sábado, 26 de novembro de 2016

A possível leveza

Quando acordei meu anjo me sussurrou que pegasse leve. Procurasse ativamente a possível leveza. Mesmo que fosse só por hoje. Pensei logo no tão bonito poema de Manuel Bandeira, “O impossível carinho”: “Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo/ Quero apenas contar-te a minha ternura/ Ah, se em troca de tanta felicidade que me dás/ Eu te pudesse repor/ — Eu soubesse repor —/ No coração despedaçado/ As mais puras alegrias de tua infância”. O impossível carinho tolhia o poeta de dar a quem o amava a possível leveza. — Pode ser essa mesma a essência da leveza que o Anjo me pediu — humildemente! — hoje cedo. Também o Anjo estava triste.

Estudei numa universidade cujo lema — alis grave nil — quer nos ensinar que nada é pesado a quem tem asas. Desejava talvez nos ajudar a deixar virem as asas envergonhadas que se escondem em nós. E atingir a possível leveza no mundo. Esse é um mandamento doce que trago comigo desde então. Mas desaprendi no mundo. E tento reaprender. Foi o que o Anjo me pediu. Mas o mundo, anjo meu, esse em que a leveza aprendida é necessária, anda pesando toneladas desumanas. Não sei botar nos corações despedaçados as mais puras alegrias da infância. Sem as quais a leveza é destroçada pelo que andam fazendo com a vida.


Primeiro seria preciso ter certeza de que a infância dos sem leveza teve alegrias. As de muitos, que conheço, sim. Posso talvez tocá-los com a urgência do Anjo. As de muitos, que não conheço, não. Há os que foram crianças, mas não tiveram infância. Aquele tempo em que o jogo, ao acaso da brincadeira, era inimigo do relógio das obrigações. Quando brincar na rua era o modo certo de estar no mundo. As infâncias atoladas em quartos minúsculos, famílias grandes, fogão apagado, panela vazia, não encontraram na rua ou na escola seu espaço de liberdade. A rua era lugar de tiro, de um lado e outro. A escola, o território da abnegação desassistida, sem meios, o das muito magras esperanças. — Mas mesmo essas crianças jogavam bola de meia e improvisavam bonecas. Enquanto os tiros não decretavam os toques de recolher.

Há também os outros meninos, os das armas. Os que cedo tiveram sangue nas mãos, explorados por adultos que abriam no mundo um curto caminho de poder, de morte aos 20 anos. Vidas poucas, intensas, violentas. Leveza nenhuma. — Será? Em algum lugar muito esquecido do coração? Uma pipa no ar anuncia a polícia. Será que não se lembram de um tempo em que a pipa ensinava a liberdade da asa, para a qual nada é pesado? — Não sei. Queria tanto saber! Porque logo estarão mortos, e a morte, nessas condições, é tudo, menos a leveza. A não ser que Deus os recolha na sua leve mão. Disso não sei mesmo nada.

Não sou dos que atribuem toda a violência daqueles a quem a vida privou de infância à vida má de crianças abandonadas na chuva. Explicação muito fácil, e que tira fora a responsabilidade delas e a nossa nesse abandono. Nem me conto entre os que têm certeza de que menos filhos deteriam a violência. Como se, por mágica, menos crianças diante da panela vazia eliminassem as valas negras, o lixo de vida, a pobreza desesperada. E os tiros. Não, nós os abandonamos. Também não é tudo culpa nossa. Não aprendemos a amar o bastante. É tão difícil o amor. O das crianças sujas. As que cheiram mal.

Chegam às janelas dos nossos carros, que rapidamente fechamos. E também temos razão. Podem estar pedindo comida, podem estar levando relógios. Não se sabe antes. Às vezes ouvimos: “É pra comer, tio...”, e temos medo, e aceleramos o passo. O mundo está violento. Povoado por nós, que amamos de menos, e pelas crianças que não tiveram infância. Como dar a elas as mais puras alegrias de um tempo que não tiveram?

Afastamo-nos depressa, que há perigo na esquina. Alguns de nós levam no coração em fuga a asa inquieta para a qual nada é pesado. O nosso pequeno anjo. Mas anjos, hoje... Temos vergonha da bondade, da possível leveza. Penso no anjo que não tem bem uma hora me pediu — estava triste — que só por hoje fosse leve. Quando me sentei para escrever queria honrar sua tristeza e sua esperança. Afinal, ele se entregou nas minhas mãos. Não deu ordem. (Anjos são doces.) Pediu. Não consegui.

Agora um sabiá urbano, desses que resistem à dominação planetária, pousou na minha janela. E cantou. Sabiás cantaram na minha infância. As mais puras alegrias... Quem sabe voltam? Agora vêm as quatro semanas do Advento. Para quem acredita nisso (para quem não acredita também, de um modo muito misterioso), vai de novo nascer o insistente menino que devia fazer possível o impossível carinho, e levezinha a asa sem peso do amor. Entre o sabiá e o menino pode renascer uma infância. Logo saberemos. Nesse meio tempo, melhor cultivá-la em nós. Ou ele pode, dessa vez, não nos considerar dignos. E ir nascer entre gente melhor.

Marcio Tavares D’amaral 

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