segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A morte de Fidel

No dia 1º de janeiro de 1959, ao saber da notícia de que Fulgencio Batista tinha fugido de Cuba, saí com alguns amigos latino-americanos pelas ruas de Paris para comemorar o fato. A vitória de Fidel Castro e dos barbudos do Movimento 26 de Julho contra a ditadura parecia uma ação de justiça absoluta e uma proeza comparável à de Robin Hood. O líder cubano havia prometido uma nova era de liberdade para seu país e para a América Latina, e a transformação dos quartéis em escolas para os filhos dos camponeses cubanos se mostrava como um excelente começo.

Em novembro de 1962 fui a Cuba pela primeira vez, enviado pela Rádio-Televisão Francesa, em plena Crise dos Mísseis. O que vi e ouvi na semana que passei ali – os Sabres norte-americanos sobrevoando o Malecón de Havana e os adolescentes que manejavam os canhões antiaéreos chamados bocachicas [bocas pequenas] apontando-os para o céu, a gigantesca mobilização popular contra a invasão que parecia iminente, o estribilho que os milicianos entoavam em coro nas ruas (“Nikita, mariquita, lo que se da no se quita”) [“Nikita, mariquinhas, o que se dá não se tira”], em protesto contra a devolução dos mísseis – redobrou meu entusiasmo e minha solidariedade com a Revolução. Entrei em uma longa fila para doar sangue, e Hilda Gadea, a primeira mulher de Che Guevara, que era peruana, me apresentou a Haydée Santamaría, que dirigia a Casa de las Américas. Esta me integrou a um Comitê de Escritores, com o qual me reuni cinco vezes na capital cubana na década de sessenta. Ao longo desses dez anos, meu entusiasmo por Fidel e pela Revolução foi se enfraquecendo, até se transformar em críticas abertas e, depois, em uma ruptura definitiva, por ocasião do caso Padilla.

Minha primeira decepção e as primeiras dúvidas (“Será que não me enganei?”) aconteceram em meados dos anos sessenta, quando foram criadas as UMAPs –Unidades Militares de Ajuda à Produção –, um eufemismo para aquilo que eram, na verdade, campos de concentração onde o Governo cubano prendeu, misturados, dissidentes, criminosos comuns e homossexuais. Entre estes últimos estavam vários rapazes e moças de um grupo literário e artístico chamado El Puente [a ponte], dirigido pelo poeta José Mario, que eu conhecia. Era uma visível injustiça, pois aqueles jovens eram todos revolucionários, confiando em que a Revolução traria justiça social não só para os operários e camponeses, mas também para as minorias sexuais discriminadas. Ainda vítima da famosa chantagem – “Não dar armas ao inimigo” –, engoli as minhas dúvidas e escrevi uma carta reservada a Fidel, detalhando minha perplexidade em relação ao que estava acontecendo. Ele não respondeu, mas, pouco tempo depois, recebi um convite para um encontro com ele.

Foi a única vez em que estive com Fidel Castro; não conversamos, pois ele não era uma pessoa que admitia interlocutores, apenas ouvintes. Mas durante as 12 horas em que o escutamos, das oito da noite às oito da manhã seguinte, os 10 escritores que participaram do encontro ficamos muito impressionados com aquela força da natureza, aquele mito vivo, que era o gigante cubano. Falava sem parar e sem ouvir, contava casos da serra Maestra saltando sobre a mesa e fazia adivinhações sobre Che, que ainda estava desaparecido e não se sabia em qual lugar da América reapareceria à frente de uma nova guerrilha. Reconheceu que algumas injustiças tinham sido cometidas nas UMAPs – disse que seriam corrigidas – e explicou que era preciso compreender as famílias de camponeses, cujos filhos, formados pelas novas escolas, se sentiam às vezes incomodados com os “doentinhos”. Fiquei impressionado, sim, mas não saí dali convencido. Desde então, embora em silêncio, fui percebendo que a realidade era bem inferior ao mito em que Cuba tinha se transformado.

