sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

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Kafka é brasileiro

Está em curso no Brasil uma dura batalha dentro do processo da Operação Lava Jato, entre a justiça que acusa de corrupção políticos e empresários importantes e o poder que esses personagens tiveram e ainda têm.

Os incriminados e condenados pretendem inverter a situação transformando os juízes em acusados por tamanha ousadia.

Nessa batalha, a sociedade continua hoje do lado dos juízes, já que a maioria dos brasileiros coloca, pela primeira vez, o tema da corrupção no topo de suas preocupações.

E amanhã? A justiça conseguirá mostrar ao cidadão comum que não devem existir dois pesos e duas medidas na hora de julgar e condenar? Ou o poder acabará convencendo-a de que os juízes e promotores estão abusando de suas prerrogativas e que essas devem receber limites legais?

Não seria melhor, dizem advogados e políticos, que, por exemplo, esses grandes empresários, acusados de roubar milhões dos cofres públicos, voltem a ficar livres “para continuar criando empregos”? Não seria melhor que os jornalistas, ao invés de ajudar a justiça em suas investigações e divulgação da corrupção, se dediquem a coisas mais amenas e divertidas, que levantem o ânimo e a alegria das pessoas?

Isso me fez lembrar o conto Um Artista da Fome do escritor judeu Kafka, o fustigador do poder da burocracia.

O que Kafka quis mostrar com a história do jejuador do circo e com o simbolismo da jaula na qual foi substituído por uma “bela e poderosa pantera” para alegria do grande público?

Se é sempre difícil extrair todas as intenções dos escritores que deixaram marca na literatura mundial, é ainda mais com Kafka, que deu origem ao termo “kafkiano” para definir as situações inacreditáveis do poder e da burocracia.

Em geral, os artistas costumam dizer que os outros encontram em suas obras significados que eles não haviam pensado. Presenciei isso uma vez com o cineasta e mestre dos cineastas Federico Fellini. Um jornalista em Roma comentava sobre seu filme E la Nave Va quando o cineasta abriu seus olhos brilhantes de adolescente travesso e exclamou: “Que maravilha! Tudo isso está no meu filme? Nunca teria imaginado”.

E, entretanto, essa é a força da arte e da literatura de renome.

O personagem que Kafka escolheu para seu enigmático conto parece banal. É também um personagem que em sua época, como ele declara, já havia perdido o interesse do grande público.

Os jejuadores deixavam de comer durante 40 dias e 40 noites fechados em uma jaula como espetáculo visível para adultos e crianças. Por que o escritor quis desenterrar os jejuadores?

Kafka não se limita a contar a história de um simples jejuador, introduz nele alguns elementos em que é difícil, conhecendo a relação crítica do autor com o poder, não interpretar também no âmbito político e social.

O jejuador do conto de Kafka não é um simples entretenimento usado no passado para divertir o público, já que possui uma característica curiosa: gostava de jejuar. Não comia, mas também não sentia fome: “Só ele sabia, só ele e nenhum outro, como o jejum era fácil. A coisa mais fácil do mundo”.

A figura do jejuador que não tinha fome poderia ser uma parábola de alguém que prefere uma vida austera ao esbanjamento? Não poderia ser uma contra-metáfora do corrupto que deseja acumular, devorar o que não é seu?

Quando as pessoas se cansam do jejuador os donos do circo o tiram da jaula. Quem Kafka coloca em seu lugar? Uma bela e forte pantera negra cuja vista dava prazer aos visitantes já que “o formoso animal se agitava e dava saltos”. E Kafka acrescenta irônico: “Não lhe faltava nada. Nem sequer parecia sentir falta da liberdade”.

As pessoas, esquecidas do jejuador que não sentia vontade de comer nem possuir e nem por isso era infeliz, preferiu o espetáculo da poderosa pantera que não percebe estar presa em uma jaula sem liberdade.

O medo de hoje, no Brasil, é que a opinião pública, nessa luta da justiça contra os corruptos que sequer da cadeia demonstram medo, e a batalha do poder para que saiam ilesos, possa desencantar-se dos honestos que não gostam de roubar e enriquecer.

