domingo, 24 de abril de 2016

A última trincheira chavista

O Supremo Tribunal Federal partiu para o vale-tudo. A partir de agora, se o Brasil ficar em casa, vai ter golpe.

A democracia brasileira foi sequestrada há 13 anos e ficou refém de uma chantagem emocional. Qualquer abuso de poder, qualquer transgressão, qualquer crime passaram a ser indultados em tempo real por uma crença miserável: a de que o país havia chegado ao paraíso da justiça social após cinco séculos de opressão, e que não se podia tocar em Lula e no PT – sob o risco de o encanto se quebrar. Foi assim que floresceram o mensalão e o petrolão, numa boa.

Já no terceiro ano do sequestro, o homem-bomba Roberto Jefferson mostrou ao país o que os iluminados da justiça social estavam fazendo no escurinho. Aí o Brasil tomou uma providência drástica: mandou continuar o roubo. O próprio Lula ficou surpreso ao constatar que, apesar da revelação obscena do valerioduto, seus súditos caminharam alegremente para as urnas e sancionaram o esquema, dando-lhe a reeleição. Lula é inteligente, e entendeu o recado: agora eu posso tudo.

E fez de tudo. A Lava Jato veio mostrar o que parecia impensável: naquele momento em que Lula aparecia, contrito e cabisbaixo, pedindo desculpas à nação pelo mensalão, a turma do petrolão levava ao gabinete dele a negociata de Pasadena. Em plena chaga aberta do esquema de Marcos Valério, Dirceu, Delúbio e companhia, o governo do PT montava tranquilamente a compra de uma refinaria enferrujada que irrigaria de propinas a eleição de 2006. Definitivamente, inibição não é o problema desse pessoal.


Seguiu-se uma década de trampolinagens, que arrebentaram a maior empresa nacional e levaram o país à recessão profunda, mas o sequestro da democracia perdurou – o suficiente para garantir o quarto mandato consecutivo dos sequestradores. Quando Dilma foi reeleita no meio da orgia, toda lambuzada de petrolão, os meteorologistas da política decretaram: acabou a Lava Jato. As urnas calaram Sergio Moro.

Só que não. Como tem sido repetido neste espaço: Sergio Moro só é parável à bala.

E foi assim que o país chegou à beira do impeachment, apesar de sua opinião pública frouxa, de sua oposição débil e da chantagem emocional do filho do Brasil – que não sabia de nada e não tinha nada, só um par de pedalinhos personalizados. Até no Congresso Nacional, que também esteve sequestrado todo esse tempo pelo exuberante caixa do Partido dos Trabalhadores, o vento virou. E onde foi que o vento não virou?

No Supremo Tribunal Federal. A Corte máxima do país é a última cidadela dos malandros, o bastião final do parasitismo erudito, a derradeira trincheira do chavismo companheiro. Foi esse poder aparelhado que impediu até agora a abertura de investigação contra a arquissuspeita Dilma Rousseff, madrinha de Erenice, de Pasadena, de Mercadante, de Delcídio, das pedaladas, de Cerveró, de Edinho, das manobras obstrutivas à Lava Jato. A presidente que mandou o Bessias com um termo de posse ministerial para esconder o ex-presidente da polícia.

Em triangulações mágicas entre o procurador-geral, o ministro da Justiça e o ministro relator do petrolão no STF, essa presidente atolada num pântano de indícios e evidências se manteve olímpica: “Não há elementos para se investigar Dilma”.

No momento em que, apesar de todo esse eficiente circo mambembe, o impeachment amadurece, surge a bala de prata do supremo golpismo: pedir o impeachment de Michel Temer. Do mesmo jeitinho com que o STF blindou a companheira presidenta e alterou o rito do impeachment dela: metendo o pé na porta do Congresso Nacional. Se não é Teori, é Barroso, se não é Barroso, é Lewandowski – o presidente certo na hora certa –, se Toffoli recua, surge Marco Aurélio (elemento surpresa). Dois anos de literatura da Lava Jato estampam, de forma cristalina, que o esquema é Lula, a preposta é Dilma e o arcabouço é o PT. Mas, para manter o sequestro, vale atirar no vice-presidente. É a bala de prata.

Aí o país abobado se pergunta por que Temer é melhor que Dilma. Deve ser por isso que Lula, na porta da cadeia, continua acreditando que repetirá o milagre do mensalão e sairá de novo nos braços do povo. Se o povo não falar grosso agora com os embusteiros do STF, demonstrará que merece Lula. Para sempre.

Apenas um milagre

Enquanto se discute a decisão da Câmara dos Deputados que autoriza o processo de impeachment, fica claro que para ter-se chegado a esse momento, valeram, mais que complôs, as escolhas desastradas da presidente.

Embora pese a incapacidade de se relacionar com um congresso, que se apresentou ao mundo no último domingo com toda sua tosca crueza, a desventura veio do petrolão, ápice da corrupção planetária, e da crise econômica que fez explodir o desemprego, milhares de empresas com a sequencial derrocada do comércio. Isso sim, explica os 367 votos de domingo e as ruas cheias de insatisfeitos pressionando o legislativo. Dilma em 5 anos e 3 meses de governo frustrou a nação, escalou o vértice de impopularidade.


Num país superdotado por natureza, com uma população “jovem”, com amplas fronteiras inexploradas, com jazidas inestimáveis, com potencial de crescimento que o coloca a frente de qualquer outro país, vem sofrendo no governo de Dilma um encolhimento sem precedentes.

Juros estratosféricos, gastos desregrados crescendo constantemente acima do PIB, desperdício e má aplicação de recursos em efêmeros Estádios, ainda em obras fora do Território Nacional, quando falta infraestruturas básicas e logísticas. O endereço das escolhas faz crer que não se priorizam os problemas fundamentais, mas os interesses de empreiteiras e obras que desviam recursos.

