sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

CPMF

Reverência brasileira

Uma conversa informal com a jovem universitária de São Paulo Mariana Esteves confirmou a tese, defendida por não poucos brasileiros, que ainda existe nessa sociedade uma excessiva reverência ao poder, e que a estudante atribui ao fato de que o Brasil é um país que “foi construído pelas vítimas”.

A tensão política, no amanhecer de 2016, se aprofunda na cúpula e esfria na rua, de acordo com algumas pesquisas de opinião. Os indignados com o Governo começam a encolher, enquanto seus defensores anunciam sua saída às ruas.

Os programas de humor e de sátira política praticamente desapareceram da televisão, embora tenham sido parcialmente recuperados nas redes sociais. A sátira é, no entanto, o sal que impede que a democracia se corrompa.

A gravidade da crise que o Brasil atravessa é manifesta e está sendo apontada pela imprensa internacional; os escândalos de corrupção aumentam em número e gravidade a cada dia, enquanto os indignados diminuem.

Por quê? Cansaço ou desencanto com a imobilidade dos responsáveis por tirar o país do atoleiro? Paralisia da oposição que parece dormir tranquila, alheia ao terremoto em andamento?

Talvez, mas também pelo fato de ainda existir incrustada na sociedade uma exagerada reverência com os poderes políticos, econômicos e até religiosos.

Isso não é dito pelo jornalista. Aparece na consciência de brasileiros de várias classes sociais que confirmam essa dificuldade de criticar a autoridade com a qual preferem compadrar.

Apesar da falta de credibilidade oferecida hoje pelos políticos e seus partidos, o Brasil é um país com uma democracia mais acostumada a queimar incenso aos pés do poder do que exigir satisfações deles.

É tal a dificuldade de confrontar e vigiar as autoridades que até os jornais que exercem sua função cívica e social de ser a consciência crítica do poder são considerados oposição. Os jornalistas existem, no entanto, para serem porta-vozes da sociedade, não do poder. Para trazer à luz o que os poderosos tentam esconder.

Em qualquer democracia desenvolvida, os estudantes universitários costumam ser, por exemplo, uma das vozes mais críticas ao Governo.

Em Brasília se viu, no entanto, como algo normal que a jovem presidenta da União Nacional dos Estudantes, Carmen Vitral, beijasse as mãos da presidenta Dilma Rousseff em sinal de homenagem.

Que os jovens, pouco importando suas tendências políticas, saiam às ruas para aplaudir ou defender o Governo costuma geralmente ocorrer apenas em ditaduras.

Se o jovem é conformista com 20 anos, como será aos 60?

Estamos constatando isso com muitos velhos militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura na juventude e hoje balançam no conservadorismo e na corrupção.

Se os jovens pecam por algo, deveria ser pelo ardor libertário e irreverente com os poderes, dos quais nunca recebem o que lhes faria justiça.

A universitária paulista que me confirmou a existência desse pecado de reverência exagerada ao poder que, disse, “os brasileiros tem no sangue”, é de uma família humilde que teve de trabalhar duro para conseguir ir para frente. Segundo ela, o Brasil é um país “que foi construído pelas vítimas” e não por pessoas que decidiram vir livremente para construí-lo juntas, como aconteceu em outras partes do mundo.

Os colonizadores europeus, em sua grande maioria, foram enviados à força ou chegavam à procura de pura aventura, vítimas e párias que eram em seus países de origem.

Depois vieram os milhões de africanos que serviram como escravos de mão de obra bruta e servil. Acabaram abandonados à própria sorte.

Todas essas vítimas criaram, segundo ela, uma mentalidade que implica reverenciar o poderoso, para ser menos castigado e humilhado, ou para obter alguma vantagem para as suas vidas difíceis e sem direitos.

