domingo, 4 de dezembro de 2016

'O partido deixou para mim o Iphan'

Para o presidente do Senado, o sistema político brasileiro está falido, e a legislação eleitoral está decrépita. Assim, defende uma “radical reforma político-eleitoral”. O senador acerta no diagnóstico, mas receita aspirina para pneumonia.

Número de partidos, voto obrigatório, voto distrital e outros dispositivos que compõem o debate da reforma são relevantes, é claro. Mas, para além da crise de representação, que ocorre também em outras democracias consolidadas, no caso brasileiro há agravantes importantes.

É exemplar o caso do edifício Ladeira da Barra, em Salvador, que causou a demissão de dois ministros.

“O partido deixou para mim o Iphan. Queria outro órgão, mas no momento não tinha.” (Deputado Pastor Luciano, PMB-BA, no GLOBO)

O que pode interessar a um deputado federal a indicação do superintendente de um órgão técnico como o do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)? É da área o deputado? Não, é pastor da Igreja Internacional da Graça de Deus.


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O tráfico de influências é rotina em serviços de aprovação de obras e em governos de todos os matizes. Com quadros técnicos desprestigiados e legislação confusa, a nomeação política de um superintendente pode ser um negócio. Mas é uma minúcia, em vista do arcabouço legal construído nos últimos tempos.

Sucessivas leis têm produzido crescente embaralhamento na relação entre políticos e Estado, o que facilita a apropriação privada do que é público e lhe dá foros de legalidade. Exemplifica-se nas regras que regem a licitação de obras públicas.

Como se sabe, em 1998 foi criado um regime próprio para a Petrobras, permitindo licitar obras sem projeto. Deu no que deu. Mas, com o anúncio da Copa do Mundo, um manancial de medidas provisórias, transformadas em lei, estendeu esse regime, chamado por Contratação Integrada/RDC, para estádios (2011), obras do PAC (2012), o Minha Casa Minha Vida e equipamentos de saúde (2013) e, afinal, para todas as obras públicas, federais, estaduais e municipais (2015) e para as estatais (2016). Assim, superfaturamento, prazos dilatados e baixa qualidade das obras são a tônica.

Formatou-se um verdadeiro sistema integrado — leis, políticos, gestores, empreiteiras —, que se constitui em importante razão para o divórcio entre políticos e sociedade, que mina a representação política. A mudança eleitoral não fará a reconciliação.

Agora, enquanto o país se comovia com a tragédia da Chape e a Câmara dos Deputados laborava no pântano, descaracterizando o projeto anticorrupção, o Senado pôs em pauta totalmente alterado o PLS 559/13, concebido para modernizar a Lei de Licitações 8.666/93. Com conceitos confusos, sugerindo uma ideia e adotando sua contrária, o que já era absurdo é aprofundado nessa desfiguração.

A condenada Contratação Integrada/RDC, denunciada pelas entidades da arquitetura e da engenharia e pelos órgãos técnicos de contas do governo, serviu de escada para outra modalidade ainda mais permissiva, a Contratação Semi-Integrada, em que a empreiteira continua fazendo promiscuamente o projeto e a obra; mas agora o preço já não será fixo, mas unitário, e, portanto, indefinido. Mas não só. Entre outras, foi inventada uma modalidade em que o governante negocia com uma empreiteira o projeto e a obra e, depois, dá 20 dias para que alguma outra empresa ofereça mais vantagens. Efetiva-se o conluio.

O que esteve em pauta na Câmara é uma anistia aos crimes anteriores. O que está em pauta no Senado é uma anistia prévia às falcatruas. Passando, não haverá mais malversação de recursos públicos e obra malfeita. A lei cobre tudo. A Lava-Jato passará para a história como um conto infantil. A entrega do Iphan, angelical.

É nesse cipoal que a ideia de reforma político-eleitoral perde densidade. É maior, mais ampla, é mais profunda a crise.
Sérgio Magalhães

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