um museu. Pelo menos foi essa a sensação que tive ao visitá-lo. Não ouvi discussões sobre isso, apesar da ocupação por alguns dias. Isso não importa. O importante é que visões diferentes de cultura coexistam para que o horizonte se alargue.

Temer garantiu o pagamento de R$ 122 milhões que o governo deve aos produtores culturais. O ministro da Educação, quando a Cultura caiu nas suas mãos, apressou-se a garantir que haveria mais dinheiro. Na verdade, é uma relação de fornecedores e cliente. Perdeu-se a oportunidade de tratar do tema em outro nível. Mas ganhou-se, pelo menos, uma trégua, num front que não precisava ser aberto naquele momento.

Outra vulnerabilidade do governo: o líder na Câmara, André Moura, investigado por vários crimes, inclusive assassinato. A barra pesada se une ali em torno do investigado-mor, Eduardo Cunha. Ele é o líder, porque, além de ousado, conhece bem as técnicas para obstruir a Justiça, da intimidação de testemunhas às artimanhas regimentais.

É uma ilusão pensar que o sistema político brasileiro fará a transição para além da crise e vai sobreviver como um herói de bang-bang com um braço na tipoia e outro no ombro da namorada. Ela vai passar por implosões e esse deve ser o cálculo realista de quem tem a reconstrução econômica como foco. Vamos ver o que sobra dessa derrocada. E o que se pode fazer dos seus escombros.

As tentativas de deter a Lava-Jato fracassaram. As cúpulas do PT e PMDB tentaram. Alguns dirigentes tornaram-se um tipo especial de agente de viagens. Analisam todos os destinos possíveis, desde que não passem por Curitiba.

A parte do latifúndio

Nunca foi fácil. Para ninguém. A verdade é que, por séculos, desigualdade e injustiça tenham talvez sido o denominador de todas as épocas, de todos os tempos no país tropical. É, portanto, forçoso admitir que todos tivessem (e ainda tem) razão para desconfiar.

Depois de tanto tempo, ainda não existem mecanismos confiáveis para mitigar perdas, transigir, negociar. Em lugar em que a prosperidade esta associada com a habilidade de conquistar e manter feudos, não é mesmo surpresa de que não exista por parte de qualquer pessoa, empresa, organização, setor ou corporação, a disposição de ceder espaço.


Apesar de estar claro de que a realidade dita que todas as demandas não poderão ser atendidas ao mesmo tempo, não existe processo crível através do qual se possa alocar estes recursos finitos e limitados de acordo com prioridades consensuais.

O resultado é o que esta aí. Ninguém segue espaço. Todos querem reduzir ministérios. E todos querem um ministério para chamar de seu. Corte são benvindos, desde no ministério dos outros.

Os agentes econômicos não lutam para juros mais baratos. Daria trabalho. Não lutam por melhor ambiente de negócios. Preferem subsídios.

As corporações defendem seus feudos com unhas e dentes. Pouco importa se é sustentável, ou se é melhor para a maioria. Pouco importa o desemprego, a segurança social, ou se a previdência social é sustentável no futuro.

Tudo isso é sintoma. Para além do corporativismo, dos interesses econômicos, da ganancia, existem outras razoes que podem explicar tamanha resistência e adaptação das demandas às limitações inerentes a realidade.

Em um ambiente em que a politica nunca foi confiável fica mesmo difícil abrir mão de ganhos presentes para apostar em melhoria possível. E se torna normal que todos queiram a sua parte do latifúndio imediata e perenemente, sem que estes direitos sejam impactados por qualquer fator, inclusive a realidade. Sem politica capaz de mediar consensos, o país está preso em disputas insolúveis, intestinas e danosas. Para todos.

É situação curiosa esta de nosso latifúndio. Está tomado por feudos imaginários. Mas a soma dos feudos é maior que os recursos disponíveis. E, mesmo sabendo desta realidade, não existe negociação. Ouvem-se apenas gritos, reclamações, e conflitos que degradam o todo para preservar interesses econômicos, ganhos individuais ou interesses corporativos.