“Hoje eu estou consciente de que precisamos nos libertar dessa necessidade de agradar o poder em vez de ser sua consciência crítica, mas não é fácil quando seus antepassados cresceram sob essa cultura do medo dos poderosos ou do ‘jeitinho’ [flexibilidade sem acatar muitas normas ou leis] para arrancar algumas vantagens, lícitas ou não”, explicou a jovem Mariana.

Em sua coluna no jornal O Globo, Marcio Tavares D’Amaral escreveu há poucos dias: “Em nosso passado sempre houve quem nos dissesse que horas são”.

Permito-me tomar sua frase feliz para aplicá-la, embora em outro sentido, para indicar por que no Brasil ainda existe tanta reverência com os poderosos. Talvez porque as pessoas se acostumaram desde o início a que fossem eles que decidissem que hora marcava o relógio.

Terá chegado o momento em que o Brasil, em busca da modernidade, decida indicar a hora em que deseja viver uma democracia adulta, sem medo de expressar suas críticas e descontentamentos?

Não se chega a isso se deixamos que os interessados em manter seus privilégios e perpetuidade política continuem dizendo que horas marca o relógio.

Todo poder paternalista está mais perto de uma ditadura, embora velada, que de uma verdadeira democracia.

Se deixarmos o poder sem vigilância, ele continuará a nos impor a hora do seu relógio, mesmo à custa de sequestrar os nossos.

Pelo menos não nos coloquemos tão facilmente aos seus pés.

Seria o suicídio da democracia.

Irrisórios somos nós

Chego a essa conclusão ao acabar de ler os jornais da semana.

No meio de todas as noticias sobre reformas no triplex do Guarujá e no sítio em Atibaia (tenho para mim que não foram as únicas, mas isso é pura intuição...), vem o Gilberto Carvalho e declara, com a cara mais limpa, que “reforma em sítio é a coisa mais natural do mundo”.

Ô seu Gilberto, reforma em qualquer imóvel que esteja necessitando de consertos é muito natural. Não precisava o senhor usar toda a sua inteligência para parir essa frase!

O que talvez não seja natural é a reforma vir como um presente. Isso talvez seja inusitado.

Digo talvez porque aqui no Brasil nada parece inusitado, temos mais coisas estranhas rondando na área do que supunha até a vã filosofia de Shakespeare.


Duvida? Então leia ou releia.

O José Dirceu, em seu depoimento ao juiz Sergio Moro, disse que “Sem falsa modéstia, receber R$ 120 mil pelas consultorias que dava era uma quantia irrisória”.

Vocês lembram quando ele disse que um telefonema do José Dirceu era um telefonema do José Dirceu? Pois disse, disse, sim, e então penso com meus botões: quanto ele cobraria por cada telefonema?

Dirceu disse que não é rico. O irrisório que recebia, pelo visto, era todo usado para manter seu padrão de vida, não dava para juntar uns míseros reais. Não sei, e ele não disse, em que gastava o dinheiro, já que sua casa em Vinhedo também foi reformada, o que é muito natural, por um amigo empreiteiro.

Ele viajava muito, para atender seus clientes, os tais que se valiam de suas consultorias. Mas nem nessas viagens gastava parte do irrisório que recebia, já que Julio Camargo, o lobista, lhe cedia os jatinhos usados nas viagens.

Li por aí que José Serra se comoveu ao ver a capa da VEJA que mostrava Dirceu no Pavilhão 6 do Complexo Médico-Penal de Pinhas, perto de Curitiba. Não posso dizer o mesmo. Não me comovi. Mas posso dizer – e digo – que José Dirceu dá um nó na inteligência de qualquer outro petista. Ele não veio com lorotas ridículas. Assumiu que recebia ajuda do amigo Julio Camargo e pronto.

Tem algum mal um amigo ajudar o outro? Não creio. Só depende de onde o amigo tirou o dinheiro que tanto bem fez ao Dirceu. O problema agora é do Camargo que vai ter que explicar de onde saíram tantos irrisórios...

