segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Falsas notícias: o fracasso da verdade no ano de 2016

“Pós-verdade: fazer referência ou denotar circunstâncias em que fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que apelos à emoção e a convicções pessoais.”

A eleição de Donald Trump e o referendo que aprovou o Brexit estão por trás da escolha de pós-verdade como palavra de 2016 pelo venerando dicionário Oxford da língua inglesa.

Mas isto se passou no longínquo mês de novembro. Quando 2017 acordar, já é possível escolher uma palavra que perdeu sua artilharia semântica: Orwelliano. O adjetivo foi cunhado no pós-guerra com a publicação do romance 1984, a distopia totalitária imaginada por George Orwell, em que o protagonista reescreve a história para que a memória seja derrotada.


Os embustes são parte da história do jornalismo”, diz Schneider. “A diferença hoje é a rapidez da propagação e o fato de que há tecnologia e interesse econômico em maximizar a distribuição
 Howard Schneider 



Os fatos sempre viveram sob assalto de ditadores, demagogos e comerciantes de biotônicos inócuos ou de guerras devastadoras com base em fabricações. Mas 2016 foi o ano em que a verdade foi derrotada na urna de dois faróis da democracia ocidental, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Fatos mundanos, aritmética simples foram omitidos ou falsificados para exacerbar o sentimento anti-imigrante entre os britânicos. Mas a realidade voltou para puxar a perna dos angustiados eleitores do Brexit, como demonstra o moroso processo de desligamento da União Europeia.

Nos EUA, o ano termina com um cenário mais assustador. Mesmo depois de eleito, Donald Trump continuou a mentir com a aprovação tácita de parte da mídia e da minoria que votou nele. E ele conta com um fenômeno que nasceu na era Nixon, mas foi articulado e cozinhado nas duas últimas décadas por seu ex-assessor de campanha, Roger Ailes, fundador da Fox News: o antijornalismo. A mensagem da mídia favorita dos eleitores de Trump é: todos os jornalistas mentem, menos os que nós empregamos. Ailes foi demitido em julho por múltiplas acusações de assédio sexual, mas sua usina de fabricações continua intocada e facilitadora do recém-eleito Trump, Editor-Chefe dos Estados Unidos do Pensamento Mágico.

O principal repórter político da Fox, o veterano Chris Wallace, nem piscou, muito menos contestou quando o presidente eleito afirmou o seguinte, no último domingo: “minha vitória foi uma das maiores da história”. Fato: a vitória de Donald Trump em número de delegados está em 48º lugar em 58 eleições presidenciais no Colégio Eleitoral. Ele obteve a maior derrota no voto popular da história da república. Hillary Clinton tem, até este momento, uma vantagem de 2,85 milhões de votos dos norte-americanos.

Além de ter sido decidida por 80 mil eleitores em três Estados, num país de 300 milhões de habitantes, a campanha presidencial de 2016 marcou um descolamento de fatos sem precedentes turbinado pela explosão de fake news, as falsas notícias veiculadas pelo duopólio digital planetário do Facebook e do Google. A epidemia de desinformação mobilizou até o Papa Francisco, que comparou o consumo de fake news a comer cocô. Mas o apetite pela iguaria escatológica não será diminuído com sermões ou ressentimento ideológico. Sim, os conteúdos falsos anti-Hillary Clinton tiveram muito maior distribuição no Facebook do que os críticos ao presidente eleito.

Na quinta-feira, o Facebook anunciou uma série de medidas para combater a veiculação de fake news. Durante um mês, Mark Zuckerberg tentou desconversar, insistindo na neutralidade de sua rede social com mais de 1,8 bilhão de membros ativos. As novas medidas incluem um recurso para o internauta levantar suspeita sobre um conteúdo e a terceirização do fact checking para uma coalizão que inclui a Associated Press, ABC News e o Washington Post. É cedo para avaliar a eficácia das medidas, mas elas implicam a aceitação do óbvio: o Facebook é uma companhia de mídia.

Até o fato de usarmos a expressão pós-verdade e não mentira, lorota, embuste ou ficção aponta para a desejada derrota da memória tramada no romance de Orwell. O que fazer? Já passamos da complacência travestida de postura libertária como “todo filtro é censura”? Quando uma quase tragédia ocorre dentro de uma popular pizzaria de Washington, invadida por um homem armado que acreditou numa falsa notícia viral sobre Hillary envolvida com tráfico sexual de menores, é o caso de avaliar as consequências do fenômeno sobre a democracia?