A aparente beleza da pantera satisfeita, mas enjaulada, que pode simbolizar o poder sem escrúpulos, pode acabar atraindo a atenção de quem, em uma espécie de síndrome de Estocolmo, prefere continuar votando no poderoso corrupto ao invés do simplesmente honrado.

O falecido romancista brasileiro João Ubaldo Ribeiro alertou em um de seus artigos sobre a dificuldade dos brasileiros de manifestarem-se contra a corrupção. Com sua ironia sem amargura, o romancista escreveu que o sonho de muitos era “ter um político corrupto na família”, que resolva todos os problemas.

A sátira de Kafka e a ironia de Ubaldo são dois elementos para se levar em consideração quando as pessoas forem às urnas, onde acabam realizando, muitas vezes, resultados verdadeiramente kafkianos.

No Brasil e além.

Com Dilma não tem saída


Cobram da presidente Dilma Rousseff o que ela não pode dar nem mesmo que quisesse.

Em artigos e entrevistas recentes, o ex-ministro da Fazenda, Delfim Netto, cobrou que ela assuma de fato a presidência da República, propondo ao Congresso uma série de reformas para tirar o país do buraco. Uma das reformas: a da Previdência Social. Outra, a trabalhista. Não bastam. Mas seria um bom começo ou recomeço.

Em resposta a Delfim, a economista Maria da Conceição Tavares, alinhada com o PT, acusou-o de ter saudade da ditadura militar de 64, à qual serviu diligentemente em vários governos. Disse que sem apoio político, Dilma nada poderá fazer. E citou o PMDB como um partido esfrangalhado, incapaz de garantir votos para aprovar as reformas no Congresso.

A economista não citou o PT. Ou porque esqueceu ou porque não o julga mais tão relevante assim. De olho nas eleições municipais deste ano, e na eleição presidencial de 2018, o PT não quer saber de reformas que possam salvar o país, mas pôr em risco seu projeto de permanecer no poder por mais algum tempo.

Para Delfim, o futuro será pior do que o presente caso nada se faça de substancial para arrumar a economia. Para Maria da Conceição Tavares, Delfim não faz previsão, faz bruxaria porque ninguém pode dizer de fato o que a paralisaria do governo nos reserva. Bobagem. Ela sabe que a paralisia do governo só nos reserva coisas más.

A saída, segundo Maria da Conceição, estaria na formação de uma frente democrática ampla. “Só frente de esquerda não dá. Uniria líderes empresariais, sindicais, da sociedade civil, intelectuais, políticos que tenham credibilidade” para firmar um grande acordo que evite o desastre mais do que anunciado.

Quem poderia liderar a formação da frente ampla sugerida por Maria da Conceição? Fora Dilma, em função do cargo que ocupa, mais ninguém. Voltamos, portanto, ao que Delfim tem repetido como um mantra: é preciso que Dilma reassuma a presidência da República. Sem que ela exerça o protagonismo que o cargo lhe confere, nada de relevante poderá acontecer.

O nó reside justamente nisso. Dilma parece perdida. O receituário que aplicou à condução da economia no seu primeiro mandato foi responsável pela situação que o país atravessa. Ela fez quase tudo errado. E não está convencida de que deve daqui para frente fazer tudo ao contrário do que fez. Além de não estar convencida, teme ser abandonada por Lula e o PT.

Dilma revelou-se uma péssima gestora. Para escapar do impeachment, desqualificou sua equipe de governo que já não prestava. Sepultou de vez a “faxineira ética” que no seu primeiro ano de governo demitira meia dúzia de ministros por corrupção. E rendeu-se ao fisiologismo que dizia deplorar, única maneira que vislumbrou para se manter onde está.

Que nada de auspicioso se espere dela. Ou cairá antes do fim do seu atual mandato ou se arrastará trôpega até lá. Dane-se o país.

A impotência do dia a dia


AUTO_brumInesperadamente, o Brasil deixou a grande maioria impotente diante das incertezas do mercado. É muito difícil ver o fundo do poço
Sergio Marchionne, presidente da Fiat Chrysler

Vai jujuba aí?

Se era para marqueteiramente demonstrar austeridade, os potes de jujuba servidos aos convidados do Conselhão simbolizaram a reunião: balinha para adoçar o "venerável público".  