Outro amigo fantástico é um que se diz ator, o tal de Zé de Abreu. Sabendo que os irrisórios não davam para o Dirceu sobreviver com conforto, e informado de uma multa que a Justiça lhe cobrava, o que fez o amigão?

Organizou uma vaquinha e juntou R$1 milhão para ajudar o Dirceu! Não era o caso de os petistas que contribuíram com essa vaquinha reclamarem o seu de volta, já que o Dirceu confirmou ao juiz Moro o quanto amealhou por mês com sua empresa de consultoria?

Que nada! Vai ver estão muito orgulhosos e se gabam: “eu contribuí com a vaquinha do Zé de Abreu para ajudar o querido Zé Dirceu”.

É mesmo um país diferente.

Outro exemplo:

O ex-ministro Delfim Netto, que tantas aprontou, é um dos signatários do AI5, foi ministro da Fazenda no governo Costa e Silva e embaixador de Ernesto Geisel na França. Prometia fazer crescer o bolo para depois dividi-lo.

O bolo até que cresceu durante sua passagem pelo ministério da Fazenda. Só não foi dividido. Se foi, eu não recebi minha fatia...

Pois esse senhor, cujo nome estará para sempre anexado ao famigerado AI5, numa entrevista ao Estadão, em 19 de setembro de 2015, disse coisas do arco da velha a respeito da presidente. Por exemplo: "A Dilma é simplesmente
uma trapalhona".

“As pessoas sabem que a presidente é uma mulher com espírito muito forte, com vontades muito duras, e ela nunca explicou por que ela deu aquela conversão na estrada de Damasco. Ela deveria ter ido à televisão, já no primeiro momento, e dizer: “Errei. Achei que o modelo que nós tínhamos ia dar certo e não deu”. Mas, não. Ela mudou sem avisar e sem explicar nada para ninguém. Como confiar?”.

Não tem como confiar.

No entanto, foi a conselho do Delfim que Dilma foi abrir o Ano Legislativo.

Por acaso ela disse que errou? Por acaso desculpou-se e prometeu que ia se preocupar mais conosco – o povo – do que com o poder que detém?

Não, o que ela fez foi pedir que o Parlamento aprove a volta da CPMF. Diria mesmo que foi implorar.

E sobre a CPMF, o que disse o ex-ministro Delfim que a aconselhou a ir ao Parlamento?

“A CPMF é um imposto cumulativo, regressivo, inflacionário, tem efeito negativo sobre o crescimento e quem paga é o pobre”.

E quem se importa com isso? Pobre é tostão. Cai no chão e ninguém se abaixa para pegar
.

A senhora de um trilhão

Despertam curiosidade popular as listas de bilionários. Gente que se deu bem, pelos muitos milhões que amealhou no caminho da vida, quer por talento excepcional no esporte, nas artes, nos negócios, nas ciências (aqui, raramente), ou por pura esperteza e, no limite, por banditismo em nível corporativo, como são exemplos “El Chapo” e seu mestre, Pablo Escobar. Santos ou pecadores, são indivíduos fazedores, com grande poder de realização e liderança. O ponto comum entre todos é a enorme capacidade de criar e acumular ativos. São “realizadores”, para o bem ou para o mal.

Pouco se ouve falar, contudo, de outra lista, semelhante à primeira, só que com sinal trocado. Em vez de serem acumuladores de ativos, há também os acumuladores de passivos – referência aos indivíduos produtores de guerras, de moléstias ou, simplesmente, detonadores de riqueza, aqueles capazes de agir só para erodir, derrubar, solapar e deletar a riqueza e a capacidade de crescer de uma empresa, comunidade ou país. Alguns desses seres especiais têm custado caro à humanidade inteira. Outros, ao seu próprio país.

