quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O presidente Renan, da República

Não há, na República brasileira, medalhão mais poderoso que Renan Calheiros. Verdadeiro mandatário do Brasil, ostensivo mandante no país, afronta o Judiciário, manipula o Legislativo para que se conforme de vez em porão para defesa dos interesses individuais de senadores e deputados, subjuga o Executivo e faz com que o Palácio do Planalto trabalhe para ele. E temos aí a cloaca que cavamos para a vida pública entre nós.

Há muitos pais para a criança. De início, Fernando Collor — a origem da compreensão de que, ainda menos que Alagoas, o Brasil pudesse ser uma continental Murici. Depois, Fernando Henrique Cardoso, príncipe do mensalão da reeleição, o intelectual que empoderou Calheiros ao fazê-lo ministro da Justiça. E então vieram Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, os governos petistas, e o paraíso para que Renan Calheiros fosse Renan Calheiros plenamente.

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O senador terá sido — mais que Michel Temer — o oportunista-mor da sociedade entre PT e PMDB e, na prática, o agente que melhor compreendeu o trato entre as organizações e que, portanto, mais recursos acumulou para codificá-lo em linguagem e método. No curso do processo de impeachment, enquanto Eduardo Cunha cuspia seu voo curto de amador, Calheiros, homem voltado para baixo, deu impulso a seu movimento pendular próprio, oscilando de parte a parte, esparramando-se para qual fosse o futuro, ginástica por muitos compreendida como enigmática, mas que outra coisa não foi — justiça seja feita — que transparente. Ele venceu mais uma vez, venceria de qualquer forma — e a geleca moral em que consistiu seu triunfo pode ser resumida na solução inconstitucional que, em apropriada dobradinha com Ricardo Lewandowski, fatiou o gópi contra Dilma.

Não haverá passagem mais significativa do que são Renan Calheiros e o Congresso — que ele, mais do que presidir, governa — do que a crise que o fez declarar, agastado pela histeria bravateira de Gleisi Hoffmann, que intercedera junto ao Supremo Tribunal Federal para que o marido da senadora se livrasse de indiciamento.

A reação imediata do plenário — de espanto, de perplexidade — não se deveu a alguma indignação ante o que se confessara. Não. O faniquito de patriotas como Lindbergh Farias outro não foi que o de um ser traído, manifestação de desespero ao ver exposta ao sol a baixaria do modus operandi daquela gente.

É isso, leitor. Baixaria. A isso se reduziram a vida pública brasileira e a noção de representatividade. Baixaria. Não aquela relativa a costumes e modos, a barracos, mas uma desdobrada em traficância, em pirataria, em troca de favores, em partilha de interesses pessoais.

Todo aquele teatro, todos aqueles ataques entre senadores, que se chamam ao mesmo tempo de vossa excelência e de canalha; todas aquelas diferenças bradadas em suposto prol do debate público e, no entanto, todos (se há exceção, nenhuma capaz de incomodar para além da cena) associados na forma da questão, uma de várias, que os amarra e cala: a tal Polícia Legislativa, equipada para espionagem e contraespionagem, para que existe senão como milícia a serviço de cada um daqueles coronéis — os urbanos, inclusive?

Renan Calheiros quer legislar para coibir o abuso de autoridade — mas é, ele mesmo, a própria encarnação do abuso.

Chegamos, pois, ao dia em que o Supremo se deparou com a chance de normatizar o óbvio: que um réu naquela corte não poderia ser — nem por um instante — presidente da República. Uma questão para aplicação atemporal e impessoal, mas que, naquele momento, projetada a um futuro improvável, ainda assim poderia atingir Calheiros — o segundo na linha sucessória presidencial.

Escrevi “futuro improvável” e explico: embora tenha contra si oito investigações no STF (apenas decorrentes da Lava-Jato) e uma denúncia, esta relativa a episódio de há quase dez anos, ele não é réu em qualquer delas — o Supremo está uma década atrasado em matéria desse senhor e, pois, uma década atrasado em matéria de Brasil — e é certo que não o será enquanto presidir o Senado e puder assumir a cadeira de Temer. Afinal, quando a votação no STF contava com cinco votos a favor da escancarada decência, a depender de apenas um para que batido fosse o martelo, o ministro Dias Toffoli pediu vistas do processo e adiou a decisão.

Era certo — comentado publicamente — que isso aconteceria; falou-se que o Planalto interferira para tanto. Havia só a dúvida sobre que juiz faria o papel. A solução foi coerente, já que Lewandowski não estava presente. E Calheiros venceu mais uma vez — beneficiado por instrumentos constitucionais operados em detrimento do país.

Houve um tempo em que se falava de um baixo clero no Parlamento; mas isso já não faz sentido. É tudo baixo. Uma baixa casta de legisladores em causa própria, cujo líder não poderia ser outro senão Renan Calheiros. Ele — o STF permite — pode assumir a Presidência da República. Mas não precisa, presidente do Brasil de fato que é.

E vocês aí preocupados com Donald Trump e a democracia americana.

Não há passagem mais simbólica de Calheiros e do Congresso que a declaração de que intercedera junto ao STF para que o marido de Gleisi se livrasse de indiciamento.

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