Sem ter o que oferecer ao país senão dívidas, sofrimento e potes até aqui de lágrimas, Dilma ainda é insensível ao empacar mais uma vez na "matriz econômica" que levou, junto com as crises políticas e a Lava-Jato, o país para o poço, puxado pelo desmanche da Petrobras.

Com a costumeiramente cara de pau, besuntada de óleo de peroba, a presidente insiste em alavancar a retomada econômica através do incentivo ao consumo. A novíssima matriz não tem nada de novo. Mas fará a alegria dos endividados que terão dinheiro para gastar ainda mais e, de quebra, encarecidamente, pagar a ressuscitada CPMF. Prejuízo certo para a população e lucro garantido nos caixas financeiro e político para a governança trambiqueira.

A reunião, nitidamente pra inglês ver, serviu para o governo apresentar seus "coelhos" da cartola furada. Com o caixa em baixa, quase penhorando o país, Dilma e o mágico Nelson Barbosa descobriram uma grana de bilhões para ajudar os desempregados a consumirem. Como tríudo momesco, foi impagável.

Mesmo sem arlequim e colombina no salão, Dilma e seu mestre-sala Barbosão desfilaram com o estandarte da "Travessia" e, como não sambam mas fazem o povo dançar, atravessaram o Samba das Promessas. Mas quem muito promete nada cumpre, esperar algum coelhinho nessa cartola é esperar com vela na mão.
O que se viu foi um aceno para a patotada com um pacotão genérico, que ainda depende de debates e passagem pelo Congresso. Nada do que se falou será aplicado mesmo em breve. E de certo já se sabe que trabalhador e contribuinte não entra no cordão. É mero pagador das promessas. Que o diga Trabuco, do Bradesco, que teve lucro líquido recorde em 2015.

Mais uma vez Dilma dá espetáculo. Em nenhum momento, porque não convinha, se falou no corte de gastos e redução drástica do aparelhamento e endividamento do Estado. As jujubas talvez tenham sido suficientes para mostrar que o governo é austero pra burro.

Matando mosquito a tapa

Mais uma vez o mundo se curva aos pés do Brasil.

Quem não se lembra desse slogan ufanista com o qual o Brasil festejava glórias verdadeiras ou imaginárias, principalmente nos campos esportivos, quando ainda gozávamos dessa primazia? (principalmente antes do histórico 7 a 1).

Estrelas solitárias como Pelé, Eder Jofre, Emerson Fittipaldi, Ayrton Senna, Adhemar Ferreira da Silva, Maria Esther Bueno, Nelson Prudêncio, Oscar e outros heróis contados nos dedos das duas mãos nos davam ilusões esparsas de grande potência e alimentavam o nosso ego de povo juvenil.

Crescemos um pouco, as estrelas fugazes perderam seu brilho e hoje em vez de exportar glórias contaminamos o mundo com o vírus da zika.

Paixão - Gazeta do Povo
Os EUA querem acelerar uma vacina e a Alemanha, a França e o Reino Unido pedem às suas grávidas que evitem o Brasil.

“Evitem o Brasil”. Soa feio isso, não? Uma espécie de rejeição desconfortável, como quando comunidades da Idade Média eram atingidas por epidemias de peste negra. Evite, fuja, não passe perto: um golpe na nossa autoestima. Quer coisa mais humilhante?

Como todo mundo sabe (de certa maneira até a presidente Dilma sabe, embora ela tenha feito uma certa confusão entre insetos, vírus e ovos na forma de transmissão), o vírus da zika é responsável pela microcefalia, e é transmitido pelo mosquito aedes aegypti, contra o qual Oswaldo Cruz travou guerra mortal no início do século XX.

O mosquito transmite dengue, chikungunya e zika, que se tornaram doenças epidêmicas no Brasil. A descoberta de que a zika, quando infecta mulheres grávidas pode provocar a microcefalia, que diminui o tamanho do cérebro de recém nascidos e provoca problemas de desenvolvimento, deu à doença relevância internacional.

Vários casos começaram a ser notificados no mundo, e todas as mulheres infectadas tinham passado pelo Brasil.

Aqui, a guerra contra o mosquito ganhou o inevitável e característico toque “local" da comédia pastelão, do desentendimento, da confusão, do jogo de empurra que costuma caracterizar ações onde o poder público deveria ter laço firme e braço forte, mas só consegue tropeçar em suas próprias pernas.