E de conflito em conflito, o bolo vai diminuindo. Os debates vãos ficando cada vez mais medíocres. As ideias, mofadas. O processo, sem credibilidade. E nada melhora. Não se vai a lugar algum. Sem solução e sem resolução. Onde todos perdem. Sem exceção.

As vantagens do extremismo



John Cleese, do Monty Python

L-J, ou Querida, o país encolheu

Foram tantas tratativas pensando em melar a Operação Lava Jato que faltaram chamar a Wanderléa para fazer serenata para o Sergio Moro: “Senhor Juiz, pare agora! Por favor, pare, agora! ” Para completar, temos uma dívida monstro tipo corda no pescoço, mais de 11 milhões de desempregados, saques assaltos bilionários sanguessugas nas empresas e das empresas na gente, um projeto de poder falido tentando de um tudo para continuar atarracado. E mais a violência que nos sangra e respinga

Geleia geral, se alguém queria saber a sua mais completa tradução, chegou a ela nos últimos dias destes últimos meses. A novela mais assistida voltou ao horário das oito, o do noticiário, agora repleto de personagens que entram mudos e não saem, calados; que saem, ou ainda tentem, falando, dedando, traindo; que fogem ou são fugidos, gravam e são gravados – e gravados puramente sinceros. Os que estão numa lista aguardando a chamada. E os que estão numa outra lista de espera para ingressar em breve no espetáculo, em alguma fase de nome criativo da Operação. Mais matracas declarando roteiros que não cumpriram quando puderam.

Se for para começar a usar sinônimos, lá vem mais um: decomposição. A coisa está tão feia, sem limites, derretendo sórdida e a passos tão largos que não nos sobrará outra opção que não seja histórica, esta sim o será, e corajosa. Do ponto de vista político de unidade nacional, se estiver mesmo querendo passar melhorzinho para a história não restará a Michel Temer alternativa a não ser liderar um rápido e radical processo de transformação e renovação, chamando eleições em todos os níveis, e em um processo que no máximo se resolva desse outono ao outono do ano que vem. Só assim poderá manter o apoio, porque a impressão é que ainda vem onda grande por aí.

Mas quem dera fosse só na política essa degradação, embora a ela tudo pertença de alguma forma. Estamos precisando falar sobre a nossa índole que está mostrando um lado brutal que ainda poucos se dão conta. Aliás, poucos se dão conta que isso tudo é real, significa, e é a sua própria vida e destino no jogo.

Essa novela, “L-J ou Querida, o país encolheu” já ultrapassou Redenção, da extinta Excelsior, que tem o recorde de ter ficado no ar por mais tempo na televisão brasileira. Foram vinte e quatro meses e dezessete dias, 596 capítulos. A história agora, a atual, parece infinita, um polvo, e de cada uma de sua pernas cortadas, surgem outras, ainda mais compridas, como rabos de lagartixa. As histórias esticam sua dimensões e alcançam cada vez mais personagens detrás de portas e janelas onde tentavam se camuflar.

Enquanto discutimos estruturas burocráticas de ministérios, fazendo cara de conteúdo, bocas e bicos, e usando argumentos chulos e apelativos para falar sobre a cultura, ela se nos apresenta em sua mais brutal face. No estupro coletivo da menina, que ainda por cima suporta agora em cima dela as dúvidas dos detalhes, e a ineficácia da proteção e investigação policial; nos assustadores números do índice nacional de estupros e violência contra a mulher. Na desonestidade intelectual dos que se afundam na tentativa de torcer o rabo da porca, para salvar a que fizeram heroína, e heroína do nada é. Se foi, foi.

