quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Aviso aos navegantes

Isso é um alerta: ontem mesmo me deitei tendo 16 anos e hoje acordei com mais de 60. Quero dizer que a vida voa. Ah, se quando jovem eu soubesse que iria envelhecer e morrer, acredito que teria vivido de outra maneira. O que acabo de dizer é uma boutade, eu sei: mas, ao mesmo tempo, é certo que, com os anos, você chega a uma região, a da velhice e da Parca que ronda, que você nunca viu antes com verdadeira clareza. E então diz: ah, quanto tempo perdido. E não porque minha existência me desagrade, pelo contrário, acredito que foi e é muito intensa e que fiz tudo o que gostaria de fazer. Mas com que nervosismo, de que forma tão atormentada e tão confusa, quantas vezes vivi com o corpo aqui e a cabeça em outra parte. Por não falar da quantidade de tempo e de energia perdida em bobagens, como, por exemplo, achar que era feia aos 18 anos (quando era mais bonita do que nunca), e me angustiar temendo não estar à altura de algum trabalho. Por isso, repito: se eu soubesse que iria envelhecer e morrer, teria vivido de outra forma.

Tudo isso surge, é claro, pela mudança do ano. O calendário não é mais do que uma convenção, mas como mexe e como queima. Nessas datas é impossível não dedicar sequer um minuto a sentir o vento do tempo contra o rosto, a revisar superficialmente o passado, a se perguntar sobre seu futuro. Acabo de ler um livro extraordinário que acompanha bem essas angústias. É o livro Instrumental: memórias de música, medicina e loucura, de James Rhodes (Blackie Books, em espanhol). O britânico Rhodes tem uma biografia totalmente improvável. Por exemplo, é pianista, um bom concertista. Começou a estudar piano, entretanto, mal e tarde, e depois o largou por completo durante 10 anos até retomar a música com quase 30 anos. Não acredito que exista no mundo outro caso assim. Se você abandona um instrumento dessa forma, simplesmente não é possível ser um músico dessa qualidade. Mas ele é. Esse é seu primeiro milagre.


Nunca seremos tão jovens como hoje e a vida se conquista dia a dia

Tem vários outros, alguns pavorosos. O livro de Rhodes conta com uma crueza que eu nunca antes vi sobre a experiência de uma vítima de pedofilia. Quando tinha seis anos, James foi estuprado por seu professor de boxe do colégio. E o canalha continuou a fazê-lo durante cinco anos impune e sistematicamente, até que Rhodes mudou de escola. O garoto, ameaçado pelo pedófilo, envergonhado e amedrontado, nunca disse nada a ninguém; mas outros professores o viam chorar, o viam sair com as pernas sangrando da sala do monstro e não fizeram nada. O livro de Rhodes é um grito indignado contra essa passividade tão comum diante dos abusos infantis. Como as pequenas vítimas não se atrevem a denunciar, é muito cômodo ignorar um horror que fica escondido, como os malvados ogros dos contos, nos quartos escuros e nos pesadelos das crianças. E uma outra lição desse ótimo livro: os estupros deixam sequelas. Em primeiro lugar, graves sequelas físicas, porque é uma brutalização contínua de um corpo muito pequeno (o músico precisou ser operado várias vezes); e, certamente, uma enorme quantidade de catástrofes psicológicas. Prostituição na adolescência, um ano de internação em um hospital psiquiátrico, três tentativas de suicídio, cortes auto-infligidos com uma lâmina, drogas, fúria e dor. E esse é o segundo milagre: sobreviveu a tudo isso.

Terceiro milagre: James é a prova de que a arte e a beleza ajudam. No caso de James, a música acalmou sua fera interior. Todos podemos e devemos recorrer a isso: quanto mais beleza em nossas vidas, mais fora do tempo e da pena, mais imortais.

