quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Deficiência e milagre

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Basta olhar ou ouvir o noticiário para ver como somos devedores, desonestos, ineficientes, autodepreciativos, pessimistas, inábeis, fingidos e deficientes na constituição da nossa vida pública. A maioria tem o sentimento de que está tudo errado. Não há, porém, suicídio ou emigração em massa porque quem sabe ler e escrever tem a vida “arrumada”. E o orgulho da Olimpíada dos atletas deficientes – esses verdadeiros heróis de nossos tempos.

Temos casa, família e um dinheirinho no banco. Residimos num bairro, há o carro, vimos um pouco do mundo, funcionários públicos ou aposentados. Somos “arrumados” porque éramos imunes ao “governo” e, ao lado disso, não tomávamos conhecimento do Brasil como uma comunidade com território, leis universais, moeda e projetos e valores com os quais havia algum acordo. O maior deles sendo, provavelmente, essa imunidade que só atingia os “pobres” e não nós, “cidadãos”: os “arrumados”.

Mas o mundo e esse Brasil abstrato ficaram menores. Eles encolheram e nós, paradoxalmente, crescemos e verificamos que se não era possível resolver todos os problemas, porque eles existiam em toda parte, algumas mazelas podiam ser controladas e até mesmo resgatadas.

Como não estranhar a não existência de desigualdades vergonhosas em alguns países em confronto com a nossa vivência diária em meio a cidades nas quais basta olhar para cima para ver a miséria que cresce em vez de diminuir? Como não achar que há algo errado no nosso sistema educacional, quando pagamos escolas primárias caríssimas, mas temos um ensino superior gratuito ao qual, obviamente, tem mais acesso quem está “arrumado”? Como não enxergar que confundimos governar gerenciamento público com “política” no seu mais baixo sentido – como mentira e roubalheira em nome do povo e dos pobres?

Em suma, como não considerar que continuamos acreditando nas fórmulas feitas e não em ações diretas e concretas? Será mesmo possível continuar arrumadinhos e em casa, mas sendo assaltados e agredidos na rua por batedores de celulares e relógios e, em Brasília, por ladrões de fundos de pensão? A menos, é claro, se formos aposentados do governo federal, altos funcionários com a “vida garantida”. Acho que é tempo de meditar que essa “vida” está prestes a ruir com a crise que já entrou nas nossas casas.

Até quando a casa vai ser refratária à rua?

De portas fechadas ao que ocorre lá fora, por que todo o nosso desenho institucional foi realizado para impedir esse encontro? E o cargo público que permitia pequenas ou enormes fidalguias é impossível com um Estado falido exatamente por ter como único projeto o de satisfazer seus segmentos políticos em detrimento da necessidade de imensas maiorias?
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Somos todos deficientes. O governo é uma decepção, todo governante faz o jogo do autoempoderamento e as instituições derretem em todo lugar. Estamos caindo aos pedaços. Já não ouvimos, falamos e vemos. Acidentes devidos a um processo de urbanização sem urbanidade multiplicaram o número de deficientes. O que era lido como incapacidade, inabilidade e imperfeição está em toda a parte e ocupa todos os espaços. Lida como corrupção, ela nos envergonha; vista como paralisia, ela nos rouba a esperança; assumida como um mal inato do mercado, ela nos condena ao inferno da exploração e do atraso.
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Somos todos deficientes!

Seja como coletividade ou seres humanos, não temos o que queremos e não realizamos tudo o que podemos.

Reconhecer a incapacidade, porém, é descobrir que só se sai da deficiência quando se decide superá-la. Quando se admite que ela é indisfarçável e deve ser vencida.

Um governo endividado não pode aumentar salários justamente dos mais bem pagos. Ou fazer jogo de cena com o orçamento nacional. Para ganhar legitimidade social, ele tem que propor o sacrifício da superação de si mesmo. Só cortando suas despesas num largo gesto nacional, ele pode ganhar a fidelidade, o respeito e a confiança da sociedade. É necessário um movimento dramático de autocontrole. Decretos e discursos não fazem milagres.

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Uma pessoa dos tempos de Cristo não acreditaria numa competição realizada por atletas portadores de deficiências físicas. E eis que temos uma Olimpíada com atletas outrora condenados à exclusão ou ao milagre.

Eu duvido do milagre? De modo algum. O milagre era o modo de fazer um cego enxergar e de um deficiente andar. Mas quando ele se supera usando a sua espantosa vontade, realiza-se o milagre que ambicionamos, mas não enxergamos. Todos somos deficientes e, a despeito de nos encontramos no fundo do poço da nossa inabilitação, podemos ultrapassá-la. Sem, entretanto, o desejar correto, não se sai da deficiência. Porque o milagre jaz na consciência da impossibilidade e na coragem de ultrapassá-la.

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