O fracasso deste governo não se deve as ideias mais recentes do socialismo ou do comunismo internacional que o PT traz consigo dos seus primórdios. São erros de execução e de improvisação. A China, metódica e com alvo traçado, mostrou o caminho do crescimento e do resgate do IDH mantendo-se comunista. Transformou-se, e ainda ajudou com seu exemplo os países do Leste Europeu, antigo bloco soviético (onde Dilma tem a origem familiar) a superar limitações e atrasos socioeconômicos.

Se o antecessor de Dilma abusou de anabolizantes para alavancar a economia, lesionando colateralmente os órgãos vitais, ela em cinco anos não conseguiu afrouxar o sucesso. Não superou o que de negativo herdou, nem preservar o que de bom encontrou.

A infelicidade dela apagou o mito de Lula. Errou ao intervir no setor elétrico, persistiu nos erros da Petrobras que virou a maior produtora de escândalos de corrupção. Permitiu abusos de juros e tributos descabidos. Sem programas definidos, a presidente esfolou o setor de biocombustíveis, asfixiou as indústrias, inviabilizou através do cambio a competitividade do Brasil.

Em 2014, abriu as comportas para se reeleger e esvaziou as reservas.

As agressões ao código foram dribladas com pedaladas, sem compromisso em corrigir efetivamente as causas e partir para a austeridade inadiável.

Em 2014, o crescimento do PIB se deu em apenas 0,1% que com uma população crescendo 1,4% ao ano, sinalizou o primeiro grave retrocesso. Seguiu-se uma queda de 3,7% em 2015, com Dilma lamentando a falta da CPMF (com essa teria o PIB caído mais de 5%). Obstinou-se, no começo de 2016, deixando industrias desistirem de existir, e com isso acelerar a queda sobre quedas do PIB, que atingiu 4,4%, resultado dos últimos 12 meses medido em março 2016.

O conjunto da obra é medido em números assustadores. A reação da opinião pública e da Câmara dos deputados dificilmente seriam diferentes de quanto registrado, no domingo último.

O pronunciamento na ONU de quarta-feira respalda o desnorteamento, Dilma está pensando em si mesma e não no país. Acredita numa perseguição, e subestima que as consequências não foram piores apenas pela incrível tolerância do povo brasileiro, quase sem limite, em ser maltratado
Dilma soltou as rédeas para bancos e empreiteiras.

Com os bancos ganhando desaforos pelos juros demenciais que pesam sobre a dívida pública (R$ 501 bi pagos em 2015); com empreiteiros pilhando barbaramente a Petrobras, as obras deslumbradas da Copa e da Transposição; com os sindicatos embarcados na proa; com a oposição silenciada pelo mesmo pecado original. Tudo, enfim, colaborou para que os erros de Dilma se empilhassem na porta do Planalto.

O governo dela tem traços economicamente insustentáveis e altamente destrutivos, agravados por um Congresso Nacional de baixo nível, mal-intencionado, aproveitando-se de forma perversa.

O governo e as estatais distribuídos para desfrute de aliados, de profissionais do estilingue. O resultado é isso que aí está. Também as boas propostas que chegaram a sua mesa, a presidente não soube aproveitá-las, nem saindo da boca de prêmios Nobel.

O motor do Estado fundiu, enquanto o comandante ficava na rota dos icebergs.

Dilma se está interessada em descobrir os motivos dos desastres pode usar o espelho do palácio onde mora e questionar a si mesma. Ainda se tem algo de patriótico e de bom para o Brasil, espera-se que o faça com dignidade.

Será que ele também engole?

Acabei de ser ofendido num restaurante paulista. Cuspi na cara do coxinha e da mulher dele! Não reagiu. - escreveu José de Abreu em sua conta no twitter. E não ficou por aí.

O covarde perdeu a linha, deve ter cagado nas calças. Cuspi na sua cara, na cara da mulher dele e ele não reagiu. Covardes fascistas. - arrematou em seguida, demonstrando a costumeira virulência que não é de hoje o caracteriza. Teve mais.

Fujão covarde levou uma cusparada na cara e a mulher levou outra. Fascistas são tratados assim.- exclamou em tom vitorioso, finalmente encerrando uma saraivada de mensagens impossível de não provocar asco em quem possui um mínimo de caráter e equilíbrio emocional.

Pelo pobre diabo que é, já caindo aos pedaços e no entanto sujeito a arroubos típicos de um militante juvenil, José de Abreu não merece ser levado a sério. Assim como grande parte da nossa classe artística, é tão somente um idólatra de bandidos incapaz de disfarçar sua natureza autoritária.

Dito isto, não deixa de ser sintomático que uma das semanas mais importantes em nossa história termine emoldurada por dois episódios tão abjetos, as escarradas de Jean Wyllys em Jair Bolsonaro e esta de Abreu em um casal, primeiro no rosto do rapaz, depois no de sua companheira.

Ambas as situações podem render bons frutos para a sociedade - Wyllys perder seu mandato por falta de decoro, e o rompimento definitivo da auréola protetora que envolve os artistas em geral - mas já estou preocupado com a passada de pano que a mídia com toda sorte dará ao segundo episódio.

Não é de hoje que a imprensa se empenha em botar panos quentes no chamado Fla-Flu, como se paternalizar a população pudesse de alguma forma trazer benefícios ao país, ignorando que o atual momento se deve precisamente à nossa preferencia por evitar assuntos importantes devido as naturais faíscas que estes provocam.

Desta vez não será diferente. A culpa pela cusparada recairá sobre o debate, jamais será atribuída a um sujeito que, insisto, não é de hoje, sem o menor pudor utiliza de seus perfis em redes sociais para agredir de maneira insana.

Defenderão que, enfim, virtual e real são coisas distintas, que pessoas públicas sempre tiveram e continuam tendo o direito de flanar por este país como se não tivessem nada a ver com o que está acontecendo. Que podem ofender, xingar e apregoar todo tipo de baboseira, sem que por este motivo mereçam ser encaradas com menos afeto, tampouco indignação.

A mídia em geral, principalmente os programas de debate na televisão, deveriam preocupar-se, isto sim, em travar um debate menos chapa-branca e mais condizente com o nosso dia a dia, sem se preocupar em ferir suscetibilidades.