Mas ainda falta contar um quarto milagre. Ainda que a existência de Rhodes pareça enorme e atribulada, só tem 40 anos. Puxa, isso é viver depressa. Como dizia Lou Reed: meu dia equivale ao seu ano. Pois bem, no final o autor deposita sua confiança em sua segunda esposa, Hattie, e se atreve as dar conselhos para o bem-amar. Antes, ao ler o livro, Rhodes me pareceu um homem comovente e admirável, mas também furioso e ferido, intenso demais para permitir a proximidade. Mas nessas páginas finais fala da convivência com tanta modéstia, tamanha sabedoria que me deixou admirada. Como, por exemplo: “O que mais estraga uma relação é tentar sair ganhando”. Pequena grande verdade. É preciso viver muito e pensar muito para chegar a tão pouco. Ou seja, que é possível aprender, mesmo que venha com as feridas mais cruéis. Sempre é possível recomeçar. Aviso aos navegantes para evitar os obstáculos desse ano: lembremos que, como prova Rhodes, sempre existe futuro. Nunca seremos tão jovens como hoje e a vida se conquista dia a dia.
Rosa Montero

Pátria não é pizza


Pátria é a comunhão de esperanças, de sonhos comuns e a busca de um ideal; é a solidariedade sentimental de um povo, e não a confabulação de politiqueiros que medram a sua sombra
José Ingenieros

Misterioso 2016 para os países latino-americanos

Se a vida pública fosse vista como um filme ou um romance, o ano que começa está cheio de suspense para a América Latina. 2016 esclarecerá incógnitas de primeira magnitude. É como se o tempo, acelerado, estivesse prestes a desatar vários nós.
No Brasil, a moeda continua no ar. Enquanto os juízes investigam a corrupção generalizada na Petrobras, o Congresso decidirá se manda aos tribunais 40 legisladores envolvidos no escândalo. Entre eles estão os presidentes de ambas as câmaras. A própria Dilma Rousseff, cuja popularidade permanece na casa de um dígito, enfrenta um processo de impeachment por adulterar as contas públicas. A possibilidade de destituição é muito nebulosa. Mas a hipótese de que renuncie e entregue o Governo ao vice, Michel Temer, permanece aberta. O PT vê no funcionamento institucional uma confabulação golpista. A legitimidade está em discussão. Esse drama se desenrola na aridez de uma economia que encolheu 3,5% em 2015. E pode se retrair mais 2% em 2016. Dilma tentou a receita fiscalista de Joaquim Levy. Fracassou. Agora se refugiou na heterodoxia de Nelson Barbosa, o outro acrobata do ano. Como qualquer sociedade tomada pela corrupção e pelo ajuste, a brasileira reconfigura seu sistema partidário. O PT procura, sob a degradada liderança de Lula, reinventar-se numa frente de esquerda para as eleições de 2018.

A Argentina fez uma experiência extravagante, cujos resultados serão vistos nos próximos meses. A metade do eleitorado concedeu o poder a Mauricio Macri. O presidente tem que consolidar a aliança Cambiemos, formada pelo seu partido, o PRO, a União Cívica Radical e a Coalizão Cívica. A aliança recebeu o presente de grego de governar também a província de Buenos Aires, que esteve nas mãos do peronismo por quase 30 anos. A transição é turbulenta: a fuga de três traficantes de droga de uma prisão voltou as atenções ao temível espetáculo das máfias entrincheiradas no aparato carcerário e policial. A ausência de alternância incubou um sistema de cumplicidades entre o crime e a política. A ruptura desse acordo, como ensina o México, não é pacífica.

Chavistas queimam bandeira dos opositores
A minoria no Congresso obriga Macri a decretar medidas de emergência para sanear a economia. Alfonso Prat-Gay, o ministro da Fazenda, fez a operação mais delicada: liberou a compra de dólares e estabilizou o valor dessa moeda. Agora o Governo deve fazer grandes ajustes: reduzir subsídios, impedir a disparada da inflação e conseguir que no último trimestre o nível de emprego cresça. Para se estabilizar, Macri necessita ganhar as eleições legislativas de 2017, principalmente em Buenos Aires. Tem uma vantagem: o peronismo fora do poder é um peixe fora d’água., Encurralada por processos judiciais, Cristina Kirchner tenta bloquear a nova administração. Mas deve arrastar os pragmáticos governadores do seu partido que, necessitados de recursos, se tornam dialogistas. É outra charada: quem será o novo líder peronista.