Sponholz - FMI
Em recente artigo, Monica de Bolle levantou a pergunta incômoda, mas necessária: quanto nos custou Dilma? E deu números ao debate: “… o Brasil perdeu R$ 300 bilhões de renda e de riqueza nos últimos quatro anos…”. Economistas podem fazer essa conta de “prejuízo bruto” de várias maneiras, todas válidas. Monica optou por olhar pelo lado da poupança, parcialmente destruída no período Dilma Rousseff. A poupança de famílias e empresas teria recuado – como ocorreu de fato – do patamar de 20% para 15% de um produto interno bruto (PIB) anual de cerca de R$ 6 trilhões. Perdemos, assim, cinco pontos porcentuais do PIB. Daí a conta de uma dilapidação de riqueza da ordem de 5% de R$ 6 trilhões, igual a R$ 300 bilhões. Será mesmo?

Estou disposto a colocar Dilma no Livro Guinness dos Recordes. Acho que Monica fez cálculo conservador da contribuição da nossa presidente para a destruição da riqueza nacional. Dilma seria a senhora de um trilhão de reais! Negativos, é verdade, mas ninguém pode ameaçar-lhe o troféu.

E por que um trilhão?

Pensem no quanto o Brasil teria crescido, a mais, se Dilma não tivesse feito nada (grande contribuição já seria!). A poupança referida por Monica ficaria nos 20% desde 2011, acarretando correspondentes investimentos, palavra-chave sem a qual não criamos riqueza nova alguma. Com 20% do PIB aplicado em investimentos (quem se lembra do PAC?) o país teria exibido um crescimento mais próximo do seu potencial, com ou sem a tal “crise mundial”. O “potencial” do PIB é conceito usado pelos economistas para calcular quanto um país é capaz de fazer, ano a ano. No Brasil, tal potencial já foi de 7% ao ano (que saudade!); caiu para 5% no fim dos anos 1970, depois para 3% nas décadas perdidas de 1980 e 1990; ameaçou pequena melhora para 3,5% com o milagreiro Lula e, finalmente, recuou para 2,5% na era Dilma. Se ela nada houvesse feito para atrapalhar, ainda assim o país do juro alto e da carga tributária de manicômio poderia ter crescido uns 2,5% ao ano.

Dilma conseguiu, no entanto, perpetrar um estrago sobre o qual falarão para sempre nossos livros de História. Estimando as perdas de PIB, ano a ano, desde que Dilma se aboletou na cadeira presidencial, e supondo que a ela seja concedido completar a façanha, teremos esbanjado uns 15% do PIB ao longo do octênio dilmista, que, em valores de hoje, correspondem à estonteante marca de um trilhão de reais!

Mas tem gente querendo impedir Dilma de atingir seu recorde. Quanta maldade!

Outra maneira de garantir o recorde é pelo método da acumulação de passivos. É aquela roubada coletiva que ocorre quando metem a mão grande no nosso bolso enquanto cantamos marchinhas carnavalescas sem ira nem birra. É preciso, às vezes, um rio inteiro de lama – no sentido literal – para despertar o raquítico instinto de interesse coletivo do nosso povo. Acumulação de prejuízos, entretanto, não figura no Direito brasileiro como responsabilidade direta de um mau gestor público. A imputação se atém a atos administrativos, como apontados no “Relatório Nardes” sobre as pedaladas de R$ 40 bilhões, que Dilma se apressou a “pagar”.

Mas pagar o quê, se a perda de riqueza permaneceu, como bem mostrou Monica? A omissão do dever de bem administrar gerou acumulação de passivos também pelo lado financeiro, pelos juros anormais que o Brasil vem pagando, e que pagará, pelo despautério da gestão dilmista – outro modo de se chegar ao mesmo trilhão de reais.

É o governo que nos avisou, na semana passada, quanto custou o encargo de rolar a dívida pública de R$ 3,9 trilhões: a bagatela de R$ 502 bilhões, apenas em 2015, entre juros e prejuízos de câmbio, os famigerados swaps inventados para segurar o câmbio antes do pleito de 2014. Este ano, mesmo com o Banco Central mantendo a taxa Selic onde está, a absurda conta do juro deve se repetir. Então, pelo lado do custo financeiro, Dilma também é a senhora de um trilhão de reais.

