quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Supremo jeitinho

‘Quando a política penetra no recinto dos tribunais, a Justiça se retira por alguma porta.’ A citação do estadista francês François Pierre Guizot (1787-1874) circulou com intensidade nas redes sociais na semana em que nosso STF fez uma heterodoxa interpretação da lei que veda um réu estar na linha sucessão da Presidência, separando a pessoa do cargo. Quando o que pugnava o MPF era exatamente o contrário, uma vez que deve ser considerada a ficha (limpa, há de se supor) da pessoa para o preenchimento de um cargo na República. E fica a dúvida expressa de nossa insegurança jurídica: a suspeição da pessoa não atinge o cargo que ocupa?

Sem falar nos dois pesos, duas medidas do julgamento anterior de impedimento do cargo e do mandato do presidente da Câmara. Se faz parte da atribuição da presidência do Senado a prerrogativa de substituir o presidente da República, não pode estar no cargo quem não tenha esta possibilidade. Simples assim.
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O resto é jeitinho, torção e distorção da letra da lei. A curva de Moebius de nosso DNA cultural que nos faz tomar o verso pelo reverso, o real pela ficção, a paródia pela pastiche. A única forma de sairmos desta miséria política seria refundar a República ou restaurar o parlamentarismo monárquico, como já defendem líderes de alguns movimentos contra a corrupção. Pois, desde instaurada, a República prometeu uma Federação que nunca entregou aos cidadãos, revelando-se um mero golpe contra a monarquia constitucional que desfrutamos por mais de meio século com estabilidade política, crescimento econômico e desenvolvimento social.

Afinal, quem não sabe que no Império o Brasil era mais rico que os Estados Unidos. Quando fazendeiros da nobreza rural escravagista, descontentes com a sonegada indenização pela Abolição da Escravatura, juntaram-se com militares revoltados do Exército, vindos da Guerra do Paraguai, pelo maior prestígio da Armada, e positivistas fraudadores da Física Social de Auguste Comte derrubaram a monarquia constitucional parlamentarista para implantar uma República tupiniquim.

Aliás, seu lema trazia a Ordem como base, o Progresso como fim, mas suprimiu deliberadamente o princípio do Amor (no sentido do ágape = justiça) do tríptico original do pensador francês. Era o fim da oportunidade histórica de correção de nosso atraso colonial com que nos legaram o destino de tropicália, onde abaixo da linha do Equador não havia pecado e a moral saía de férias, segundo o vaticínio de Gaspar Barléu. Se nosso inaugural batismo de cultura do jeitinho, de relativismo moral dominante e descompromisso atávico com a lei foi a longeva “justificação” da escravatura, desde o Brasil Colônia, a queda do Império que a aboliu foi o segundo momento, o crisma, por assim dizer, de nosso contrato social pela impunidade e frouxidão moral. Pois os valores morais legados pelos portugueses foram tão corrompidos com a selvageria da colonização quanto os valores morais da República destituída de justiça como seu princípio dignificante. Vide o seriado “The Crown”, ora em exibição pelo canal Netflix.

Um dos momentos dignos de nota para a situação de miséria de nossa cultura política é quando a rainha se recorda das lições sobre a Constituição britânica e as normas de relacionamento da Coroa com o Parlamento, da chefia de Estado, símbolo da nação inglesa, com a chefia de governo, função do então poderoso Winston Churchill como primeiro-ministro. A primeira como função dignificante da Coroa para a perpetuação da civilização inglesa e a segunda como função eficiente do Parlamento para dar o melhor destino ao Orçamento público formado pelos impostos arrecadados do povo.

Pois não sairemos desta crise política, econômica e social sem superar este estágio primário de barbárie pela descrença na Justiça, sem enfrentarmos uma revolução moral que se exige sobretudo de nossas ditas elites sociais. Estas que chamo de agentes de cidadania e que não conseguem convergir para uma agenda estratégica para o país como a reforma política e das instituições, razão e gargalo maior de nossa miséria civilizatória.

Jorge Maranhão

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