A questão argentina se agiganta na Venezuela: como se passa da hegemonia ao pluralismo. O populismo resiste a qualquer tipo de controle. O chavismo foi ferido nessa essência: reduzido a um terço na Assembleia Nacional, o regime de Nicolás Maduro virou uma caricatura. Torna-se mais autoritário. Impugna legisladores, apoiado por um Tribunal Supremo inundado de magistrados facciosos para se blindar contra a oposição parlamentar que planeja sua substituição constitucional. O substituto de Diosdado Cabello à frente da Assembleia, Henry Ramos Allup, acaba de pedir a renúncia de Maduro. Na contraluz desse conflito reaparece um ator que, para seu próprio bem, os latino-americanos tinham esquecido: o Exército. A questão da legitimidade na Venezuela é inquietante.

Rafael Correa e Evo Morales sobreviverão ao degelo bolivariano? Morales pretende permitir sua reeleição no referendo de fevereiro. E Correa, que jura não forçar sua continuidade no poder, deve abençoar um sucessor: no Equador há eleições presidenciais no início do próximo ano.

2016 é, para a Colômbia, também uma caixa de Pandora. O processo de paz com as FARC avança em meio a um ríspido debate nacional. Em 16 de dezembro foi concluída uma etapa delicada, o acordo sobre a reparação às vítimas e a justiça nessa transição. O fato de que as penas sejam de cinco a oito anos de reclusão não carcerária desencadeou duríssimas denúncias contra a impunidade. Falta determinar os custos da reinserção dos guerrilheiros e da reparação de todos aqueles que sofreram com a guerrilha.

O ponto de fuga do quadro é o referendo sobre o formato da paz. Álvaro Uribe já começou a campanha pelo “não”. Juan Manuel Santos tem um aliado gravitando: o papa Francisco, que no Natal rezou pelo processo colombiano. No dia 28 de janeiro o Papa definirá com o bispo Luis Castro a data de sua visita à Colômbia, neste ano.

O calendário é parte de um jogo de xadrez regional do qual participam Barack Obama e Raúl Castro. O encontro entre os dois líderes, em Havana, previsto para março, é outra manifestação da metamorfose regional.

Brutti tempi, Eccellenza, tempi brutti! (Tomasi di Lampedusa)

O ano passado, no Brasil, terá sido o que a monarquia britânica qualifica como annus horribilis, pela impressionante combinação de crises de todos os gêneros. Não há razões, infelizmente, para presumir que 2016 venha a ser diferente.

Lá fora, um ambiente de muitas incertezas econômicas, com possibilidade de eclosão de episódios terroristas e conflagrações regionais.

Aqui, desemprego elevado, inflação alta, juros pesados, baixo crescimento econômico, dificuldades para superar a criminosa crise fiscal, corrupção sistêmica, degradação da prática política, sem falar da inépcia do Estado ante epidemias e desastres ambientais.

Na base de tudo, o aviltamento dos incipientes valores nacionais, para o qual concorrem governantes que designam seus atos deletérios como “um mero caixa dois”, e uma população com baixo nível educacional, maltratada por um ensino de péssima qualidade e pela insensatez das greves de professores, cujas vítimas, afinal de contas, são os alunos.

Uma mudança de rumos para superar as crises exigirá muitos sacrifícios e capacidade política para resolver conflitos e contradições.

Todos que estudam a previdência social brasileira têm claríssima convicção quanto à sua insolvência, em virtude dos sucessivos e crescentes déficits e da mudança do perfil etário da população.

De igual forma, temos uma obsoleta legislação trabalhista, que produz um patético e monumental contencioso judicial e leva à informalidade a grande maioria dos trabalhadores.

Teria, entretanto, o governo condições para implementar reformas previdenciária e trabalhista, contrariando sua base de apoio político, especialmente sindicatos presos a dogmas ultrapassados e linhas auxiliares de partidos políticos, financiadas por dinheiro público e, pretensiosamente, denominadas “movimentos sociais”? Presumo que não.