As estribeiras estão soltas. A pedra atirada que mata o rapaz que dormia embalado nas curvas da estrada de Santos rolou do alto de uma montanha que desmorona, nos fazendo lembrar de olhar para cima. Para ver se vem rolando outras e tentar delas desviar. Ou procurar por Deus, pedindo que nos perdoe a todos por uma possível omissão que estaria escrevendo essa história, que nos suspende, e que embora possa parecer comédia, tenha até seus momentos hilários, não é.

É drama e dos grandes, de ainda nos fazer chorar muito. Com reprises programadas.

Ainda na luta

Antes que eu me esqueça: também quero eleições... depois que os aliados Lula e Cunha forem para a cadeia, é claro. Mas meu tema aqui é outro. Amigos me falam de uma nova onda de conservadorismo se alastrando pelo país. Não está correto: essa onda é velha. A gente foi que se enganou com a cor da chita.

Esta é a verdade: neste século 21, o Brasil avançou bem menos do que a gente pensou-desejou-acreditou. Principalmente, no campo da moral e da cultura. Dos comportamentos sociais. A gente chegou a imaginar que estava bem à frente.

Achamos que a discussão do aborto, apesar de evitada pela antifeminista Dilma, a Honesta, era praticamente página virada. Que a maconha estava na véspera de ser legalizada. Que a homofobia, apesar de tudo, seria prontamente banida. E não era nada disso.

A gente estava dançando em outro ritmo, compassos adiante, sem perceber que a população estava lá atrás. Os avanços não foram mais do que pequenas ilhas de calor e luz na maré do conservadorismo. Agora, as coisas estão apenas desandando. Porque os tempos, com os governos que tivemos nesses últimos anos (e com o que temos agora não será diferente, muito pelo contrário), são de paralisia e retrocesso.

As massas não engoliram nossas conquistas. As pessoas podem até não agredir um veado (não vou deixar de usar a expressão por causa dessa repressão autodenominada “politicamente correto”) na rua, mas não é porque aceitaram a veadagem. É porque não querem ser presas.

Essas coisas de drogas, homossexualismo, etc., nada disso foi realmente aceito. E não temos alternativa, a não ser lutar para continuar avançando milimetricamente, passo a passo. Vale dizer: isso vai continuar tendo de ser empurrado goela abaixo da sociedade, em nome da democracia política, social e cultural que, apesar da dupla PT-PMDB, não desistimos de construir.

Mas teremos de fazer isso à revelia de governos. Nossos políticos, mesmo quando supostamente “progressistas” (outra palavrinha idiota), se rendem por votos. Fecham imediatamente os ouvidos, se trancam, passam mal, cada vez que uma ideia nova bate à porta.

Nossos partidos – fingindo-se de direita ou de esquerda, tanto faz – promovem a sacralização do atraso e da ignorância. Por uma razão muito simples: dependem disso para sobreviver e dominar. Quanto a nós, que permanecemos na contramão do reacionarismo vigente (pouco importando suas supostas colorações ideológicas), não devemos nos esquecer de pelo menos uma coisa: a utopia é a última que morre.

A teoria de Piketty e o fracasso do capitalismo à brasileira

Existem vários graus de capitalismo, desde o mais selvagem, ainda praticado em alguns países da África, do Oriente e da Ásia, até alcançar o mais elevado, nas cinco nações da Escandinávia. No caso do Brasil, há décadas tenta-se preservar um estranho tipo de capitalismo, em que a miséria absoluta é forçada a conviver com a riqueza total, embora qualquer idiota possa perceber que esse tipo de contato/convívio social não tem a menor possibilidade de dar certo. O resultado todos veem no dia a dia da classe média alta, que hoje vive protegida detrás de muros elevados, grades e cercas farpadas e até eletrificadas. Somos reféns do capitalismo à brasileira.

Faz lembrar a conhecida a piada do advogado Heráclito Sobral Pinto, a quem conheci quando ele morava no Edifício Zacatecas, em Laranjeiras, abrigado no apartamento da namorada francesa do poeta Manuel Bandeira, no período em que os amigos estavam reformando a casa dele, na rua ao lado. Quando perguntavam a Sobral sobre a democracia à brasileira, ele respondia que isso jamais existiu: “O que há é o peru à brasileira”.