Digo, não há sentido em fazer diferente e é até irresponsável propor às pessoas uma falsa imparcialidade quando esta opção se apresenta inviável nas gôndolas dos supermercados. Sem falar na postura intransigente dos defensores do governo. Acaba gerando um desequilíbrio fatal para a discussão.

Indo direto ao ponto, o governo Dilma acabou e o pesadelo do PT apenas começou. É este o motivo de tanto belicismo por parte da esquerda, incluindo aí dirigentes e simpatizantes. Passaram décadas semeando o nós contra eles, e quando finalmente eles decidiram acordar, agora querem melar com o jogo.

De tão desesperados, não bastasse a patética tentativa da futura ex-presidente em propagar um clima de instabilidade institucional, e ameaças toscas como “vai ter luta!” e “vai ter tiro!”, só restou incendiar Roma via cusparadas.

Pois cometerá um grande erro quem apostar em um Brasil de joelhos, tremendo de medo pelo alarido de velhos coiotes aflitos com seca que se anuncia.

Você não é intocável, José de Abreu. Pode babar de raiva, é até compreensível, mas não se considere intocável, intimidador, ou pense que junto de alguns coleguinhas ainda têm o poder de propor lavagem cerebral coletiva. Este tempo já passou.

Existe uma ideologia petista?

Um conjunto reconhecível de ideias o Partido dos Trabalhadores (PT) certamente tem; quanto a isso, não há dúvida. Mas é um conjunto que mereça ou deva ser chamado de ideologia?

Em diversas ocasiões, há cerca de 20 ou 25 anos, muita gente que não votaria no PT afirmava enfaticamente, em tom de crítica aos demais partidos: “O PT pelo menos tem uma ideologia”. Tal elogio (sim, era um elogio) era comum até no meio empresarial. Algumas vezes, cheguei a retrucar que era melhor não ter ideologia nenhuma a ter uma sem pés nem cabeça.

Agora que o PT atingiu a invejável marca dos 36 anos – a madureza, se coubesse aqui uma metáfora biológica –, parece-me oportuno indagar em que, exatamente, consiste o referido conjunto de ideias. Qual é o seu conteúdo? Como evoluiu em suas três décadas e meia de existência?

Nunca é demais lembrar que nos primórdios o PT se apresentava como um partido socialista, mas se apressava a explicar que seu socialismo era sui generis. Era um socialismo em aberto, “em construção”.

Devo confessar que essa definição me deixava embatucado. Na versão soviética, o conceito de socialismo sempre me pareceu de uma clareza meridiana.

1) A divisão da sociedade em classes sociais explica-se pela apropriação privada dos meios de produção: indústrias, fazendas, bancos etc;

2) atribuindo-se a missão de representar o proletariado, o Partido Comunista (PC) toma o poder e estatiza os meios de produção, extinguindo, por conseguinte, o fundamento da divisão em classes;

3) para consolidar a tão almejada sociedade sem classes o PC mantém férreo controle sobre o poder de Estado, exercendo-o como uma “ditadura do proletariado”.

O problema, retomando o fio do argumento, era que o PT queria rejeitava tal modelo, mas não sabia o que colocar no lugar dele. Sem a clareza do conceito soviético, substituído pelo “socialismo em construção”, os petistas pareciam estar pedindo um cheque em branco. Mas, por incrível que pareça, essa absoluta vacuidade não funcionou contra, e, sim, a favor da implantação do partido. Ajudou-o a angariar apoios, principalmente entre os jovens universitários, geralmente movidos pelo desejo romântico de acreditar que sua política não é deste mundo. Que agem por ideais – por motivos “elevados” –, sem sujar as mãos no crasso mundo dos meros “interesses”.

Com o tempo e o acúmulo de experiências práticas, muitas outras interpretações e imagens surgiram, trazendo mais calor que luz à discussão que ora nos ocupa. Numa pesquisa empírica sobre os eleitores do partido, André Singer julgou discernir entre eles um forte veio “conservador”. Com este conceito em si discutível, ele apenas acrescentou outra incógnita à equação: o que temos, então, é um partido que se diz radical, inclinado ao socialismo, que se apresenta como representante putativo de uma base social conservadora.

Marilena Chaui, num episódio célebre, declarou odiar a classe média por sua “ignorância” e sua tendência ao “fascismo”. Quando externou tal ponto de vista, “seu” governo – quero dizer, o governo Dilma Rousseff – proclamava aos quatro ventos um dos maiores sucessos de sua política econômica, graças à qual mais de 50% da população brasileira ascendera à classe média. Devo concluir que a celebrada professora titular da Universidade de São Paulo – ipso facto integrante da mais alta elite brasileira – empresta seu prestígio a um governo que tem entre suas principais metas criar uma camada social ignorante e intrinsecamente fascista?

E que dizer de Luiz Inácio Lula da Silva, o símbolo e chefe inquestionável do PT? Não há como falar de Lula sem antes falar do mito Lula: o imigrante iluminado que veio para São Paulo, venceu no sindicalismo e se transformou no líder carismático fadado a conduzir as massas à tão esperada redenção. O mito, como bem sabemos, foi em grande parte criado por uma parcela da elite cultural, quero dizer, por professores universitários, artistas, escritores, clérigos e jornalistas, coadjuvados, é claro, pelo outrora rebelde sindicalismo do ABC. Esse segmento da elite cultural “construiu” (para usar o verbo da moda) e ainda hoje cultiva o mito Lula como um líder “de esquerda”. Ora, mesmo quem não se define como esquerda, mas algo leu de História e aprecia o bom debate de ideias, haverá de se sentir desconfortável ao ver o conceito de esquerda, cuja densidade histórica ninguém de bom senso haverá de negar, associado ao populismo – essa aberração endêmica que Lula personifica num grau poucas vezes igualado na América Latina.

O que de fato importa é a fala dualista do PT: a divisão maniqueísta do mundo, o povo contra a “zelite”, o “nós contra eles”, etc. Isso é um pensamento de esquerda que intelectuais lidos e viajados possam honestamente endossar? A íntima associação que o governo Lula e, depois, Lula como pessoa física estabeleceram com o chamado “grande capital financeiro” e com as maiores empreiteiras do País são mais do que suficientes para demonstrar que o “nóis contra a zelite” nunca passou de uma fulgurante mistificação.