Temos uma população que, majoritariamente, não sabe ler, nem escrever. Por isso mesmo, os jovens, especialmente os que vivem nas periferias urbanas, frequentemente se entregam às drogas, ao crime ou ao subemprego.

O baixo nível da educação brasileira repercute, também, na carência de mão-de-obra qualificada que possibilite ganhos de produtividade na economia.

Mas como tratar de uma reforma educacional se os interlocutores são justamente os responsáveis pelo deplorável quadro da educação brasileira? A perspectiva não é boa.

Os serviços públicos da saúde à segurança pública, daí passando à mobilidade urbana e à infraestrutura, são um torneio de iniquidades.

Seu enfrentamento, contudo, reclama repensar as funções do Estado, conferir concretude ao princípio da eficiência no serviço público, dar um freio no poder das corporações. Quem se habilita?

É verdade que a Operação Lava Jato representou um extraordinário marco na luta contra a corrupção no País, tanto quanto as ações do Poder Público contra as chamadas pedaladas fiscais. É necessário, entretanto, construir um marco institucional para prevenir novas ocorrências.

Não temos sequer um mínimo consenso sobre a reforma tributária. Reúnam dez tributaristas e terão onze modelos de reforma tributária.

Ainda acreditamos que carga tributária decorre de tributos. Levaremos muito tempo para entendê-la como variável decorrente do tamanho do gasto público.

Tampouco sabemos que a partilha de receitas públicas, no âmbito da Federação, presume um mínimo conhecimento sobre uma repartição, jamais debatida, dos encargos públicos.

Apreciamos muito as reformas tributárias abrangentes, quase sempre meras reproduções de modelos estrangeiros, sem nenhuma criatividade e alheias às nossas circunstâncias. Ainda não aprendemos que as tentativas de reformas abrangentes resultam, invariavelmente, em impasses.

É muito trabalhoso identificar os problemas relevantes, encontrar soluções e desenvolver uma estratégia de implementação.

É possível reverter essas tendências? Sim, mas pouco provável no curto prazo, salvo se houver uma drástica mudança de rumos no governo ou se o inesperado comparecer à assembleia dos fatos. 

MEC tenta comprovar que, no Brasil,m o passado é imprevisível

Em brilhante artigo publicado na edição de O Globo, 5 de janeiro, o historiador Marco Antônio Villa ataca, com toda a razão, o projeto do Ministério da Educação de colocar em consulta pública um projeto que apresenta como voltado para estabelecer as bases de uma revolução cultural do país. Tomara, digo eu, que a consulta pública não seja um simples disfarce. Pois, uma vez realizada, lançará por terra a tentativa de reescrever a história.

Reescrever ignorando espaços de tempo essenciais, como a Historia Antiga, incluindo a Renascença, por exemplo, acentua Villa, na qual se integram Leonardo Da Vinci e Miguel Ângelo. O impulso do MEC parece ser o de tornar o passado imprevisível.

Não poderá ter êxito tal iniciativa, seria um desastre cultural completo. Sobretudo porque implica num esforço negativo de implantar tal reforma cultural nos primeiros e segundos graus. Ainda bem que fracassará. Nas somente a iniciativa desqualifica os autores de uma proposição dessa ordem. E destaca nitidamente a sensibilidade e a capacidade dos que recorreram ao laboratório produtor de tal ideia.

Omitir a cultura da Grécia antiga é romper com a própria Filosofia que, no fundo, de uma forma ou de outra, está presente no pensamento humano. Romper com o Império Romano, além de agredir a história, representa uma ruptura com o próprio cristianismo, uma vez que ele teve origem com a tragédia da crucificação. Consequência da invasão de Roma de Tibério na Judeia, a qual produziu a existência de dois governadores nomeados pelo imperador: Pôncio Pilatos e Herodes Antipas. Pilatos era romano. Herodes era judeu, representando a parte da população que aderiu ao invasor. O episódio guarda em si alguma semelhança com o que sucedeu na França de 1940, quando surgiu o governo de Vichy. Mas esta é outra questão.

