sábado, 17 de dezembro de 2016

Poder comprado: a lista da Odebreht e o coronel Dagoberto

Acabo de ouvir que a ministra Carmen Lúcia cancelou as comemorações de fim de ano no Supremo. O tempo fecha em Brasília e redondezas. Os dias finais de 2016 não poderiam ser mais inquietantes e melancólicos para homens e mulheres de bem e honrados no Brasil. Sim, mesmo que os escândalos quase diários insistam em apontar na direção oposta, sigo na crença de que “gente de bem”, como dizia meu falecido pai, existe ainda – e em boa quantidade – espalhada por aí, embora cada vez mais silenciosa e escondida. Tomada, talvez, por aquele sentimento terrível que Rui Barbosa antecipou em palavras proféticas na sua época: “...de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos maus, o homem chega a rir-se da honra, desanimar-se da justiça e ter vergonha de ser honesto”.

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Admito que possa estar enganado, mas o fato é: levando em conta o conselho de que “é preciso comparar”, repetido pelo garoto sueco Ingemar, personagem central do “cult” cinematográfico “Minha Vida de Cachorro”, não recordo - na vida pessoal e profissional de muitas décadas de coberturas jornalísticas de tantos e tão sucessivos episódios de malfeitos políticos e governamentais - nada comparável em deslavada desonra e enxovalhamento moral, aos fatos clamorosos desta antepenúltima semana do ano. Nem lembro ter visto a sociedade brasileira tão duramente atingida por esta sensação perversa de que falava o notável jurista baiano, quanto agora: em seguida à divulgação da primeira lista de nomes de pol&iacut e;ticos, governantes, ministros e ex-ministros de alto coturno do mando nacional, “dengados” pela Odebrecht e seus tentáculos empresariais na área petroquímica – acompanhados de suas respectivas, acabrunhantes e desmoralizantes alcunhas - , a partir da delação premiada de Claudio Melo Filho, ex-executivo da maior empreiteira da América Latina. Que demonstra, cabalmente, ter feito a sua opção de crescimento e sucesso privado, apostando na corrupção. No controle do poder público à partir de políticos e governantes venais.

A memória e o convite à comparação conduzem o jornalista a um mergulho nos anos 70, época do chamado “milagre brasileiro”, com Delfim Neto no comando da Economia.

De férias no Jornal do Brasil, eis que desembarco com Margarida mais uma vez em Montevidéu: a airosa e acolhedora capital do Uruguai onde costumava descansar e rever exilados políticos acolhidos na beira do Rio da Prata, depois do ataque civil-militar que derrubou o governo democrático de João Goulart no Brasil, em 1964. Entre eles, dois se tornaram especiais amigos. Um deles, o jornalista alagoano Paulo Cavalcante Valente, que ouvi pessoalmente Neuzinha, filha do ex-governador Leonel Brizola, definir como “o mais firme e mais leal amigo de meu pai”. E que dona Neuza, mulher de Brizola , honrada e destemida ex-primeira dama do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, chamava de “Doutor Paulo”.

O outro é o falecido coronel Dagoberto Rodrigues, ex-chefe do Departamento de Correios e Telégrafos (DCT), que no governo Juscelino Kubitscheck, às vésperas da inauguração de Brasília, funcionava como uma espécie de Ministério das Comunicações e, no período de Jango, conforme revela Fernando Gabeira em um de seus livros de relatos da época, era também importante reduto de articulação política na definição de estratégias de resistência ao golpe.

Mais que um estrategista militar e político, intelectual culto e brilhante, figura afável e sem arrogância (apesar do grande poder que teve nas mãos à época), Dagoberto Rodrigues foi – nos governos aos quais serviu e no exílio – uma figura exemplar de homem público. Foi protagonista de um dos episódios mais dignificantes e exemplares no terreno da ética na gestão da coisa pública no país, narrado em um dos capítulos mais empolgantes do livro “O Dia que Getúlio Matou Allende”, do jornalista Flávio Tavares. Algo a ser lembrado e exaltado em dias de tanta indignidade.

Conta Tavares que a visita de Eisenhower a Brasília foi a antecipada glória de Juscelino: até os telefones provisórios da “Casa Branca em trânsito” funcionaram com perfeição. Mas o presidente brasileiro não mandou alterar a licitação em curso para implantação do sistema de telefonia da capital em construção, como pretendia a ITT, gigante das telecomunicações nos Estados Unidos. A multinacional decidiu então mandar ao Brasil ninguém menos que Henri Kissinger, seu melhor negociador na época , “para tentar modificar os resultados e assumir a central telefônica , obra de “interesse estratégico”, cuja condução fora entregue por Juscelino a Dagoberto, então jovem oficial engenheiro do Exército, a quem o presidente dera plenos poderes.

Dagoberto ouviu o negociador “durante quase uma hora, no Rio, em longa e histórica conversa, narrada no livro do jornalista gaúcho. O que interessa aqui é registrar: a certa altura, sem condições de equiparar-se aos suecos nos prazos de entregas do sistema de telefonia em plena operação, Kissinger apelou para a sua notória habilidade maior: disse que estava disposto a conceder tudo e, com um jeito suave de quem conhece o caminho do êxito, perguntou quanto teria que pagar, além do contrato, para obter o combinado. Quanto? Quanto?”.

-Please, can you repeat? – perguntou Dagoberto. E o negociador repetiu lentamente, com um sorriso de cumplicidade. Era o suficiente. A deixa para o suborno estava no ar, conta Flavio Tavares. Dagoberto Rodrigues deu por encerrada a conversa, levantou-se da cadeira e não poderia ter sido mais claro e direto na reação.“Levante-se e saia. Fora! Ponha-se na rua agora mesmo e nunca mais volte a uma repartição brasileira!”.

Esta parte está no livro . Outra parte deste caso, ninguém me contou. Eu vi: anos depois, Kissinger virou o todo poderoso negociador do governo de Richard Nixon, de triste memória. E o golpe que derrubou Jango, levou Dagoberto ao duro e doloroso exílio de quase 15 anos. Em um dos nossos muitos encontros, quando o entrevistava para o JB, percebi que em sua modesta casa no Barrio Viejo de Montevidéu, ele não tinha sequer um aparelho de telefone instalado.

Ele partiu há anos, mas seus filhos, netos e amigos que andam por aí, se orgulham dele. Neste final de 2016, faço votos de que os alcunhados da lista da Odebrecht paguem com rigor pelos malfeitos, e que o exemplo de Dagoberto Rodrigues seja o que frutifique para o próximo e os futuros anos do Brasil.

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