Os encargos dantescos elevaram a dívida pública de 51% do PIB, em 2011, para 66% ao final do ano passado. Bingo! São 15 pontos porcentuais do PIB acrescidos ao nosso passivo financeiro, portanto, mais um trilhão de reais acumulado à dívida dos brasileiros, pedágio ruinoso que todos pagamos para o mercado continuar “confiando” nas autoridades econômicas.

Um trilhão, essa é a conta. Juros a mais, PIB a menos, empregos eliminados, capital evaporado, confiança desfeita, futuro destroçado. Para tal crime, espantosamente, não parece haver remédio legal em nosso Direito positivo. Por isso a década “esbanjada” será concluída com êxito! Ninguém, afinal, conseguirá roubar essa Olimpíada de Dilma.

Oderbrecht e OAS só trabalham de graça para quem está no poder

Numa entrevista a Ranier Bragon, Folha de São Paulo de quinta-feira, o ex-ministro Gilberto Carvalho, que chefiou o gabinete do Palácio do Planalto ao longo dos mandatos de Lula, fez espantosa afirmação de que é a coisa mais natural do mundo empresas como a Odebrecht e OAS fazerem gratuitamente obras em propriedades particulares. Cabe, agora, o esclarecimento complementar por parte das duas empresas, uma vez que, por coincidência, tais obras particulares destinavam-se só a pessoas com influência no jogo do poder. Eram, portanto, restritas.

Casos do sítio de Atibaia e do apartamento triplex do Guarujá. Exemplos singulares de atos de desprendimento empresarial. Gilberto Carvalho, que foi exonerado pela presidente Dilma Rousseff, pouco antes da eleição de 2014, quando dirigiu restrições à sua atuação, colocou mais um argumento no esquema, que serve de ponte entre os contratos de obras públicas e a influência, que pode ser decisiva, do Executivo. Disse que tanto a Odebrecht quanto a OAS, entre as demais empreiteiras, procederam da mesma forma em relação ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Acrescentou a Ranier Bregon que pagaram – e pagam – despesas dos Institutos que levam os nomes dos dois ex-presidentes da República.

Só um ingênuo pode desconhecer os esforços que envolvem a convergência de interesses públicos e privados. Mas considerar normal o fato da execução gratuita de obras é demais. É ultrapassar os limites da percepção humana. Pois quem poderá acreditar na normalidade de tais iniciativas? Falando francamente, ninguém.

Surpreende principalmente Gilberto Carvalho afirmar, como está na matéria da FSP, que Lula não é dono formal da propriedade de Atibaia. Carvalho, com a frase, criou indiretamente a figura jurídica do dono informal de bens. Essa não.

Estabelecer comparações para cotejar o que teriam praticado ex-presidentes da República não diminui em nada o aspecto ético da questão. Gilberto Carvalho buscou esse caminho colocando diante de seu espelho as imagens de Luis Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. E daí? Significa, isso sim, culpar ambos. Pois não é pelo fato de um ter errado que o outro pode errar. Tal argumento é próprio de discussões entre pessoas de reduzido nível intelectual.

Por isso mesmo, espanta que o argumento também tenha sido apresentado por Élio Gáspari, jornalista de nível elevado, em sua coluna no Globo e na FSP de quarta-feira, cotejando o triplex de Lula, no Guarujá, com o do ex-presidente Juscelino Kubitschek na Avenida Vieira Souto. Mesmo que a origem de ambos tenha sido nebulosa, o primeiro não apaga o segundo erro.