O fato é que a tentativa de apagar o passado, fonte permanente e eterna de se procurar entender o presente, é simplesmente imbecil. Como ignorar as obras de arte que povoam o trilhar dos séculos. Veneza não é só conhecida por seu carnaval, mas também como cenário de Otelo, de alguém chamado William Shakespeare. O mesmo pensamento se aplica a Verona, palco de Romeu e Julieta. Inúmeros exemplos culturais podem ser acrescentados no plano das artes, dos milhares de períodos históricos. Somente a partir de Jesus Cristo são 16 anos além de dois milênios. Que dizer da divisão do tempo que rege a humanidade entre antes e depois do calvário?

O episódio denunciado por Marco Antônio Villa é uma comprovação a mais da trajetória da incapacidade e mesmo – por que não dizer? – da burrice em sua essência maior. Pois a existência humana, em sua aventura, é uma viagem através dos séculos, tanto assim que em nossos deslocamentos procuramos sempre encontrar o passado que se eterniza cada vez mais. A cada ano, portanto, torna-se mais antigo e proporciona redescobertas.

Na era do relato, buscamos decifrar a figura inultrapassável de Jesus Cristo. Na era do registro, de acordo com McLuhan, o nazismo, que figura entre as maiores tragédias a que o universo já assistiu. O MEC parece desconhecer tudo isso, na tentativa de recriar uma contracultura. De não saber que do alto da história 40 séculos nos contemplam. Para os judeus, 57 séculos. Para nós cristãos, 20 séculos.

Mas – citando Noel Rosa – para que falar com quem não entende nada de coisa alguma? Villa salvou a cultura de um desastre? Esperemos que sim.

Negociações entre a guilhotina e o pescoço


Do palácio do Planalto, más notícias: entrou em terreno de areia movediça o projeto de reformas econômicas destinadas a superar a crise e retomar o desenvolvimento, com o combate ao desemprego e a alta de impostos e do custo de vida. Acirra-se o eterno conflito entre o capital e o trabalho, porque as empresas exigem crédito mais fácil, desoneração fiscal, contenção salarial, desburocratização e livre negociação entre patrões e empregados. Já as centrais sindicais querem imposto sobre grandes fortunas e heranças, correção de salários, manutenção de direitos trabalhistas e garantia de emprego.

O choque é evidente, a ponto de levar o governo a arrefecer o ímpeto reformista e reduzir reformas que na teoria poderiam conduzir a mudanças de vulto na situação econômica. Se a montanha vai gerar um rato, os gatos continuarão soltos e o país não sairá do sufoco.

Tome-se a reforma da Previdência Social. Os custos de uma necessária redução de despesas cairão sobre os ombros dos aposentados e seus benefícios, a começar pelo tempo de idade dos que adquirem o direito de parar de trabalhar. Mas continuando a valer as atuais regras do jogo, logo a Previdência Social explodirá as contas públicas e levará o país à falência. Os dois lados permanecem irredutíveis. Se as coisas ficarem como estão, o inevitável aumento de impostos alimentará a inflação, o desemprego e a estagnação econômica, mas se a conta for canalizada para os assalariados, mais cruel se tornará a retomada do crescimento.

Dividir o sacrifício entre empresários e trabalhadores pode dar certo na teoria, mas seria preciso coragem e vontade política dos dois lados, bem como imaginação por parte do governo, produtos em falta nas prateleiras da política econômica. A presidente Dilma gira em círculos, importando menos se dá ouvidos a Joaquim Levy, a Nelson Barbosa ou a nenhum. Ambos são faces da mesma moeda, se não aparecer uma liderança capaz de enquadrá-los. Madame poderia exercer esse papel, mas tanto o empresariado quanto as centrais sindicais desconfiam dela. Até o PT mostra-se dividido.

Quando se fala em reforma trabalhista, leia-se a redução de direitos sociais substituídos pela livre negociação entre patrões e empregados. Na realidade, o diálogo entre a guilhotina e o pescoço.