Trata-se, na verdade, de um maniqueísmo desprovido de conteúdo, uma persistente propensão a acirrar e dividir a sociedade em termos de “nós contra eles”. Na história das ideias, quem melhor expressou essa percepção do universo político foi o jurista alemão Carl Schmitt, um precursor do nazi-fascismo, para quem a essência de toda política é a contraposição amigo x inimigo. Fariam um bom uso de seu tempo os adeptos do mito Lula e do lulopetismo se relessem seu ensaio "O Conceito do Político".

Bolívar Lamounier

Os que absolvem a máfia lulopetista se escandalizam com erros de concordância

O que sinaliza em cada um de nós a trilha dos nossos desterros – de sonhos, histórias, ganhos, perdas, caos e paz? Nas repugnantes homenagens dos deputados Glauber Braga (PSOL-RJ) ao terrorista Marighella e Jair Bolsonaro ao torturador coronel Ustra – covardes glorificando covardes –, domingo passado, vimos criaturas desterradas da noção de democracia e de liberdade.

Figuras de torpe extremismo que não suportam a democracia porque ela enseja adversários, coisa percebida como alvo de cusparadas, tortura e paredão. Deveriam ter o mandato cassado, mas, para tanto, o Brasil precisaria redescobrir o valor da democracia nos limites que ela implica. Enquanto isso, vigora o fetiche da liberdade total, uma impossibilidade tirânica.

Desse desprezo aos limites e de cinismo patológico padece a presidente que ataca as instituições e a nação com a lenga-lenga do golpe fictício. Na trilha do próprio desterro como combatente pela democracia – segundo a entendem Bolsonaro e Braga –, Dilma Rousseff obteve de quem a torturou mais do que uma experiência pavorosa: obteve uma biografia, à qual sempre volta e que é tudo o que tem para exibir.

Tratando-se de pessoa de caráter degradado, mesmo esse currículo mínimo é fraudulento porque raramente menciona a participação dela na terrorista VAR-Palmares. Não, ela não foi torturada “porque mereceu”, mas porque o Estado criminoso agia fora da lei. Falar em merecimento legitima os crimes daquele regime e obriga a legitimar os do castrismo ou os de Vargas porque tortura e terrorismo não têm lado, exceto aquele oposto ao da civilização.

Muita gente afirma ter sido feliz na ditadura, convicta de que os crimes do regime são inventados, só atingiram “quem merecia” ou são pequenos perante o bem que produziu. Ora, não foram a tortura e o assassinato que evitaram o Brasil se tornar uma ditadura comunista, pois o regime era forte o bastante sem apelar à selvageria; e degenerados como Ustra também eram dispensáveis para o tal milagre econômico do regime estatizante, burocrata e anticapitalista. Nasci com a ditadura já instalada e também fui feliz naquele tempo – apesar dele; é que mesmo sob ditaduras há festas de aniversário, incontáveis primeiros beijos, bailes de adolescentes, almoços de família, noites doces e dias luminosos porque a plasticidade do espírito humano encontra brechas de felicidade na amargura.

Contudo, descobrir que a ditadura brasileira fazia o mesmo que qualquer outra da Cortina de Ferro, por exemplo, me encheu de nojo e indignação; assim também vivo sob o mafioso Estado lulopetista. Repudio ambos. Mas, no país onde o óbvio tem versões, não surpreende que as redes sociais desqualifiquem a votação numa crítica velada ao resultado que, insistindo na mística vigarista de que os crimes do lulopetismo são invencionices ou pequenos perante as bondades dele, escandalizaram-se com erros de concordância nominal e verbal, as homenagens à família e a evocação a Deus.

Que pena não termos 513 doutores na Câmara, não é mesmo? Talvez porque o país também não tem 150 milhões de eleitores doutores. No Brasil, em tudo empobrecido e que tenta redescobrir a vergonha na cara, seriam esses deputados piores do que um ex-chefe do Executivo que, antes de falhar na transposição do rio São Francisco, transpôs o Atlântico separando o Brasil e os Estados Unidos? Ou do que a presidente que deseja estocar vento?

Entre as homenagens odiosas, celebrar a família foi apenas bizarrice inofensiva. Nas redes e em certo jornalismo desfigurado, sensíveis espíritos republicanos toleram que o jeca compre aquela gente semiletrada e cristã, mas não admitiram que ela ameaçasse a laicidade do Estado quando apelou a Deus ao votar. A laicidade se manteve, graças a Deus, e a presidente criminosa se danou. Condição insuficiente, mas indispensável para que no país desterrado do próprio futuro o óbvio se imponha: não há lado que redima um Estado criminoso nem fim que o valide.

A democracia exige respeito

clayton
Alívio. Nas Nações Unidas, a presidente Dilma Rousseff poupou o Brasil do vexame da denúncia de um golpe que não é golpe que ela insiste em dizer que é golpe. Foi prudente, comedida e elogiada. Não pelo que falou, mas pelo que não disse. Poucas horas depois, pôs tudo abaixo. Na entrevista à imprensa internacional despejou lamentações contra a “injustiça”, proclamou-se vítima, rogou ao Mercosul e à Unasul punições ao Brasil caso ela seja deposta -- como se os dois organismos fossem de importância crucial para o país – e voltou a decretar a ilegitimidade de seu vice, Michel Temer.

Não parou por aí. Jogou lama nas instituições brasileiras, criticando ministros da Suprema Corte que rechaçam a tese de golpismo, engendrada e propagada pela presidente e pelo PT, e a Câmara dos Deputados, que, por maioria mais do que absoluta, aprovou a admissibilidade do impedimento constitucional contra ela.

Talvez por ter lutado contra uma ditadura para tentar impor outra, Dilma tenha dificuldades para entender o conceito de democracia na sua amplitude. Fala sempre de seus 54 milhões de votos como se eles fossem garantia perene. Na sua tacanhice de visão, democracia se restringe ao ato de votar. Para ela, a vitória no sufrágio condena o eleitor a engolir o escolhido, mesmo que o eleito não seja digno da representação recebida.

