domingo, 9 de outubro de 2016

Escoando pelo ralo

O prefeito eleito de São Paulo anuncia a venda de imóveis do município para investir em saúde. O governo do Rio de Janeiro, que já vendeu os royalties futuros, quebrou. O governo federal financiará empresas privadas para implantar o saneamento que as públicas não fizeram. É só falta de dinheiro?

A grande cidade é recente, fruto da industrialização; até então, os problemas urbanos eram restritos. A iniciativa urbanística era dos empreendedores privados, muitas vezes a família dos reis. Foi na reforma de Paris, 1853-70, que o Estado assumiu a cidade como instância pública, responsabilizando-se pelas intervenções urbanísticas, infraestruturas e serviços urbanos. No mundo desenvolvido assim continua.

Nova York, Londres e Tóquio, para ficar nas maiores cidades capitalistas, que, por óbvio, não fazem restrição à iniciativa privada, têm poderosos sistemas públicos de planejamento urbano e de controle dos serviços. Não é o nosso caso.

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No Brasil, passamos do laissez-faire da República Velha para a onipotência discursiva do Estado moderno, no papel. Na vida real, o Estado é atuante só em partes da cidade. Nas outras, sua omissão faz escassear ou inexistir o controle urbanístico, as infraestruturas e os serviços públicos, inclusive o de segurança.

Agora, está na pauta política o financiamento para a privatização de serviços de saneamento. É uma atitude que decorre da situação calamitosa em que se encontram as cidades brasileiras. Contudo, é preciso ponderar.

O saneamento é comumente considerado como água e esgoto. Mas não pode estar dissociado dos resíduos sólidos nem das águas pluviais, que, por sua vez, são relacionados com a urbanização, com a ocupação do território, com as políticas habitacionais e de mobilidade.

Ora, tudo isso é interdependente, pedindo ação coordenada e planejamento. Não é o que temos.

Mas é possível planejar nos tempos da incerteza?

É claro que o modelo do controle total, como queriam os modernos, não se sustenta. Nem é desejável. Justamente pela incerteza é que precisamos de estudo e acompanhamento daquilo que intervém na qualidade da vida urbana. Ante a complexidade da cidade contemporânea, são tais instrumentos que indicam os ajustes para a decisão política consequente. Sem eles, seguimos entregues à discricionariedade de governantes e de seus acordos pouco ou nada republicanos. E como são custosos!

A questão se acentua quando se sabe que, nesta geração, as cidades brasileiras construirão como nunca antes. Só o Rio metropolitano passará de quatro para seis milhões de moradias. (Isso sem crescimento populacional, que não haverá.) É um novo ciclo urbanístico, sem precedente.

Onde se construirão as novas moradias? Como o tratamento dos esgotos será efetivo, no horizonte de 25 anos, se estiver alheio a tal realidade?

Não é questão acadêmica: cidade compacta versus cidade expandida. O modelo atual leva ao espraiamento da cidade. Se nele persistirmos, (como a população não aumentará) os bairros consolidados perderão moradores, logo vitalidade, tornando ociosas as infraestruturas instaladas.

A ineficiência de empresas de saneamento, como no Rio, está associada ao modo como elas atuam, isoladas das demais políticas urbanas e apegadas à gestão corporativo-partidarizada. A eventual privatização superará esta segunda causa; não é pouco.

Mas a consistência de investimentos em programas setoriais de longo prazo depende da organização de sistemas de planejamento urbano e metropolitano para o indispensável redesenho das cidades ante o desafio desse novo ciclo urbanístico. A anunciada abertura de financiamento sugere um estímulo nesse sentido, ao qual possivelmente estará atento o Ministério das Cidades.

É só falta de dinheiro? Falta também Estado nas cidades brasileiras onde ele é insubstituível. E sobra onde é dispensável. Sem estudos consistentes, sem projeto para décadas, as escolhas serão aleatórias — os governantes continuarão tentando vender o que restar, os recursos escorrendo para o ralo.

Sérgio Magalhães

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