Carlos Chagas

Democratizar ou popularizar?

Numa de minhas peregrinações pela Índia, assisti a uma apresentação de música clássica que durou a noite inteira, no bairro Mylapore, em Madras, que parecia o labirinto de uma favela. Rodamos horas num emaranhado de ruelas, deixamos o táxi e caminhamos até o local do concerto. “Não queremos que qualquer um descubra este lugar!”, me disse o diretor do Instituto de Música Carnática da Índia.

Lá, a música é como a oração num templo; não se vende ingresso. Uma cultura elitista? A palavra não se aplica. É a cultura da preservação como conceito, que não se baseia no consumismo.

Aqui, hoje, a música clássica parece uma arte em extinção, fora do nosso dia a dia — mesmo nas elites. Quem, no mais alto meio social, político e cultural, aceita dizer que desconhece Picasso? Mas não se tem pudor em afirmar que não conhece e não entende Stravinsky, Debussy... o que dirá Claudio Santoro!

A obra de arte, em sua manifestação pura — das artes cênicas ao cinema —, não traz garantia de retorno fácil e imediato. É um bem da humanidade. Quem abraça essa vertente é um escolhido, um predestinado. A música-arte sofre ainda mais porque não representa uma commodity e não é um objeto a ser vendido, exibido numa galeria, coleção pessoal ou museu. É usufruída como o ar que se respira, o alimento da alma. Quem tem a chance deste deleite é bem aventurado.


Por isso, devemos democratizar a arte sem popularizá-la. Democratizar é torná-la acessível ao maior número possível. Já popularizá-la implica apor uma nova roupagem — usando qualquer método para torná-la mais palatável? Deturpando–a?

Num país que enfoca prioritariamente a cultura de massa e o resultado rápido e populista, tudo o que não traz esse retorno vai sendo rotulado de “elitista”, perdendo seu lugar como arte e educação. Nossa cultura é diversificada, tem de ser encarada como tal — e nivelar por baixo não acrescenta nada.

A música clássica continua viva, embora pareça submergir como um Titanic. Fervilha, em sua existência como música-museu e também música-invenção. Matéria efêmera, necessita do intérprete para chegar ao ouvinte, alguém que acredite que a música, para continuar a ser uma arte viva, precisa ser continuamente criada. O intérprete não pode se tornar apenas um representante vivo de compositores mortos.

Estou investindo num inusitado formato: o projeto Desmistificando a Música Contemporânea. Passo minha experiência única e pessoal por meio de palavra, música, imagem cênica e vídeo. Estou alcançando crianças e espectadores de diversas camadas sociais e lugares diversos da cidade. Quero provocar a curiosidade do espectador e ampliar sua experiência perceptiva e cognitiva. Stravinsky e Cage para quem nunca os ouviu — isso é delirantemente bom de fazer!

Precisamos de espetáculos destinados não só ao deleite do público em geral mas que provoquem, instiguem, lembrando os audaciosos artistas que fizeram a arte avançar; que tragam à luz fatos desconhecidos, despertando a curiosidade pela música contemporânea. Há que enriquecer a cadeia de produção artística, acreditando na capacidade de ousar nas novas gerações. É isso — ou é ficar eternamente preso no círculo vicioso da arte popularizada e unicamente voltada para o consumo imediato.

Jocy de Oliveira

Canibalização da pobreza

O Brasil em crise, e os nossos zilionários calados. Quando a vida aperta, os pobres gritam, e os ricos se calam, diz um ditado. Escrevi algumas vezes que a tradição brasileira de “políticas públicas” inspirava-se na “caridade”. Numa virtude teologal que, ao lado da fé e da esperança, faz parte de um quadro religioso. O resultado é uma sociedade na qual cada qual e todos sabem o seu lugar e tanto os ricos quanto os ideologicamente iluminados continuam falando dos pobres, mas garantindo suas famílias.
 