Seis décadas depois, pode-se dizer o mesmo em relação ao capitalismo à brasileira que tentam nos empurrar goela abaixo. Isso não é existe, não pode dar certo e ajuda a explicar o caos em que nos metemos nos governos do PT, a partir do segundo mandato de Lula, quando começou a maquiagem das contas públicas, que culminaram com as trágicas pedaladas de Dilma Rousseff.

Pode-se caminhar com firmeza na análise do modelo brasileiro seguindo a trilha do economista francês Thomas Piketty, que balançou as entranhas do sistema financeiro mundial no início de 2013, ao lançar “O Capital no Século XXI”, com uma realística visão da trajetória da moderna Economia Política, que vem sendo ensinada equivocadamente nas universidades.

A tese de Piketty tem base numa fórmula simples e impactante que explica a desigualdade econômica: “r > g”. Ou seja, o retorno sobre o capital é geralmente maior do que o crescimento econômico. Isso significa que, ao contrário do que os otimistas pensam, a desigualdade econômica mundial não tende a diminuir. Muito pelo contrário, o abismo econômico e social está se aprofundando, acreditem se quiserem, como dizia Robert Ripley, o cartunista mais famoso do mundo no século passado.

O fato é que o economista francês conseguiu mesmo provar que, ao longo da História, o rendimento do capital tem sido maior do que o crescimento da economia, independentemente da evolução da produtividade. Quem detém capital (bens imóveis, patrimônio, investimentos financeiros ou empresariais) sempre se beneficia mais do crescimento do que quem depende de seu trabalho. E quando ocorrem as crises, a classe média se julga atingida pelos ajustes fiscais e pela queda da qualidade dos serviços públicos, mas na verdade quem mais sofre são os trabalhadores menos classificados e os desempregados.

É evidente que existem grandes diferenças entre os países. “É verdade que o caso da Europa não é exatamente o mesmo que o dos Estados Unidos. O movimentoWe are the 99% [em tradução livre, Somos os 99%, em referência aos 99% dos cidadãos que não estão no topo da pirâmide de renda, criado pelo movimento Occuppy Wall Street] tem mais sentido nos EUA ou em lugares como Londres, porque neles o peso do setor financeiro e do capital na economia é muito maior. Na Europa, a maior fonte de desigualdade é o desemprego”, diz Piketty.

A seu ver, o sucesso do livro “O Capital no Século XXI” revela a necessidade de maior democratização do debate econômico, para permitir que as pessoas formem sua opinião e se participem da discussão dos problemas que interessam a todos, indistintamente.

No caso específico do Brasil, que é um país surrealista e muito diferente dos demais, o problema é a insistência na criação de um capitalismo sem risco, com altas taxas de juros, que induz as pessoas a aplicarem o capital no mercado financeiro, ao invés de investi-lo em atividades realmente produtivas, que possam gerar empregos.

Sob o ponto de vista prático, o dinheiro da corrupção brasileira poderia até ter efeito benéfico ao país, se os corrompidos o investissem aqui na abertura ou expansão de empresas. Mas o que fazem? Simplesmente, abrem contas secretas em paraísos fiscais, para esconder e proteger o dinheiro sujo, porque não confiam no país. Justamente por isso, o crime de corrupção envolvendo patrimônio público deveria ser punido com severidade máxima, mas no Brasil quem faz as leis acaba delas se beneficiando.

A crise no Brasil é passageira, já tivemos outras, até piores, porque desta vez a inflação ainda não se descontrolou. Quinto maior país do mundo em extensão territorial e população, o Brasil continua a ser um gigante meio abobado e atraente. Das 500 maiores empresas do planeta, 400 estão instaladas no Brasil e isso tem um enorme significado. Sabem que nosso potencial de crescimento econômico é extraordinário. Se explorássemos melhor os minérios e impedíssemos que fossem contrabandeados, já seria um bom começo. Muitos outros setores são altamente viáveis e estão pouco explorados. Mas quem se interessa?