Finge desconhecer que a Constituição confere a ela e a seu vice a mesma legitimidade. Goste-se ou não do vice. E que a Carta tem instrumentos – ainda que rígidos – para proteger o eleitor quando o eleito fere os seus preceitos.

Não há dúvidas de que pedaladas e empréstimos não autorizados pelo Parlamento aconteceram. O próprio governo admitiu isso ao pagar os débitos pedalados no ano fiscal seguinte ao crime. Tanto que calca sua defesa na afirmação de que todos os governos anteriores cometeram delitos idênticos. Ainda que fosse verdade, se mantida a premissa de um crime justificar outro, não só a proliferação delituosa seria endêmica como se tornaria impossível qualquer punição em qualquer época.

Mas é fato que as pedaladas não são as responsáveis pelo repúdio popular a Dilma e ao PT. Ainda que sejam definidas como crime de responsabilidade previsto na Constituição, elas estão longe de ser compreendidas pela maioria. Mas, assim como a sonegação fiscal, um crime dito menor, acabou com o lendário Al Capone, elas têm a capacidade de banir Dilma, o PT, Lula e todo rastro de imoralidades que eles patrocinaram.

O brado contra o golpe fictício e a vitimização acabaram se tornando os únicos e derradeiros tiros. Só que além dos públicos cativos eles não atingiram outros alvos. Na mídia internacional, onde Dilma imaginou ter fôlego para a sua pregação contra o “golpe”, pouco conseguiu arregimentar fora do eixo bolivariano.

No máximo, Dilma colheu a defesa de eleições gerais na The Economist. Não por se renderem à sedução da presidente vítima, mas por entenderem que nem Dilma nem ninguém na linha de sucessão direta – Temer, Eduardo Cunha (que a revista inglesa desconhece estar legalmente impedido de assumir a Presidência da República por ser réu no STF), Renan Calheiros e outras dezenas de parlamentares – teriam ficha limpa para assumir o poder.

A prestigiada revista semanal inglesa acerta na sintonia com a demanda popular, mas erra na viabilidade, inclusive constitucional, da execução de um pleito extra.

O fora tudo é agradável e simpático de ser defendido. Parece ser a solução para todas as coisas. Mas não é. Muito menos está no escopo político de quem defende eleições já. No projeto protocolado na semana passada no Senado, a proposta de novo pleito se restringe a presidente e vice para um mandato tampão de dois anos. Não inclui os demais – nem deputados nem senadores, que não emprestariam dois terços de maioria para votar contra si.

Ou seja, cada defensor da ideia malandra de diretas já, da dona da Rede, Marina Silva, ao PT, Lula e Dilma, sabe da impossibilidade da tese.

Eleições extraordinárias têm ritos a serem seguidos. O esforço de animar a galera com elas quando se sabem improváveis é tão danoso quanto o engodo da pregação do golpe. Ambos os discursos tentam ludibriar o público. Pior: o fazem em nome da democracia, enxovalhando-a.

A fraude que a esquerda engoliu

Ao contrário do que acontece na maior parte do mundo, a desigualdade - essa imensa chaga no corpo social brasileiro - não aparece nem de leve nos debates sobre o que fazer para o país recuperar vitalidade.

É fácil explicar por que: não é um tema para a direita triunfante, mais preocupada com as contas públicas do que com os que mal podem pagar suas contas. E a esquerda, historicamente inquieta com o tema, preferiu render-se à fraude de que a desigualdade teria caído sob Lula.

O que caiu - se é que caiu mesmo – foi a desigualdade entre salários, mas jamais a disparidade entre a renda do capital e a do trabalho, verdadeiramente obscena.

É fácil entender: o único instrumento em que se apoiava a lenda da queda da desigualdade é a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar).


Não é instrumento idôneo: os pesquisadores perguntam a renda da família. Quem vive só de trabalho ou de outro rendimento fixo diz o que ganha. Quem, além do salário ou de rendimento fixo, recebe proventos advindos de aplicações financeiras omite essa parte da renda. Ou por mero esquecimento, portanto de boa-fé, ou por medo (do fisco, de sequestro, do que seja).

Como aumentou a renda dos mais pobres, a partir dos diferentes tipos de bolsas, a pesquisa registra diminuição da desigualdade, mas somente por uma falsa declaração dos mais ricos.

Em 2015, Marcelo Medeiros, Pedro Ferreira de Souza e Fábio Avila de Castro, todos da UnB (Universidade de Brasília) e, os dois primeiros, também do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), lançaram na equação da desigualdade dados do imposto de renda e chegaram a uma triste conclusão: não houve em absoluto queda da desigualdade nos últimos 20 anos.

Um só dado: os 5% mais ricos passaram de deter cerca de 40% da renda total do país em 2006 a abocanhar 44% em 2012. Guardadas as proporções, o 1% mais rico e o 0,1% superrico também ficaram com uma fatia ainda maior que a obscena cota que tinham em 2006.

O Ipea (instituto do governo) proibiu a difusão do estudo, como é natural: a corte odeia quem grita “o rei está nu”.

Mas o trabalho circulou entre especialistas e provocou observações, o que levou Marcelo e Pedro a uma revisão da pesquisa. Saiu há pouco o novo resultado e, sem surpresas, é igual ao anterior: não houve redução da desigualdade.

Nem poderia haver: o governo destina aos juros e encargos da dívida, em um ano, o equivalente a 15 anos do gasto com Bolsa Família.

Ou, posto de outra forma, o governo paga às (poucas) famílias mais ricas em um ano o que vai para 42 milhões de pobres em 15 anos. É transferência de renda, sim, mas de todos os contribuintes, inclusive os pobres, para os ricos e ultrarricos.

A realidade desmancha, assim, a narrativa que o governo ensaiou inutilmente, a de que a onda anti-Dilma é uma vingança dos ricos contra o governo dos pobres. Como diz sempre o próprio Lula, os ricos nunca ganharam tanto dinheiro como em seu governo. E a esquerda ficou em silêncio.