Elio Gáspari, aliás, esqueceu ou não desejou se referir ao triplex de Carlos Lacerda, Praia do Flamengo. Omitiu também o sítio do general João Figueiredo perto de Petrópolis. A fazenda de João Goulart, fronteira Brasil e Uruguai foi recebida por herança. Não estou afirmando com isso que, na sua curta administração, não tenham ocorrido casos de jogos de influência.

Ao contrário de Gilberto Carvalho e Elio Gáspari, não me proponho a apagar um episódio por outro. Quanto a Carlos Lacerda, tanto eu quanto Gáspari podemos lembrar o episódio do perdão da dívida dos exportadores de café pelo porto do Rio.

Além do perdão do débito, ainda reduziu de 4 para 1 % a incidência do ICMS, objeto de julgamento no STF. Foi em 1961.

Dilma aproveita-se da epidemia para voltar ao blablablá

No final do ano, como é de praxe, o presidente da república normalmente se dirige à nação para fazer um balanço do ano que se encerra. Em 2015, com medo da reação dos brasileiros que tem reagido com panelaço, a Dilma não se apresentou em cadeia de TV.

Com uma aprovação de apenas 5%, o pior da história do país, a presidente preferiu prestar contas pela rede social. Nesta quarta-feira, no entanto, ela usou a televisão para falar do mosquito aedes aegypti e do zika vírus que promete bravamente exterminá-los para frear a epidemia que se alastra pelo país.

O pronunciamento da Dilma é oportunista e demagogo. Ela tenta fazer o papel de paladina da nação aproveitando-se de uma situação de calamidade pública que o seu governo, por incompetência, não consegue evitar. O mosquito da dengue e o zika vírus se espalham pelo país sob os olhares indiferentes do seu governo. É bem verdade que a população também tem sua parcela de culpa quando relaxa no combate a proliferação. Mas o fato é que até agora o governo mostrou-se incapaz de uma política séria de combate ao mosquito.

O Ministério da Saúde, a quem estaria afeto o problema, foi sempre usado como um órgão de barganha pelos partidos de olho nos recursos que dispõe. O critério de escolha do ministro é feito por políticos medíocres que se alternam no comando da Pasta como aves de rapina de olho no cofre. Nos últimos anos, os escândalos se sucederam dentro do ministério. O maior deles, denominado de Operação Vampiro, tinha entre os seus personagens o então ministro, Humberto Costa, senador, um dos políticos mais influentes do PT.

O depoimento da Dilma sobre o mosquito é mais uma retórica alienígena do seu governo despreparado e ineficaz. Com exceção de alguns anúncios mal ajambrados na mídia, não se conhece uma ação concreta do governo para combater o mosquito antes que o zika vírus virasse epidemia. Para eximir-se da reponsabilidade pela tragédia, a Dilma disse não saber a origem do mosquito. Ou seja, ele não é brasileiro, portanto, estamos combatendo invasores estrangeiros. Talvez, por isso, ela tenha apelado para o Barak Obama, presidente do EUA, antigo desafeto, para enfrentar a batalha.

Ora, os brasileiros assistem todos os dias pela televisão milhares de pessoas em busca de atendimento nos hospitais. Muitos morrem sem assistência e outros nem conseguem marcar consultas. Não se sabe, por exemplo, até hoje a contribuição dos médicos cubanos à saúde do Brasil vendidos, durante a campanha eleitoral, como os salvadores da pátria.

Dilma, na televisão, quer tirar proveito da tragédia, fazer uma média com os brasileiros. Aparece como o general da guerra contra o mosquito. Quer esmagá-lo com a retórica de que “ele não nos vencerá, somos mais forte”, como enfatizou no pronunciamento. Uma bobagem para vender a imagem de uma mulher valente, guerreira, obstinada, preocupada com o bem estar da população.

A epidemia no Brasil não se restringe apenas ao mosquito da dengue. Ela também chegou aos órgãos público na forma de corrupção. O país vive um dos seus piores momentos. Perdeu a credibilidade internacional e precisa recuperar a sua economia em frangalhos, destroçada por um governo tonto e desmiolado tão nocivo ao povo brasileiro como o próprio mosquito da dengue e o zika vírus.

