segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Filósofos para quê?

Num sebo dos arredores da Notre Dame encontrei, meio maltratada pelo tempo e o manuseio dos passantes, a primeira edição de Pourquoi des Philosophes? (1957), de Jean-François Revel. Comprei-a e voltei a lê-la, meio século depois da primeira leitura. Este panfleto voltairiano com que Revel iniciou sua carreira literária conserva intacta sua explosiva ferocidade, e talvez ela tenha aumentado porque algumas das figuras com as quais se enfurece, como Heidegger, Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss, se transformaram desde então em referências intelectuais intocáveis.

Como ele mesmo diria depois, este livro foi sua despedida tempestuosa da filosofia. E, aliás, da universidade francesa e de seus professores de ciências humanas, outro de seus alvos, aos quais acusava de estarem muito atrás das universidades norte-americanas e alemãs, meio entorpecidos por favorecimentos mafiosos e por uma retórica cada vez mais incompreensível e insossa. Este livro teve consequências muito proveitosas para os leitores de Revel: tirou-o de um mundo acadêmico onde talvez tivesse vegetado muito longe da atual0idade e o transformou no formidável jornalista e pensador político que seria. Seus artigos e ensaios, com os de Raymond Aron, foram um modelo de lucidez nessa segunda metade do século XX, marcada na França pelo predomínio quase absoluto do marxismo e suas variantes, que ambos enfrentaram com valentia e talento em nome da cultura democrática. Ninguém os substituiu, e sem eles os jornais e revistas franceses parecem ter-se apequenado e entristecido.

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A palavra panfleto tem agora certo tom ignominioso, de texto vulgar, inábil e insultuoso, mas no século XVIII era um gênero criativo e respeitável, de alto nível, do qual se valiam os intelectuais mais ilustres para ventilar suas diferenças. Nessa tradição se inserem muitos dos livros de Revel, como Pourquoi des Philosophes? [“filósofos para quê?”, inédito no Brasil], um ajuste de contas com os pensadores de seu tempo e com a própria filosofia — que, segundo este ensaio, por causa dos descobrimentos científicos, de um lado, e, de outro, da falta de importância e originalidade e do obscurantismo dos filósofos modernos — vai minguando como uma pele de onagro e — o pior — ficando cada vez menos legível. Revel sabia do que falava, tinha um conhecimento profundo dos clássicos gregos e todo o seu livro está repleto de contrastes entre o que significava “filosofar” na Grécia de Platão e Aristóteles ou na Europa de Leibniz, Descartes, Pascal, Kant e Hegel, e o modesto e superespecializado mister (confinado com frequência à linguística) que usurpa seu nome em nossos dias.

Mas não há no livro apenas críticas severas aos filósofos contemporâneos; há também alguns elogios. A Sartre, por exemplo, por O Ser e o Nada, que parece a Revel uma reflexão profunda, de grande audácia especulativa, e a Freud, de quem faz uma exaltação beligerante, sobretudo contra certos psicanalistas, como Jacques Lacan, que, a seu ver, não só banaliza e emaranha grotescamente as ideias de Freud como o utiliza para erguer um vaidoso monumento a si mesmo. Para nós que perdemos muitas horas tentando entender Lacan (sem conseguir), a dura crítica que Revel lhe dedica é alentadora.

Não é o caso, porém, das severas reprimendas a Claude Lévi-Strauss, cujo livroAs Estruturas Elementares do Parentesco Revel questiona desde o princípio, acusando seu autor de ser um bom psicólogo, mas de não oferecer nada do ponto de vista sociológico ao conhecimento sobre o homem primitivo. Ele estende essa asserção ao conjunto dos estudos de Lévi-Strauss sobre as sociedades marginais, com o argumento de que ao reduzir toda a análise a descrever a mentalidade primitiva, concentrando-se em sua intimidade psicológica, ele se desvinculou das obrigações de pesquisar o mais importante do ponto de vista social: por que as instituições da sociedade tradicional tiveram determinado caráter, por que se diferenciavam tanto umas das outras, que necessidades os rituais, crenças e instituições de cada comunidade satisfaziam. A obra de Lévi-Strauss estava ainda em processo de elaboração quanto Revel escreveu este ensaio, e talvez sua avaliação do grande antropólogo fosse outra se ele tivesse tido uma perspectiva mais ampla de sua obra.

No ano de 1971, em razão de uma reedição de Pourquoi des Pourquoi des Philosophes?, Revel escreveu um extenso prólogo passando em revista o que havia ocorrido no âmbito intelectual na França nos onze anos anteriores. Não retificava nada do que havia escrito em 1957 e, pelo contrário, encontrava no “estruturalismo” então em voga as mesmas insuficiências e embustes que havia denunciado nos anos do “existencialismo”. Dirige as críticas mais acerbas a Althusser e a Foucault, sobretudo este último, muito atual desde a publicação deAs Palavras e as Coisas, que tinha declarado que “Sartre era um homem do século XIX” e cujas espalhafatosas afirmações, segundo as quais “as ciências humanas não existem” e “do homem, uma invenção recente, se pode prever o fim próximo”, faziam as delícias dos bistrôs de Saint-Germain. (Também apedrejava policiais e negava a existência da AIDS)

Revel observa que as modas vão arrastando a filosofia a níveis de artificialidade e esoterismo que parecem uma forma de suicídio, começando pela saraivada que os novos filósofos disparam contra o humanismo. Mas o que estimula mais o seu humor sarcástico é a estranha aliança que se dava entre o esnobismo político — leia-se marxismo ou, ainda mais grave, maoísmo — e as especulações mais intrincadas das “teorias” produzidas desenfreadamente pelos literatos e críticos de uma corrente estruturalista que abarcava tantas disciplinas e gêneros que ninguém mais sabia sobre o que escrevia. Nisto leva todos os prêmios a revistaTel Quel, cujo gênio tutelar, o sutil Roland Barthes, acabava de explicar, inaugurando suas palestras no Collège de France, que “a língua é fascista”. A análise de um número especial de Tel Quel feita por Revel, ridiculizando a pretensão dos discípulos de Barthes e Derrida de que suas teorias literárias e experimentos linguísticos serviriam ao proletariado para derrotar a burguesia na batalha de morte em que estão envolvidos, é muito proveitosa. Basta citar uma frase: “A função ideológica da Tel Quel é muito clara: consiste em fabricar uma cultura burguesa apresentando-a como antiburguesa. Pois ela é antiburguesa e proletária na exata medida em que a propriedade de Maria Antonieta, no Petit Trianon, era antimonárquica e camponesa”.

Por cima e por baixo da virulência intelectual que anima este ensaio de Revel, algo permanece atualmente tão válido como então: a nostalgia por uma vida intelectual criativa e responsável, que ajude a ver claramente aquilo que parece confuso, e em que as ideias se confrontem e desempenhem um papel central na busca de soluções para os arrepiantes problemas que o mundo de hoje enfrenta.

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