Mandato de Dilma já está cassado, mas esqueceram de lhe avisar

A ainda presidente Dilma Rousseff não tem a menor chance de reverter no Senado a ampla desvantagem e recuperar seu mandato. Exibido diariamente, o Placar do Impeachment do Estadão, que acertou em cheio o resultado na Câmara, vem mostrando a tendência de que a oposição consiga os 54 votos necessários para cassar definitivamente o mandato da atual governante. Já falam em 51 votos a favor, mas vamos ficar com o Placar do estadão, que registra 48 senadores assumidamente pelo , sete a mais que os 41 necessários para a abertura do processo. Isso significa que Dilma realmente será “carta fora do baralho”, conforme ela mesma já declarou em entrevista coletiva.

Ainda esperançoso, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) diz esperar que agora se abra “um debate jurídico sobre o assunto, diferente do que aconteceu na Câmara”. Mas ele está errado. Trata-se de um processo essencialmente político, não há condições de mudar o julgamento em instâncias superiores, como ocorre em ações judiciais, nas quais se pode perder em três instâncias e depois reverter a situação no último tribunal, o Supremo.

Dilma Rousseff não tem experiência parlamentar, desconhece totalmente como funciona o Congresso. O pior é que os assessores e aliados têm fortalecido as falsas esperanças dela, prometendo que ainda há possibilidades de conquistar mais sete votos e na reta de chegada contar com 27 senadores contra o impeachment. Na verdade, isso não existe, é apenas uma ilusão à toa, como diria Johnny Alf.

Se Dilma tem de arranjar sete votos, a oposição precisa de apenas para completar os 54 de que necessita, em busca da cassação da presidente. Acontece que, entre os 15 que ainda não revelaram os votos, há sete senadores do PMDB, partido que vai assumir o poder, e mais dois integrantes de legendas que fecharam questão a favor do impeachment e já se preparam para integrar o governo Temer – o PP e o PTB.

Além disso, há mais um voto considerado certo contra Dilma – o de Fernando Collor (PTC-AL), que se prepara para reviver as emoções de um impeachment presidencial.

Ou seja, o placar já pode ser fechado em 58 a 23, no mínimo, e ficarão faltando quatro votos para Dilma se salvar. Esta é a realidade, não adianta sonhar, embora isso ainda não seja proibido.

Chega a ser uma perversidade submeter a presidente Dilma Rousseff a esta tensão permanente, em meio às promessas vãs dos assessores e aliados. É como se ela estivesse submetida à chamada tortura chinesa, que vai aumentando o sofrimento da vítima dia após dia.

Atualmente, Dilma não perde oportunidade de dizer que foi torturada no regime militar, mas nunca revelou quem o teria feito. Muitos militantes foram torturados até a morte, como Rubens Paiva e Stuart Angel Jones, irmão de nossa querida amiga Hildegard Angel. Outras vítimas fizeram questão de denunciar seus algozes. Uma dela foi a atriz Bete Mendes, deputada federal expulsa do PT em 1985, por ter votado em Tancredo Neves contra Paulo Maluf. Ela reconheceu o coronel Brilhante Ustra e o transformou na figura mais execrada das Forças Armadas.

No entanto, Dilma jamais denunciara seus torturadores.

Na verdade, ninguém sabe ao certo se Dilma Rousseff, presa aos 22 anos, foi torturada ou não, porque nunca dissera nada a respeito. Não consta depoimento dela nos arquivos do grupo Tortura Nunca Mais nem no livro “Mulheres que foram à luta armada”, de Luiz Maklouf, de 1998.

Surpreendentemente, em 25 de outubro de 2001, quando ainda era secretária de Minas e Energia no Rio Grande do Sul, filiada ao PDT, em depoimento à Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura (Ceivt) de Minas Gerais, ela afirmou que havia sido supliciada em Juiz de Fora, e até conseguiu ser indenizada.

Contraditoriamente, dois anos depois, em 2003, Dilma deu entrevista a Luiz Maklouf e não tocou no assunto das atrocidades supostamente sofridas em Minas Gerais, porque se referiu somente a torturas que teria sofrido nas prisões do Rio Janeiro e de São Paulo. Certamente, estava de olho em outras indenizações estaduais.

Desta vez, Dilma Vana Rousseff enfrenta uma tortura verdadeira, causada pela derrocada de sua trajetória política e pessoal. O suplício acontece em público, noticiado por toda a mídia, dia após dia, e ainda deve demorar sete meses, até o julgamento final pelo Senado.

Para seu próprio bem, Dilma Rousseff deveria se livrar da influência de seus conselheiros políticos e renunciar logo ao mandato, para pôr fim a esse martírio absolutamente desnecessário. Mas parece que pretende ser torturada até o juízo final. Espera-se que não venha a exigir nova indenização.

Entre a política e a justiça

Costuma-se lembrar que, na visão aristotélica, o Judiciário cum­pre uma função política. Trata-se da tentativa de enxergar no Poder Judiciário a cota de política que Aristóteles atribuía ao homem, cujo dever é participar da vida de uma cidade, sob pena de se transformar em ser vil. Nessa tarefa, emprega os dons naturais do entendimento e do instinto para exercer funções de senhor e magistrado. Se o ensina­mento do filósofo grego fosse bem interpretado, não haveria restrição para ver na missão dos juízes uma faceta política. A questão, porém, é outra.

É comum confundir o ente político, que se põe a serviço da co­letividade, com o ator que usa a política para operar interesses escusos. Naquele habita a grandeza, neste reside a vilania. Sob essa diferença, emerge a questão: nesses tempos de Lava Jato ameaçando sujar a imagem de políticos, membros do Poder Judiciário estariam lendo de maneira enviesada o conceito aristotélico? Será que confundem Política com P maiúsculo com politicagem de p mi­núsculo? Analisemos a questão da politização sob essas duas bandas.