Não é aparecendo na televisão, depois de ser vaiada na abertura dos trabalhos do Congresso Nacional, conclamando o povo para o mutirão contra a dengue e o zika vírus, que a presidente vai se isentar da responsabilidade pelo fracasso na prevenção do combate ao aedes aegypti

A Dilma precisa descer do palanque eletrônico que lhe permite aparecer sob efeitos especiais. Os brasileiros querem menos blablabá e mais ação.

Governo transforma, mas não produz

De vez em quando, afirmo que governo não produz riqueza e não dá nada à sociedade que antes dela não tenha tirado. Leitores indignados escrevem dizendo que isso é um absurdo, pois o governo produz estradas, pontes, assistência à saúde e outros serviços públicos. Imagino que sejam leitores sem instrução formal em teoria econômica, que é a explicação de como o sistema funciona. O problema começa por não compreenderem o significado da palavra “produzir” em economia.

Imagine uma vila de pescadores com mil habitantes. Todos pescam e produzem três mil quilos de peixe diariamente. Eles se alimentam dos peixes e dormem embaixo das árvores. A riqueza criada – os três mil quilos de peixe, que antes de serem pescados eram apenas “recursos naturais” – torna-se bem de consumo somente após o “trabalho” dos pescadores (que são, ao mesmo tempo, produtores e consumidores).
Pois é só isso que o governo faz: retira parte da riqueza produzida pela sociedade e a transforma em outra coisa
Certo dia, eles resolvem construir um conjunto habitacional comunitário, para o que decidem entregar metade dos peixes (1,5 mil quilos diários) a uma construtora da vila vizinha, contratada para fazer a obra. Um pescador chato, que entende de economia, diz: “mas os senhores estão dispostos a reduzir o consumo diário de peixes em 50% para entregar a metade da produção em troca das casas?” Primeira lição: como a produção total de uma nação é limitada, quanto mais investimento (casas), menos consumo (peixes), e vice-versa. Apesar disso, eles decidem ir em frente, pois é a única forma de terem o conjunto habitacional.

Para administrar e fiscalizar toda a operação de recolher os peixes e entregá-los à construtora, os moradores elegem, entre os pescadores, um líder e nove auxiliares. O pescador-economista, chato como sempre, pede a palavra de novo. “Vocês se deram conta de que os dez pescadores eleitos deixarão de pescar, pois terão de trabalhar no ‘serviço público’ de gestão da obra? E que os outros 990 terão de alimentar os 10 eleitos?”

Terminada a obra, todos estão magros, pois tiveram de cortar seu consumo à metade e dar mais 30 quilos diários de peixe para alimentar o líder e os nove auxiliares. Terminada a obra, o líder faz um belo discurso para mostrar o quanto ele e sua equipe produziram. Na prática, o líder e os ajudantes não criaram riqueza alguma, não produziram nada. Eles tomaram metade dos peixes produzidos pela comunidade (impostos) e “transformaram” em casas. Também tomaram mais 30 quilos/dia de peixes para alimentar a si mesmos, os “servidores do povo”.

Pois é só isso que o governo faz: retira parte da riqueza produzida pela sociedade e a transforma em outra coisa. O governo sempre será uma fração do que a sociedade (pessoas e empresas) produz, nunca mais que isso. Uma empresa estatal, como a Petrobras, é classificada na entidade “empresas” e não na entidade “governo”. O governo somente pegou o dinheiro do povo e construiu a empresa, a qual passa a produzir e vender seu produto. Logo, ela vive de vendas e não de impostos.

Mas, quanto aos serviços públicos, o governo os oferece com os recursos obtidos da sociedade via impostos, que são uma fração da produção nacional (renda e produto são as duas faces da mesma moeda). Como os serviços públicos são executados por pessoas e as obras públicas são produzidas por empresas, o governo somente tem a função de transformar uma riqueza (peixes) em outra coisa (casas).