O ministro da Saúde, um certo Marcelo Castro, misterioso coelho tirado da cartola pelo PMDB em um daqueles arranjos do “é dando cargos que se recebe votos”, num acesso de sinceridade que a presidente da República chamaria de “estarrecedor”, disse que o Brasil “está perdendo feio a batalha contra o mosquito aedes aegypti.

Verdade absoluta. Mas isso é coisa que se diga? Políticos geralmente têm licença para mentir, mas só quando a mentira convém ao governo a que servem. Nesse caso, não convinha.

A presidente Dilma, que entre as suas extraordinárias habilidades reúne também a de ler a mente de seus comandados, ficou com ganas de demitir o ministro falastrão, mas em nome da “governabilidade” - essa musa do Parnaso - resolveu reinterpretá-lo à sua (dela) imagem e semelhança.

E resolveu ler e traduzir o pensamento mais íntimo de seu ministro e falar por ele:

“Não, a batalha não está perdida, não. Isso não é o que ele está pensando nem o que ele disse. O que ele disse é, se nós todos não nos unirmos e se a população não participar, nós perdemos essa guerra”

Então ficamos assim: o mosquito continua firme e forte, mas ele que se cuide, porque a nossa presidente pretende exterminá-lo. Nem que seja a tapa.

Caça às bruxas

Dito isso, o “bárbaro”, para uma pessoa, é uma outra pessoa “que apenas faz aquilo que todos fazem”
Susan Sontag – Diante da dor dos outros

Numa das cenas mais emblemáticas do filme “Monty Python: Em busca do cálice sagrado”, Rei Arthur chega a um vilarejo em que os aldeões, entusiasmados, traziam uma suposta “bruxa” para ser queimada. Belvedere, o sábio da área, pergunta se tinham alguma prova. As afirmações são absurdas, desde deformidades físicas artificiais, como um nariz pontudo falso, ao homem que diz ter sido transformado em uma salamandra. Ao ver que ele é um ser humano, o “juiz” o questiona. O acusador meramente responde que “melhorou”. O julgamento, em si, é tão esdrúxulo quanto. Para ser considerada uma bruxa, a mulher teria que pesar o mesmo que um pato. Ela é então posta em uma balança defeituosa, de modo que o resultado aponta uma improvável igualdade de peso em ambos. “Eu desisto.”, diz enquanto é levada pelos moradores enlouquecidos para a fogueira.

Lembro-me dessa cena quando penso na tensão social de uns dois anos para cá. O importante é defender seu ponto de vista, agressivamente. O fato de ter argumentos sólidos se torna irrelevante e, até, motivo para acirrar ainda mais a discussão. Não se aceita que o outro tenha um ponto de vista diferente, que pode estar errado ou certo. É preciso vencer nem que seja pela força. Não se trata de mera histeria, mas algo mais quieto e assustador. É uma violência verde, que desenvolve a ponto de se colher no galho e ser consumida por inteira.

A polêmica deixou de ser um momento de reflexão para se tornar num palco de reality show. Queremos ser vistos, sem medir as consequências. Isto surge de braço dado com a ausência da empatia. É tão comum quanto irresistível. Já temos uma natural propensão a vasculhar o bizarro. Agora não é preciso tanto,pois o retiramos de nós mesmos. Qual é a solução para isso? Não interessa. O sangue que toma as faces dá um barato e tanto. A diversificação de movimentos e linhas de raciocínio não serviu para ampliar, mas segmentar ainda mais o debate, qualquer que este seja. Vemos bruxas em potencial e mal podemos esperar para queimá-las em praça pública. Porque isto é o que acontece com quem discorda de mim. O mantra agora é esse, e azar de quem não recitá-lo junto.

Há um ano, fui agredido por um grupo de rapazes de classe média por nenhum motivo. Eu só estava sozinho num bar e pularam em cima de mim. Tive uma crise de pânico severa por um mês. Não saía de casa, temia os olhares, a perseguição era uma realidade tão forte quanto os dias e as noites. Nunca soube o real motivo. Não os conhecia, sequer trocamos palavras antes. Foi um acaso. Poderia ter sido qualquer um. Eu só estava bebendo num bar em Copacabana à noite e calhei de atrair a atenção de um grupo que sequer notara. Por quê? Eventualmente, me recuperei.Encontrei uma resposta que, se não é definitiva, parece a mais lógica: insensatez. A diferença é que isto é encarado como algo normal, quando deveria ser o contrário.