A ruptura sobreveio quando estourou o caso do poeta Heberto Padilla, no começo de 1970. Era um dos melhores poetas cubanos, que largara a poesia para trabalhar pela Revolução, na qual acreditava apaixonadamente. Chegou a ser vice-ministro de Comércio Exterior. Um dia, começou a fazer críticas –bastante amenas – à política cultural do Governo. A partir daí se desencadeou em toda a imprensa uma campanha duríssima contra ele, e Padilla foi preso. Nós, que o conhecíamos e sabíamos de sua lealdade para com a Revolução, escrevemos uma carta – muito respeitosa – a Fidel expressando solidariedade com Padilla. Então, este reapareceu em um ato público, na União dos Escritores, confessando que era agente da CIA e acusando-nos, a nós, que o havíamos defendido, de atuar em favor do imperialismo e de trair a Revolução etc.. Poucos dias depois, assinamos uma carta muito crítica (que eu mesmo redigi) sobre a Revolução Cubana, por meio da qual vários escritores não comunistas, como Jean-Paul Sartre, Susan Sontag, Carlos Fuentes e Alberto Moravia, nos distanciávamos da Revolução que até então tínhamos defendido.

Esse foi um pequeno episódio na história da Revolução Cubana, mas que, para muitas pessoas, como eu, teve um grande significado. A revalorização da cultura democrática, a ideia de que as instituições são mais importantes do que as pessoas para que uma sociedade seja livre, de que sem eleições, sem jornalismo independente e sem direitos humanos é a ditadura que se impõe e vai transformando os cidadãos em robôs, eternizando-se no poder até tomar conta de tudo, afundando no desânimo e asfixiando aqueles que não fazem parte da privilegiada nomenclatura.

Cuba estaria melhor agora, depois dos 57 anos em que Fidel esteve no poder? É um país mais pobre do que a terrível sociedade da qual Batista fugiu naquele 31 de dezembro de 1958, e tem o triste privilégio de ser a ditadura mais longa de que já padeceu o continente americano. Os avanços nos campos da educação e da saúde podem ser verdadeiros, mas não devem ter convencido o povo cubano de uma forma geral, pois a aspiração da imensa maioria da população é fugir para os Estados Unidos, mesmo que para isso tenha de enfrentar tubarões. E o sonho da nomenclatura, agora que já não pode mais viver das benesses da falida Venezuela, é que chegue o dinheiro dos Estados Unidos para salvar a ilha da ruína econômica em que se debate. Já faz tempo que a Revolução deixou de ser o modelo que foi no seu início. De tudo aquilo, resta apenas o doloroso saldo dos milhares de jovens que se entregaram à morte em todas as montanhas da América tentando repetir o feito dos barbudos do Movimento 26 de Julho. Para que serviram tanto sonho e tanto sacrifício? Para reforçar as ditaduras militares e retardar em várias décadas a modernização e a democratização da América Latina.

Ao optar pelo modelo soviético, Fidel Castro garantiu para si o poder absoluto por mais de meio século; mas deixa agora um país em ruínas e um fracasso social, econômico e cultural que parece ter vacinado contra as utopias sociais uma maioria de latino-americanos que, finalmente, após sangrentas revoluções e repressões ferozes, parece estar entendendo que o único progresso verdadeiro é aquele que faz avançar a liberdade ao mesmo tempo que a justiça, pois sem a primeira esta última não passa de um fugaz fogo-fátuo.

Embora esteja convencido de que a história não irá absolver Fidel Castro, não deixo de sentir que junto com ele se vai um sonho que embalou a minha juventude, bem como a de tantos jovens da minha geração, impacientes e impetuosos, que acreditávamos que os fuzis podiam nos levar a queimar etapas e fazer o céu descer mais rápido até se confundir com a terra. Hoje sabemos que isso só acontece nos sonhos e nas fantasias da literatura, e que na vida real, mais áspera e mais crua, o progresso verdadeiro resulta do esforço em comum e deve ser sempre guiado pelo avanço da liberdade e dos direitos humanos, sem os quais não é o paraíso e sim o inferno que se instala neste mundo em que nos coube viver.

Mario Vargas Llosa

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