A caridade tem sido implacavelmente canibalizada pela política do dar para receber. O resultado é uma enorme sociedade pelo governo. Nosso surto petrolífero não resultou na filantropia de uma Fundação Rockefeller ou Ford, mas numa ponte amigável entre políticos e operadores organizados para locupletarem-se, debaixo da velha fachada de remediar uma desigualdade que os programas do governo perpetuam.

Para 2016, um desafio: definir o limite de um adjetivo

O problema de 2015 parece complexo. Mas não. O grande arcano do ano em que o Brasil parou é a figura jurídica adjetivada.

Nossa democracia se esbate, convulsamente, pelos limites possíveis do que um adjetivo confere a um substantivo, em termos de extensão legal, ética, comercial, etc.

Antes de entrar no direito: vamos aos tantos e tamanhos problemas do que é adjetivar algo. Vejamos o termo “amigo do presidente”. Temos um blog homônimo, a defender Lula.

Aí depara-se com aquele lance de que ser amigo do presidente Lula pode gerar sinônimo de possibilidades ilimitadas. Lembremos do cartaz que Lula mandara afixar na portaria do Palácio do Planalto, dando acesso irrestrito a seu “amigo”, ora preso pela Lava Jato. “O sr. José Carlos Bumlai deverá ter prioridade de atendimento na portaria Principal do Palácio do Planalto, devendo ser encaminhado ao local de destino, após prévio contato telefônico, em qualquer tempo e qualquer circunstância”.

Que problemão complexo! Quais os limites de ser amigo de presidente? O Brasil ainda não respondeu.

Outro problema de adjetivação: delação premiada.

A lei 8.072 de 1990, é uma das varias leis que prevêem o dispositivo da delação premiada. Em seu artigo 8º, parágrafo único prevê que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando o seu desmantelamento, terá pena reduzida de um a dois terços”.

E se o delator premiado mentiu em uma dessas delações, ou omitiu fatos, que mais a frente trouxe? Como confiar nele?

Que problemão complexo! Quais os limites da delação premiada meia-confecção, feita de meias-verdades? O Brasil ainda não respondeu.

Vejamos outra coisa: outras duas figuras jurídicas adjetivadas, o chamado “crime continuado” e o “foro privilegiado”.

Vejamos: para solicitar a prisão do senador Delcídio Amaral ao STF, a Procuradoria-Geral da República argumentou que havia uma ação criminosa continuada do senador no sentido de obstruir as investigações da Lava Jato.

Mas o artigo 53 da Constituição, por exemplo, prevê que um parlamentar só pode ser preso se for pego em flagrante cometendo crime inafiançável – ou seja, para o qual não está prevista a possibilidade de pagamento de fiança para obter a liberdade.

Que problemão complexo! Quais os limites do “crime continuado” e do “foro privilegiado”? O Brasil ainda não respondeu.

Agora a meu ver o problemão maior, e que também leva adjetivo: o mandado de busca coletivo.

As autoridades que brilhantemente prendem ladrões na Lava Jato têm defendido o mandado de busca coletivo.

Digamos: um só serve para debulhar todas as propriedades do banqueiro André Esteves, por exemplo, preso na Lava Jato.

Vejamos: em 2014 fuzileiros navais fizeram buscas em residências cariocas em busca de drogas. A Justiça expediu mandados de busca e apreensão para fuzileiros vasculharem residências no Complexo da Maré, um conjunto de bairros populares do Rio de Janeiro.

Vejam um extrato que retirei da mídia:
“…fuzileiros navais já têm um mapeamento completo da Maré, incluindo as facções criminosas que atuam na região. Segundo ela, as tropas das Forças Armadas que vão atuar na ocupação das 15 comunidades do Complexo da Maré devem contar com o respaldo de mandados de busca e apreensão coletivos para permitir a localização de drogas e armas durante o cerco, previsto para ser colocado em prática no início de abril. A possível expedição pela Justiça Militar dos mandados coletivos, explicou a procuradora, deve-se à dificuldade de localizar endereços em meio ao aglomerado de casas erguidas em becos, sem numeração definida….”
Que problemão complexo! Quais os limites do mandado de busca coletivo? O Brasil ainda não respondeu.
Claudio Tognolli