No ensaio Diante da dor dos outros, Susan Sontag discorre sobre a reação a imagens de sofrimento e crueldade. Seu questionamento é se o excesso dessas teria retirado nossa capacidade de sentir a experiência alheia. Outro dia, li sobre os feridos em uma manifestação em São Paulo. A truculência dos internautas na seção de comentários, em que escreviam que a polícia estava certa em agredir os “vagabundos” que atrapalhavam “as pessoas de bem” de chegarem em casa atinge como uma bala de borracha na consciência. A loucura protegida por uma tela de computador não é nova, mas verificar que saiu do virtual para o dia a dia preocupa. (ou será que sempre esteve?…) A questão profunda não é quem estava certo, se os manifestantes ou a força policial, mas como a imagem de pessoas sangrando é vista como uma punição merecida e incentivada, independentemente dos motivos e das condições de enfrentamento.Não há qualquer esboço de empatia ou compreensão. Um julgamento salemiano, em suma.

O clima de torcida rival espalhado se tornou uma fera de apetite insaciável. Seja no banco esperando para pagar uma conta ou no supermercado, há alguém falando alto sobre sua insatisfação. Buscam aprovação em monólogos ensaiados, vários desses rasos e repetitivos. Ouço e expiro. Vale a pena conversar com alguém surdo? Ainda vale se você acredita. Mas é preciso ouvir. Às vezes, mais do que falar. A diferença é que agora basta pouco para a situação degringolar em algo destrutivo. Não basta rebater, apenas parecer. Como a mulher na cena do filme do Monty Python, assim é se lhe parece. Na dúvida, ponha um nariz falso.

Daniel Russell Ribas

Impeachment, democracia e Estado de Direito

Se o que se quer, na política, é promover o bem comum, as divergências terão como foco principal o conceito de bem comum, seu conteúdo e o modo de produzi-lo em cada momento histórico. No entanto, se o objetivo é apenas alcançar o poder, ou mantê-lo, então a honestidade intelectual se torna um transtorno e o senso moral deve ser apartado, assim como se retira o incômodo ferrão em picada de marimbondo. Sob tais padrões, a estratégia, a propaganda e a arte do convencimento são concebidas e mobilizadas apenas pelo desejo de convencer e vencer, aferindo-se a qualidade dos meios pela eficácia em relação aos fins desejados e não por sua relação com a verdade e o bem.

Digo isso porque a defesa do governo na questão do impeachment tem-se valido de todos os meios possíveis de enganação. Não estou recusando aos governistas o direito de escudar o governo. O que estou afirmando é que quase todos os seus argumentos, a partir do mais constantemente repetido, são concebidos para iludir. Repetem, insistentemente, que: 1) o impeachment fere a democracia; 2) impeachment é golpe. Ora, não é possível que experientes jornalistas e doutos congressistas dardejem fogo dos olhos em frêmitos de indignação afirmando que impeachment fere a democracia. A democracia, a soberania popular, senhores, é ferida quando quem governa só tem apoio de 10% da população!

Talvez se inquiete o leitor: "Nesse caso, todo governo que perde o apoio da maioria da população deveria cair?". A resposta a essa pergunta é afirmativa em praticamente todos os países parlamentaristas (cerca de 95% das democracias estáveis). No presidencialismo, eu afirmo, sem pestanejar: nas atuais condições, um governo de democratas deveria renunciar. E mais, há algo muito errado num sistema político em que governos rejeitados são mantidos por força da Constituição.

O que sustenta esse governo no poder, então, não é a "democracia", obviamente, mas a regra do jogo político, o Estado de Direito como o temos. Há em nossa Constituição uma norma que determina em quais situações e mediante quais procedimentos, quem preside a república pode ser afastado do cargo. E a perda da aceitação social não está entre elas.