Vez ou outra, o Judiciário se depara com a crítica de que alguns de seus quadros entram na esfera legislativa ou inovam em matéria jurisprudencial. Os magistrados respondem: isso ocorre porque o Legislativo não cumpre de maneira plena suas funções. Como o poder não admite vácuo, a Corte o tem preenchido com sua interpretação, que acaba se transformando em lei. O STF pode entrar no terreno legislativo ou só informar às Casas congressuais sobre suas omissões? Ora, o Supremo só age quando acionado. Sua missão precí­pua é interpretar a Constituição ante a falta de clareza ou inexistência de leis que detalhem normas sobre os mais diversos assuntos de inte­resse social.

Os magistrados, de um comportamento mais cauteloso nos idos de 90, quando apenas comunicavam ao Par­lamento a falta de leis, passaram, nesses prolongados tempos de crise, a produzir regras, deixando o des­conforto de lado. Sob o empuxo de demandas da sociedade civil, capitaneadas por organizações de intermediação, o STF reposiciona-se no cenário institucional, tomando decisões de impacto – como a definição do rito do impeachment – sem se incomodar com críticas sobre invasão do território legislativo.

Quem já viu, por exemplo, vice-presidente da República ser objeto de impeachment? O ministro Marco Aurélio acha perfeitamente ser isso possível, sob a voz irônica de Gilmar Mendes, que assim devolve a questão: “o ministro Marco Aurélio está sempre nos ensinando”. O que se sabia, até então, é que vice só pode ser alvo de impeachment quando assume, em definitivo, o lugar de titular. Ocorreu em Roraima. Ottomar de Souza Pinto (governador) e Anchieta Júnior (vice) foram objeto de recurso de cassação no TSE. Ottomar faleceu, Anchieta assumiu. O vice acabou sendo inocentado e assumiu.

A fecunda verbalização que se ouve no STF não consegue dirimir a questão sobre seus limites. No final de cada peroração, sobra a impressão de que alguns ministros descem do altar onde se cul­tua o Judiciário para a liça da banalização política. Parece haver uma separação da Corte em três grupos: os ministros políticos favoráveis ao governo; os contrários ao governo e os ministros técnicos, garantistas. Comenta-se, ainda, que nas Cortes – nesse caso, trata-se de descer a outras instâncias – também existe um voto comprometido com grupos, setores e mandatários. Vejam-se as demandas trabalhistas. Diz-se que empresas governamentais sempre levam a melhor nos tribunais do Trabalho.

Se a empresa é privada, o vitorioso quase nunca é o patrão, comprovando que as decisões não contemplam os fatos. Não se enxergue, aqui, defesa de categoria social. O que se pretende demonstrar é que o maior patrimônio de um juiz é a independência. Essa é a ferramenta para ele ultrapassar a barreira da democracia formal e galgar as fronteiras da democracia substan­tiva, seara onde deve julgar, conforme a consciência, indo até contra a vontade de maiorias, defendendo direitos fundamentais, não se curvando às pressões midiáticas nem à correntes de opinião.

Infeliz­mente, estruturas do Judiciário e parcelas do Ministério Pú­blico, cujo escopo é o de defesa da sociedade, cultuam o espelho de Narciso, inebriando-se ante os holofotes da mídia. Como diria Rui Barbosa, “a ninguém importa mais que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações e não conhecer covardia”. Não se pretende, aqui, defender a tese de que juiz precisa ves­tir o figurino da neutralidade. Juízes insípidos, inodoros e insossos tendem a ser os piores. O que a sociedade quer é voltar a ver no Judiciário as virtudes que se enxergam na ação do juiz Sérgio Moro: independência, saber jurídico, honestidade, coragem e capacidade de enxergar o ideal coletivo.

Por que estes valores têm sido tão fragmentados? Primeiro, por causa da ingerência do Executivo sobre o Judiciário. Ingerência que se liga ao patrocínio de nomeações. A mão que nomeou um magistrado parece permanecer suspensa sobre a cabeça do escolhido, gerando retribuição. Mesmo sabendo que houve evolução nessa dependência, suspeita-se que haja ainda uma troca de gentilezas. O jurista Paulo Bonavides escreveu: “A Suprema Corte correrá breve o risco de se transformar em cartório do Poder Executivo”. Noutras instâncias, as promoções na carreira costumam passar por cima de critérios de qualidade. Uma liturgia de herança de poder se instala, com muita docilidade junto às cúpulas dos tribunais. Milhares de juízes padecem de condições técni­cas para exercer com dignidade as funções. O nivelamento por baixo ocorre na esteira da massificação de cursos de Direito e juvenili­zação dos quadros. Os concursos já não se regram por padrões de excelência.

Sob o estigma da politização e do despreparo de milhares de qua­dros, caminha o Poder Judiciário. Têmis, a deusa, tem uma venda nos olhos para representar a Justiça que, cega, concede a cada um o que é seu, sem olhar para o litigante. No Brasil, é generalizada a impressão de que, vez ou outra, a deusa afasta a venda para dar uma espiada na clientela.

Difícil de entender

É mais um capítulo da nossa novela “O impeachment”, que os americanos devem estar tendo dificuldade de entender, até porque o desempenho dos protagonistas, ou melhor, antagonistas, tem sido sofrível.

Pois se trata de uma presidente que ainda é, mas está deixando de ser, e um vice que a está substituindo por dias e provavelmente estará pelos próximos dois anos e é acusado por ela de lhe ter dado um golpe para derrubá-la.

De um lado, Michel Temer montando sua equipe e abandonando sua postura de aguardar “muito silenciosa e respeitosamente” o julgamento do Senado. De outro, Dilma Rousseff agindo como se estivesse começando o mandato, e não encerrando.

DILMA FINAL SPOILER RENEN CUNHA CONTANDO O FINAL DO IMPEACHMENT

Ela, que se considerava “carta fora do baralho”, se perdesse, tem oferecido um espetáculo de novidades que a coloca diariamente nas manchetes dos jornais. Depois de apelar aqui dentro para o papel de vítima de injustiça, rejeitado inclusive pelo STF, resolveu aliviá-lo lá fora em um cauteloso discurso na ONU para gringo ver — tudo como parte da estratégia de se defender atacando, com aparente disposição de alguém que vai reverter o jogo.