Depois da eleição de novembro, uma escola de jornalismo no belo e sonolento câmpus da Universidade de Stony Brook, em Long Island, Nova York, recebeu telefonemas vários países, com pedidos de informação sobre um curso, conta o veterano jornalista e editor Howard Schneider, diretor da escola. Quando o Facebook e o Twitter eram ainda recém-nascidos, Schneider, com décadas de carreira analógica, ensinava Ética em Jornalismo e criou um novo curso na escola de Jornalismo da Universidade de Stony Brook, em Long Island, a 90 minutos de Manhattan. Ele já ensinava Ética em Jornalismo, mas notou que seus alunos pareciam perdidos com o aumento de fluxo de informação digital e demonstravam um crescente cinismo sobre a credibilidade de fontes. Com o apoio de acadêmicos de outras área no câmpus, Schneider fundou o centro de News Literacy de Stony Brook, uma espécie de alfabetização adulta em consumo de notícias.

Uma década e dez mil estudantes depois, Schneider diz ao Estado que o alvo ideal do curso de News Literacy tem 12 anos. “É mais difícil incutir ceticismo e capacidade crítica numa geração que já chega à universidade tendo consumido tanta mídia,” diz.

O centro de Stony Brook apoia um programa piloto numa escola pública de ensino médio do bairro de Coney Island, no Brooklyn, em que alunos desde a 6ª série – média de 11 anos – “se alfabetizam” em jornalismo com ajuda de materiais multimídia fornecidos pela equipe de Schneider. Eles são estimulados a questionar fatos, conferir origem da informação e até avaliar se as fontes têm interesse em se beneficiar desta ou daquela versão.

“Os embustes são parte da história do jornalismo”, diz Schneider. “A diferença hoje é a rapidez da propagação e o fato de que há tecnologia e interesse econômico em maximizar a distribuição. Há duas frentes, a ideológica e o interesse financeiro em monetizar conteúdo online”, conclui. A este cenário, ele acrescenta o fato de que uma população cada vez maior se informa através da rede social sem contato com as fontes e a explosão de polarização política nos Estados Unidos, que ele chama de hiperpartidarismo. O jornalista expressa também alguma simpatia pelo Facebook e o Google. “Mudar algoritmos e filtrar conteúdo apenas não resolve o problema”, argumenta. “O filtro mais poderoso é o público alerta e educado para distinguir fato de ficção.”

Uma pesquisa feita pelo BuzzFeed descobriu dezenas de websites difusores de fake news em Veles, cidade de menos de 50 mil habitantes na Macedônia. Os redatores produziam conteúdo que gerava mais dinheiro em hits, como notícias sobre saúde ou, nos websites políticos, notícias pró Trump ou anti-Hillary. Não se tratava de ideologia, e sim de monetização da ferramenta AdSense de anúncios do Google.

Há outro fator que facilita a propagação de embustes como a notícia de que Hillary Clinton era traficante de sexo. Experiências feitas por psicólogos mostram que teorias conspiratórias triunfam mais entre pessoas vulneráveis – aqueles que não se sentem no controle de seu destino.

Não é coincidência as mentiras notórias do presidente eleito pouco importarem a boa parte do seu eleitorado, trabalhadores brancos em indústrias em declínio que se sentem marginalizados com a crescente diversificação étnica do país e a transformação tecnológica da economia. Quando o seu horizonte parece drasticamente reduzido, é compreensível a atração e o consolo de uma voz que oferece soluções simples (falsas) para problemas complexos. Quem passou 30 anos ganhando um salário de classe média numa mina de carvão que acaba de ser fechada, prefere ouvir a fantasia de que um homem vai colocar o mercado de energia de joelhos para reabrir a mina e tornar o carvão uma fonte de energia viável.

É impossível lidar com a desinformação global de olhos fechados para 15 anos de investimento de Vladimir Putin em propaganda em múltiplos países. Ainda estamos navegando no escuro sobre o que descobriu a inteligência norte-americana sobre o hacking russo da eleição. Sabemos que contou com participação ativa do FSB (sucessor da KGB) e do GRU (o serviço de inteligência militar) – às vezes, comicamente hackeando a sede do Partido Democrata ao mesmo tempo, como um gatuno sem notar a presença do outro numa joalheria escura. Sabemos que Vladimir Putin queria punir Hillary Clinton, desacreditar a eleição nos EUA e talvez até tenha se surpreendido com a eleição de Donald Trump, um resultado que satisfaz o Kremlin.

Até novembro, o ecossistema de falsificação e propaganda era observado à distância pelos norte-americanos, como instrumento de ditadores ou de uma minoria extremista doméstica. Até que acordaram no dia 9 de novembro e começaram a compreender que o autoritarismo da desinformação foi legitimado nas urnas. A ideia de que comunidades compartilham de fatos como o índice de emprego, ou o aumento da temperatura média é desafiada diariamente. Mas uma nova pesquisa do Pew Research Center revela fadiga do caos informativo. Dois terços dos adultos consultados pelo disseram que notícias fabricadas provocam confusão e têm impacto na vida do país. Um sinal de que o telefone deve continuar tocando no câmpus de Stony Brook.

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