Entendido isso, fica mais fácil compreender o quanto é falso chamar de golpe o pedido de impeachment da presidente Dilma. Essa demanda nacional, nascida nas ruas, sem partido nem patrocínio, sem tanques nem canhões, deu causa a três dezenas de requerimentos, Brasil afora. Como o processo de impeachment é jurídico e político, as motivações políticas dispensam apresentação. Estão nas vozes das ruas. As motivações jurídicas, por seu turno, foram avalizadas unanimemente pelo TCU e são de perfeito conhecimento público.

Golpe, portanto, de um lado, é usar o que pertence ao Estado para subornar votos no Congresso, como vem fazendo o governo de modo a evitar que o impeachment prospere. E, de outro, é golpe fazer do STF, com o mesmo fim, um puxadinho do partido governista.

Em resumo: quem atenta contra a democracia é o governo quando insiste em ancorar-se no poder, enterrando o futuro do país contra a vontade nacional; e é ele quem novamente golpeia as instituições quando se defende com os meios que para tanto vem empregando.

Percival Puggina
ricos

Quem cala, quem fala

A situação desagradável de Lula, sob cerco crescente e cada vez mais voraz, em grande parte é uma criação sua. A cada petardo que lhe atiram, a reação de Lula é invariável: o silêncio emburrado. Até que, ao acaso ou por uma circunstância especial, manda um dos seus petardos típicos em resposta a uma das suspeitas acusatórias, feito mais de ira do que esclarecimento.

Com o ganho que seu governo facilitou às classes já favorecidas, muito maior que o transferido às classes de baixo, Lula, ao que se pôde deduzir, supôs-se aceito pelo conservadorismo econômico e político. Já deu muitos sinais de ressentimento do que considera a ingratidão de uns e a deslealdade de outros, estes na “esquerda” e até integrantes do seu governo. Mas o erro de avaliação não foi do conservadorismo e dos adversários políticos, que não mudaram. Aproveitaram o que o governo Lula, como qualquer outro, lhes deu, e continuaram fiéis à sua natureza.


O caso do triplex no Guarujá ilustra bem a conduta um tanto masoquista de Lula. A Lava Jato tem espichado essa rentável história, mas a inesperada concorrência de um promotor de Justiça de São Paulo veio precipitar atos novos. Ocorrência incompatível com quem se declara a pessoa mais honesta do país. Admitindo-se que seja ao menos tão honesto quanto são os honestos do país, Lula há de ter explicações cabais e divulgáveis sobre o que ligou seu nome ao tal apartamento, capazes de eliminar no nascedouro as suspeitas postas já como denúncias de improbidade. Se não puder esclarecer, ou, por qualquer motivo, não quis fazê-lo, o menos admissível é expelir ressentimento e descontrolar-se em bravatas verbais que nada resolvem.

No emaranhado de revelações, com e sem aspas, e obscuridades que fazem a novela da Lava Jato, o recente depoimento do lobista Fernando Moura, desdizendo-se, pode ser muito mais importante do que aparenta. A começar da irritação que causou nos procuradores da Lava Jato, por desfazer algumas acusações, por exemplo, a José Dirceu, o depoimento abre caminho a novas verdades. São brechas que ou forçam ou permitem revelações até aqui evitadas por determinados depoentes.

Os procuradores entenderam de outro modo. Preferiram ameaçar Fernando Moura com a retirada do prêmio à delação, por prometer, para obtê-la, afirmações que retirou ao falar já como delator premiado. Para obter o direito ao prêmio, qualquer um diz qualquer coisa que agrade aos inquiridores.

As delações contêm inúmeras contradições que caracterizam mentira de um dos depoentes, senão dos dois, e jamais os procuradores ameaçaram com represália. Se suspenso o direito de Fernando Moura ao prêmio, caberá ao Supremo Tribunal Federal decidir qual dos seus depoimentos é mais verdadeiro. Menos para efeito do prêmio do que para os processos e julgamentos. Uma questão interessante.

O 'Aedes brasilis' que cria o Aedes aegypti

O Aedes aegypti é um produto do “Aedes brasilis”: os brasileiros imprevidentes com saneamento e educação cívica. A consequência do casamento entre esses dois Aedes é o sofrimento de milhões de doentes contaminados com o vírus da dengue e de milhares com o zika vírus, que, possivelmente, provoca a tragédia da microcefalia.