José Pio Martins

Nazismo e liberdade de expressão

Os limites da liberdade de expressão são um tema ainda candente em um país que só se libertou da censura há menos de três décadas, e um desdobramento específico deste debate diz respeito a manifestações de cunho racista. O tema voltou à tona depois que Minha luta, de Adolf Hitler, caiu em domínio público, podendo ser publicado por qualquer editora. Para uma análise clara, em primeiro lugar é preciso examinar como o ordenamento jurídico brasileiro trata de crimes relacionados ao preconceito racial.

Edição crítica lançada recentemente
na Alemanha em dois volumes
Três meses após a promulgação da Constituição Federal, passou a vigorar no país a Lei 7.716/1989, que pune as condutas decorrentes de preconceito racial ou de cor. A lei disciplinou melhor o crime de praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação ou por publicações de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor ou procedência nacional, com pena de dois a cinco anos. A mesma lei pune também quem fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos ou propaganda que usem a cruz suástica ou gamada para divulgação do nazismo.

Fica claro, portanto, que a liberdade de expressão não é absoluta. Embora essencial na construção e desenvolvimento de uma sociedade democrática, ela pode ser restringida em determinados casos, quando colide com outros direitos fundamentais garantidos constitucionalmente. Além das questões envolvendo preconceito racial ou de nacionalidade, a própria Constituição admite outras hipóteses em que a liberdade de expressão pode ser limitada, como nos casos de conflito com direitos personalíssimos (honra e intimidade), em casos de condutas tipificadas como crimes (apologia), de proteção do sentimento religioso e de proteção do menor.

Na quarta-feira, dia 3, o Juízo da 33.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro suspendeu a comercialização da tradução em português de Minha luta. Desde que caiu em domínio público no mês passado, algumas editoras passaram a preparar edições da obra, em formato físico e virtual. O Juízo estabeleceu multa de R$ 5 mil por exemplar para quem descumprir a ordem.

A decisão violaria a liberdade de expressão? A resposta depende do que, exatamente, está sendo publicado. O texto de Minha luta, em si, é preconceituoso e racista, disso não há dúvida. No livro, Hitler chega ao cúmulo de afirmar que, se no início da Primeira Guerra Mundial a Alemanha tivesse submetido 12 mil ou 15 mil judeus ao gás asfixiante, não teria ocorrido o sacrifício de milhões de alemães na linha de frente. É uma retórica tão primária quanto brutalmente agressiva. Analisada à luz do direito brasileiro, a obra viola claramente a Lei 7.716/1989, cujos fundamentos constitucionais são os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Portanto, a divulgação ou comercialização do livro é um abuso da liberdade de expressão, violando os direitos de igualdade e dignidade da pessoa. No caso em concreto, a liberdade de expressão cede espaço para outros direitos que precisam ser necessariamente protegidos.

A avaliação que acabamos de fazer se prende ao conteúdo do livro propriamente dito. Mas vozes ponderadas têm defendido que Minha luta seja publicado em uma edição crítica, com notas e outros recursos que desconstruam o conjunto de falácias apresentadas na obra. Certamente seria necessário um trabalho de grande envergadura intelectual para, passo a passo, demonstrar as centenas de incongruências e deturpações presentes no livro. Alguns editores já se propuseram a levar adiante essa tarefa, inclusive na Alemanha, e quem tiver sucesso nessa iniciativa estará, no fundo, prestando um grande serviço no combate ao racismo. Uma edição brasileira preparada nestes termos não terá como ser nem descartada, nem liberada de imediato: ela exigirá do Poder Judiciário uma análise aprofundada que, no fim, contribuirá para melhorar nosso entendimento sobre os limites da liberdade de expressão.

Editorial - Gazeta do Povo