Quem a conhece bem acha que essa tentativa de reação, porém, chegou tarde demais. Há um ano o jornalista Thomas Traumann, que foi porta-voz do seu governo, alertou em um relatório que o Brasil caminhava para o “caos político”. Não foi ouvido. Por isso ele acha que ela vai lutar até o fim, já que “não é o tipo de pessoa que desiste” e, pode-se acrescentar, que reconheça seus erros — a não ser, talvez, o de ter escolhido mal o mesmo vice duas vezes.

Sendo assim, aqueles que alimentavam a esperança de uma renúncia presidencial devem esquecer. De fato, é difícil imaginar que uma pessoa como Dilma Rousseff, que não admitiu ter errado nem sob tortura, faça agora uma autocrítica em relação a sua administração.

A então guerrilheira Vanda impressionou os torturadores com a sua resistência, e chegou a ser apelidada por um deles de “Joana D’Arc”. O problema é que o que era virtude naqueles tempos de trevas, a intransigência, transformou-se hoje em pecado para quem faz política.

Como nessa novela de suspense não se adiantam os novos episódios, fica-se sem saber o que vai acontecer daqui pra frente no país. A única certeza é que a culpa pela péssima escolha dos personagens principais foi nossa, dos espectadores.

Olhando além do horizonte

Mesmo sem tornar público, o PT já se conformou em passar para a oposição, disposto a chefiá-la e a não dar trégua ao novo governo. Contam como certa a degola da presidente Dilma, no Senado. Farão pontaria permanente na nova situação, dispostos a denunciá-la como artífice do retrocesso econômico e político. Os companheiros vão preparar o retorno para 2018, com a óbvia candidatura do Lula, certos de que Michel Temer pretende demolir conquistas sociais favoráveis às massas. A equação continuará a mesma, apenas invertida.

Já anunciado, o “grande salto para o futuro”, engendrado pelo PMDB, prevê iniciativas capazes de ampliar os espaços do capital, ao tempo em que reduzirá as garantias do trabalho. A negociação direta entre patrões e empregados substituirá parte das leis trabalhistas.

Fica difícil imaginar como reagirá o Congresso, apesar de a maioria dos votos pelo impeachment de Dilma deixar deputados e senadores de saia justa quando se tratar da manutenção dos postulados de defesa dos assalariados. Imagina-se que logo os partidos ditos de esquerda se unirão ao PT, reforçados pelos movimentos sindicais e populares.

O primeiro teste virá com as eleições municipais de outubro, em especial nas grandes capitais, situação capaz de levar o novo governo de Temer à defensiva. De seu lado já tentam compensar essa óbvia virada à direita com exortações pela preservação dos avanços à esquerda praticados nos dois governo do Lula. Só que a onda gerada pelo enfraquecimento e a queda de Dilma produzirá efeitos ainda por algum tempo. Posto em frangalhos, o PT necessitará de muito oxigênio para a recuperação.

Em suma, haverá que tentar olhar além do horizonte.

Chocou-se com a cara da Câmara? Culpa sua!

Há uma semana, na votação do impeachment, o pedaço do Brasil que ainda tem noção do ridículo se chocou com o que assistiu. Então a Câmara é isso?!? Foi difícil ouvir as manifestações de voto sem sentir uma espécie de vergonha interior. O desconforto aumentava cada vez que um deputado esbravejava em nome deste ou daquele familiar, de uma cidade ou de um Estado, de uma moral rota ou de uma ética insuspeitada, do torturador morto ou do prefeito que seria preso horas depois… No fundo da consciência da plateia uma voz bradava: “Hipócritas!”.


Foi um espetáculo inusual. Só de raro em raro a Casa está tão cheia. Normalmente, as votações são simbólicas, aquelas em que os deputados apenas levantam a mão. Quando é preciso votar nominalmente, usa-se o painel eletrônico. Na sessão do impeachment, todos tiveram seus segundos de microfone. E a coisa degenerou. Tomado pelo número de vezes que foi mencionado, Deus deixou de ser full time. Se o Todo-Poderoso desse mesmo expediente integral certamente teria feito ecoar no plenário, com voz de trovão, o epíteto do Evangelho: “Raça de víboras.”

Na visão da megabancada cristã, a Câmara virou um campo escolhido pelo Senhor para manifestar seus desígnios. Os deputados seriam apenas peças movidas por Ele. Mas seria sobrecarregar Deus além da conta forçá-lo a decidir entre a infantaria de Eduardo Cunha e a tropa de Dilma Rousseff? Mais fácil supor que, depois de criar o universo, Ele terceirizou a política ao Diabo.

Muito já se disse e escreveu sobre assunto nos útimos sete dias. Mas você deveria gastar um pedaço deste domingo para fazer uma introspecção. Pode ser após o despertar, barriga colada à pia do banheiro, enquanto espalha o dentifrício pelas cerdas da escova. Levando a experiência a sério, depois de bochechar e lavar o rosto, você enxergará no espelho, no instante em que erguer os olhos para pentear os cabelos, o reflexo de um culpado.

Indo mais fundo no processo de autoexame, você verá materializar-se diante de seus olhos o óbvio: parlamentares não surgem por geração espontânea. Eles nascem do voto. E talvez você levante da mesa do café da manhã convencido de que a crise no sistema representativo exige uma atitude. Um gesto individual e consciente. A crise não admite mais que o eleitor se mantenha exilado no conforto de sua omissão política. Intima-o a retornar à história, para moralizá-la.

O primeiro passo é o abandono da cômoda retórica de que os políticos “são todos iguais''. Não são. A igualdade absoluta é uma impossibilidade genética. Bem verdade que o excesso de roubalheira faz todos os gatunos parecerem pardos. Mas a magia de momentos como esse é a possibilidade de redescobrir uma verdade que dá sentido à democracia: para os eleitos inconscientes, o eleitor impaciente é um santo remédio. Lembre-se: 2018 em aí. Você tem duas opções: ou vota direito ou continua se comportando como um deputado.