O cérebro humano cresce três gramas por dia durante o terceiro trimestre de sua gestação; depois, mais dois gramas diários durante os seis primeiros meses de vida, dependendo da alimentação e de estímulos físicos e educacionais. A partir daí, continua crescendo lentamente, ao longo de alguns anos iniciais de vida, mas seu potencial intelectual cresce de forma indefinida graças aos diversos meios de educação, sobretudo na escola. Raramente a natureza interrompe o crescimento natural do cérebro, mas, no Brasil, nós o fazemos pela omissão como tratamos o locus do seu desenvolvimento: a escola.

Desde a Proclamação da República, provocamos limitações intelectuais em dezenas de milhões de brasileiros, contaminados pelo Aedes brasilis, que induz o analfabetismo, impedindo os cidadãos de reconhecer a própria bandeira, por não serem capazes de ler “Ordem e Progresso”. Esse é o grau mais violento, mas não o único, na interrupção do crescimento intelectual do cérebro provocado pelo Aedes brasilis.

Também é vítima dele cada criança jogada para fora de uma escola de qualidade antes do fim do ensino médio. Ao longo de nossa história, a maior parte da nossa população vem sendo contaminada por um zika vírus social transmitido pelo Aedes brasilis. Ainda mais grave para um país que se diz republicano, o transmissor seleciona a vítima conforme a renda familiar. As crianças de alta renda dispõem de recursos para protegerem-se do vírus da microcefalia intelectual e são vacinadas em boas escolas, enquanto as crianças de baixa renda ficam condenadas ao vírus social.

A tragédia pessoal desses milhões de contaminados se transforma em tragédia histórica porque, ao impedir a população de desenvolver plenamente seus talentos intelectuais, o Aedes brasilis limita o aproveitamento de centenas de milhões de cérebros, provocando uma microcefalia social que impede a transformação do Brasil em um potente centro de desenvolvimento científico e tecnológico.

As consequências dessa anomalia social são o atraso econômico e social; além de dificultar o avanço político e a construção de uma sociedade democrática, eficiente e harmônica. Ainda mais, é a microcefalia intelectual que impede o Brasil de ter os sistemas de saneamento e de educação cívica, propiciando o desenvolvimento do mosquito da dengue, da chikungunya e do zika vírus. O Aedes brasilis provoca microcefalia social, que termina sendo a principal causa das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti e todas as demais formas de pobreza intelectual.
Cristovam Buarque

O chato da propina


I

Há gente chata pra tudo,
Ser chato parece sina,
Um castigo de nascença,
Seja grossa ou seja fina,
Há pessoas que são chatas
Até pra pedir propina.

II

O chato fica no pé,
A toda hora insistindo,
Você se esconde, ele acha,
Fica a prosa repetindo
E, quando consegue uma coisa,
Começa outra exigindo.

III

O chato pede um favor,
Pede o segundo e o terceiro,
Depois que alcança os três,
Recomeça o converseiro
E volta a telefonar
Reclamando do primeiro.

IV

Ele entra na internet
E fica te futucando,
Puxa conversa fiada,
Mesmo você evitando,
Inda bota um bonequinho
Com a cara triste, chorando.

V

Na mesa de um restaurante,
Você e sua mulher,
O chato encosta e se senta
Começa o querrequequé,
Dana-se a falar de Lula,
De Maradona e Pelé.

VI

Ele visita sua casa,
Sem ninguém lhe convidar,
Chega na hora do almoço,
Come que chega a arrotar
E reclama da descarga
Que está sem funcionar.

VII

No comitê de campanha
É cheio de curruchiado,
Fica contando vantagem,
Todo mundo admirado,
Parece até que ele tem
Mais votos que o deputado.

VIII

Na casa de um amigo,
Zé Serra foi se hospedar,
Era uma bela fazenda
Pras bandas do Paraná,
Pois o chato reclamou
De ouvir o galo cantar.

IX

O chato entra no carro,
Acha o som meio alteado,
Diz que o carro é zoadento
Com o motor envenenado:
- Está frio, você desliga
Esse ar-condicionado?

X

Agora na Lavajato,
Está tudo confirmado:
O chato ficou ligando
Que a propina tinha chegado,
Mas só tinha nota de cem
E ele queria trocado.