Quanto a Thomas Piketty, que já visitou nosso país algumas vezes, jamais vai entender a economia brasileira. Somente conseguirá nos compreender em outra encarnação, se nascer aqui e der a sorte de sua família ter condições de pagar escolas de primeira linha. Se estudar em escola pública, vai ser mais difícil.

Penúltima da gestão Temer: ministro da Transparência vinculado à escuridão

Se Michel Temer não acordar, vai chegar uma hora em que a paciência dos brasileiros, dos quais 58% já não o queriam na Presidência, se esgotará. Quando parece que está tudo normalizado —o Romero Jucá afastado da Esplanada, o Ministério da Cultura recriado, nenhuma acusação nova feita contra o Eduardo Cunha na última meia hora, o Lula quieto, a seleção do Dunga derrotando o time do Panamá por 2 a 0, o impeachment da Dilma caminhando no Senado, as pessoas começando a se conformar com a peruca ridícula do Antonio Fagundes na novela—, surge mais uma gravação do Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro.

A encrenca se insinua pela segunda semana. Temer faz um inventário de suas preocupações e pensa: “Hoje, finalmente, vou poder dormir mais tranquilo…”. E não pode. Tem que se preocupar com a nova gravação do delator Sérgio Machado, divulgada pelo Fantástico, em plena noite de domingo. Responsável pelo combate à corrupção, Fabiano Silveira, ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, foi gravado dando aula a suspeitos de desvio$ sobre como se livrar da Lava Jato. Advogado, Fabiano distribuiu seus ensinamentos ao próprio Machado e a Renan Calheiros, padrinho de sua nomeação para o ministério de Temer.


Quem saiu às ruas para pedir a cabeça de Dilma e repudiar a corrupção observa tudo o que houve em Brasília e se desespera com o que ouve nas gravações de Machado. Elas sugerem que Temer no poder é uma troca de seis por meia dúzia. Afastada a ladroagem do PT, assanhou-se a ladroeira do PMDB, que está obcecada pela ideia de asfixiar a Lava Jato, não de salvar o país. Não passa um dia sem que haja um novo problema no governo seminovo —como se não bastassem o André Moura, um triplo-réu na liderança do governo, e o Waldir Maranhão, um néscio multi-investigado no comando da Câmara.

Quando o ministro Henrique Meirelles (Fazenda) está quase convencendo um pedaço do país de que conseguirá achar uma saída para a crise —ainda que tenha que procurar mais um pouco—, um novo áudio captado pelo Sérgio Machado despeja no noticiário as vozes do esgoto. É como se o governo tentasse consertar a torneira dos gastos públicos e estourasse a privada. Ou Temer afasta Fabiano Silveira da poltrona de ministro ou o odor será insuportável ao final desta segunda-feira.

Na semana passada, um dia depois da saída de Jucá da pasta do Planejamento, Temer reuniu os líderes partidários para pedir empenho no Congresso. Ao abrir o encontro, declarou, batendo na mesa: “Ouvi aqui: ‘O Temer está muito frágil, coitadinho, não sabe governar.’ Conversa! Fui secretário de Segurança Pública duas vezes em São Paulo e tratava com bandidos. Sei o que fazer no governo e saberei como conduzir.” Será? Entregar o Planejamento a um enrolado na Lava Jato, a liderança do govenro a um suspeito até de tentativa de homicídio e a pasta anti-corrupção ao afilhado de Renan não parecem bons prenúncios.

Vivo, Cazuza diria a Temer: “Tuas ideias não correspondem aos fatos. Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades.” No gogó, Temer é um defensor da Lava Jato. Na prática, chefia um governo apinhado de suspeitos e cúmplices. E os problemas não param. Na semana passada, Temer tentou apagar outro pavio. Indagou ao ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves, também investigado na Lava Jato, se não seria o caso de deixar a Esplanada. O amigo não se deu por achado. O governo parece ter perdido a noção do perigo. Brinca com os nervos dos brasileiros. Ssssssssssssssssssssssssss…

É grave o rombo!

Se você é jovem esperto nos dias de hoje, é muito difícil imaginar que existe alguma solução para os problemas que estamos enfrentando
Jonathan Franzen

O que será, que será

Se a indústria, de forma geral, reclama da recessão e da forte queda da produção dos últimos tempos, o mesmo não poderão dizer os fabricantes e o comércio de gravadores; nunca tal equipamento foi tão utilizado e em especial no trabalho de investigação das mais retumbantes operações, por parte da polícia e do Ministério Público Federal, para seu posterior julgamento, pelo Judiciário, nas frentes abertas Brasil a dentro para coibir a corrupção, o tráfico de influência e a formação, a pós-graduação, o mestrado e o doutorado de quadrilhas. É o que mais se tem visto, ultimamente. Quem se lembra de como se instalou a operação Lava Jato viu que a contadora de Alberto Youssef, Meire Poza, passou meses gravando depoimentos colhidos em encontros que ela mesma armou exatamente para entregar à PF a atividade delituosa de um grupo formado para viabilizar negócios de empreiteiras de obras públicas com governos.


Pela mesa de Meire passavam as negociatas engendradas por Youssef e que ela teria que dar forma de verdadeiras, transformando-as em fatos contábeis. Em algum momento, era preciso que somas absurdas de dinheiro, nutridas pelo caixa 2 das empresas clientes, tivessem um fio de realidade; esse era o papel de Youssef e de sua gangue, nela presente a própria Meire. Por alguma razão, ainda um tanto obscura, a contadora resolveu abrir o jogo e ajudar a colocar seu patrão na cadeia. Nasceu aí o sururu.

Agora, quem ocupou a cena foi o ex-diretor da Transpetro, o ex-senador Sérgio Machado, um tipo que frequentou altas rodas da República e que se aplicou em gravar conversas com políticos de alto-coturno, de quem ouviu, no pouco que já fora revelado da degravação de sua delação premiada, chocantes confissões de autoria e cumplicidade, as mais deslavadas atitudes, quase todas capituladas no Código Penal. Algumas, menos importantes, são fuxicos, mas que expõem a indigência moral de muitos de nossos representantes, no caso, todos aboletados no poder e com responsabilidades de mando e decisão. Decidem sobre a vida dos brasileiros, da forma mais ampla e abrangente, sem escapatória. O acervo de Sérgio Machado tem material para escandalizar-nos muito mais, tudo colhido em Brasília, pelo gravador que ouviu, em “tenebrosas transações”, políticos do PMDB, do PP, do PSDB e do PT.

Não há um dia mais sem que a mídia revele uma gravação, uma delação, uma mutreta engendrada para que alguém possa levar pra casa o que o Tesouro nos tomou como impostos e não transformou em ações da responsabilidade genuína do Estado, como educação, saúde e segurança, para citar algumas.

O Brasil está falido, a sociedade desmotivada e sem esperança e os nossos políticos, sem projetos e compromissos. Para onde vamos?

Melhor comédia em Cannes

Atores brasileiros denunciaram no Festival de Cannes o golpe de Estado no Brasil. Isso aconteceu pouco depois de o novo ministro da Fazenda declarar que sua primeira missão será descobrir e divulgar a verdade sobre as contas públicas no país. Ou seja: o governo derrubado pelos golpistas mantinha as finanças nacionais na clandestinidade – para poder cometer à vontade os crimes fiscais em que foi flagrado. Faltou traduzir para o francês: sujeitar a malandragem petista à lei é golpe.

Sonia Braga tem todo o direito de querer trocar Gabriela Cravo e Canela por Dilma Cravo e Ferradura – cada um busca a felicidade onde bem entender. O que já passou da hora é a responsabilização criminal da presidente afastada por suas insinuações de golpe de Estado. Aí já não é cinema – é Código Penal.

O governo Michel Temer começou da seguinte forma: Henrique Meirelles na Fazenda, Ilan Goldfajn no Banco Central, Mansueto Almeida no Tesouro, Maria Silvia Bastos Marques no BNDES, Pedro Parente na Petrobras. Vamos explicar de forma alegórica, para a criançada de Cannes entender: sai o time da penitenciária, entra o Barcelona.

Mas os progressistas fiéis à companheira golpeada não gostam de Messi, Neymar, Luisito Suárez e companhia, que acham muito antipáticos e neoliberais. O time da penitenciária tem mais ginga – e se encaixa melhor no hino revolucionário que sustenta a mística dessa gente: caminhando e cantando e seguindo o cifrão.

A ordem, portanto, é disparar contra Temer. A primeira crítica proferida de todos os lados: é um ministério sem mulheres. Para os democratas golpeados, mulher é uma espécie de patente, um atributo genérico. Qual ou quais ministras os críticos recomendavam, e por que, ao novo governo? Ninguém sabe. Esses pobres golpeados tratam gênero como virtude, sexo como credencial.


Sendo assim, vamos à escalação das mulheres que fizeram história nos virtuosos governos petistas: Erenice Guerra, Gleisi Hoffmann, Graça Foster, Miriam Belchior, Benedita da Silva, Ideli Salvatti, Rosemary Noronha, entre outras sumidades – sem se esquecer, naturalmente, da estrela guia Dilma Rousseff. É necessário declinar os prontuários? Quem quiser diversão macabra que vá ao Google.

Viram como é fundamental um governo com mulheres?

Essa é a narrativa tosca da qual o Brasil virou refém, e não só a turma da cantilena parasitária. Exigir mulher no ministério de Temer é o que há de mais machista: essa é a autêntica mulher objeto, transformada em troféu do proselitismo. Mas eis que surge a troca de comando no BNDES. Quem assume? Maria Silvia Bastos Marques.

O Brasil bonzinho detesta a virtude. Maria Silvia vale por todas as supracitadas juntas (no que elas remotamente tenham de bom, claro), mas sua nomeação atrapalha a narrativa de que o governo Temer é PMDB, é retrógrado, é machista, é Eduardo Cunha. Silêncio total. Ótimo: muito ajuda quem não atrapalha.

O BNDES enfrenta suspeitas de ter se tornado um antro de tráfico de influência do PT – e, particularmente, de Lula, como aponta investigação do Ministério Público sobre ações do ex-presidente em favor de empreiteiras no exterior. O problema da nomeação de Maria Silvia é que isso acaba. Se não do dia para a noite, tão logo ela vá iluminando ponto a ponto as catacumbas.
Como se pode ver, o golpe denunciado em Cannes é grave: só pode ser uma conspiração para matar a elite vermelha de fome. O Barcelona está em campo para tentar reverter o calamitoso 7 a 1 petista, e a patrulha progressista está à beira do gramado jogando pedra e gritando contra os conservadores, os feios, os chatos, as recatadas e as do lar.

Essa síndrome brasileira parece não ter cura. Freud (ou Nelson) poderiam diagnosticar uma inconfessável vontade de apanhar (por qualquer placar). Foi o que se viu no UFC Brasil. O campeão dos pesos pesados não resiste à presepada e entra com musiquinha de Fórmula 1, “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, diz que são 45 mil com ele no octógono e... Os 45 mil são nocauteados com um direto no queixo aos dois minutos de luta.

Prezados parasitas da mística, vão procurar sua turma no Festival de Cannes – e celebrar o prêmio de melhor comédia. Deixem o Brasil que trabalha trabalhar.