sábado, 17 de setembro de 2016

Brasil, um país em dois tempos

Às vezes me dá a nítida impressão de que o Brasil vive simultaneamente em dois tempos históricos: o passado, que resiste em ser enterrado, e o futuro, que promete, mas não acontece. Foi o caso desta semana entre o evento de posse da ministra Cármen Lúcia na presidência do Supremo Tribunal Federal e a sessão de cassação do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha. Parecia que o túnel do tempo – apelido da passagem entre o plenário do Senado Federal e seu anexo, uma vez que guarda uma exposição fixa em painéis sobre a história da Casa desde o Império – tinha se deslocado para o edifício do outro lado da avenida, do Supremo. Não faz duas semanas que acabamos de assistir à narração do tempo passado no capítulo da cassação da presidenta da República e, desta vez, a narrativa prosseguia numa espécie de replay, com a cassação do ex-presidente da Câmara dos Deputados.

Um Poder Legislativo eleito pelo cidadão resistindo a lhe servir, centrado apenas em seus interesses corporativos, para falar o mínimo, pois, na verdade, grande parte de seus membros está lá para cuidar de seus próprios interesses, muitos deles inconfessáveis. Do outro lado, o Supremo, cúpula de um poder não eleito, onde magistrados entram na carreira por concurso e progridem por mérito, que tem tentado desempenhar adequadamente o poder moderador das tensões geradas pelos demais Poderes da República, aponta para um futuro onde “a cidadania deve ser o direito fundamental à justiça e não uma mera aspiração”, como afirmou a nova presidente do Supremo.

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Terão as palavras da ministra Cármen Lúcia influenciado a acachapante derrota de Cunha por seus pares na sessão do julgamento do ex-presidente da Câmara dos Deputados que aconteceu ainda naquele mesmo dia? Com quase três décadas, demorou, mas a Constituição Cidadã começa a ser levada a sério. Não apenas pela limpeza geral da vida pública dos políticos delinquentes reclamada nas ruas pelos cidadãos, mas pelos inúmeros compromissos de levar a cabo a força da lei por parte dos chefes das instituições jurídicas e por alguns das instituições políticas do Estado. O Judiciário saiu na frente convicto, a Câmara tende apenas a se curvar à vontade da cidadania, mas ainda temos de ver se o mesmo ocorrerá no Senado e no Palácio do Planalto. Estamos em meio a uma tormenta em que se provará essa mudança de mentalidade, de passagem de uma cultura de impunidade e jeitinho para uma cultura de soberania dos cidadãos, verdadeiros patrões dos servidores do Judiciário e dos mandatários políticos do Executivo e do Legislativo. A posse da ministra Cármen Lúcia na presidência do Supremo e a sessão de julgamento da cassação de Eduardo Cunha são dois eventos promissores num único dia. Como bem disse a advogada Janaína Paschoal: estamos num momento decisivo de nossa história em que devemos nos esforçar para fazer rodar o círculo vicioso de uma prática política imoral para um círculo virtuoso de uma cultura política fundada na moralidade pública.

Destaco no primeiro evento da posse da ministra Cármen Lúcia o discurso do decano do STF, Celso de Mello, que lembrou e repisou com veemência: “Nenhum, nenhum”, repetiu, “dos Poderes da República pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios ou a manipulações hermenêuticas”. E afirmou isto diante dos cúmplices Renan & Lewandowski, que fizeram cara de paisagem sem vestir a carapuça endereçada pelo episódio do fatiamento da sentença do impeachment. “O direito a um governo honesto é um direito insuprimível da cidadania”, continuou Celso de Mello em sua denúncia do “imoral sodalício entre setores do poder público, de um lado, e agentes empresariais, de outro”, finalizando com a citação de doutor Ulysses Guimarães: “A corrupção é o cupim da República!”. Já o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, aborda a Lava Jato e exige mudança do sistema político e jurídico-moral do país. Afirma que não erraremos como na Operação Mãos Limpas e repudia a tentativa de barrar as investigações da Lava Jato. Defende as “dez medidas contra a corrupção” como o início de uma transformação na cultura política nacional, contra as forças do atraso! Mas o auge da sessão é quando a ministra Cármen Lúcia avisa que vai quebrar o protocolo que lhe manda iniciar a solenidade cumprimentando a mais alta autoridade presente, o presidente da República. Em vez disso, cumprimenta a mais alta autoridade do cidadão brasileiro! E se referiu à Justiça, recorrendo a citações literárias de autores nacionais, como sentimento o mais fundamental entre os direitos fundamentais dos cidadãos, brandindo: “A lei não é aviso!”.

Mais tarde, no palco da sessão de julgamento da cassação de Eduardo Cunha, parecia que voltávamos à página virada do passado, quando um dos deputados de sua tropa de choque ainda teve o desplante de buscar o mau exemplo do inconstitucional fatiamento da condenação do impeachment, com a proposta de trocar a sentença capital por uma mais branda de suspenção temporária do mandato, com a clara tentativa de livrar Cunha da mão pesada do juiz Moro. Mas o próprio relator do processo de cassação, o deputado Marcos Rogério, foi taxativo: “Acabou a esperteza, pois Cunha não apenas mentiu, mas escondeu patrimônio, sonegou o Fisco e recebeu propina!”. Depois de mais um show de horror da série “Lava Jato” – que continuo a afirmar que não teve este nome apenas pela razão manifesta de ter se originado numa operação policial trivial contra um doleiro operando num posto de serviço de limpeza automotiva, mas por uma razão inconsciente do desejo coletivo de mudança nas práticas políticas nacionais –, temos a esperança de reafirmação do compromisso republicano do Judiciário brasileiro em prosseguir na limpeza da vida e dos costumes políticos nacionais. Já podemos vislumbrar o roteiro dos próximos e lancinantes capítulos: com as revelações das delações premiadas das empreiteiras, poderão responder por crimes os mais variados de 10% a 20% dos parlamentares da atual legislatura, o que, aqui entre nós, não justifica as tentativas de barrar a “Lava Jato” para “estancar a sangria da vida política”, como se referiu num áudio vazado um dos nossos “nobres” senadores implicados até o pescoço.

A esperança do compromisso do presidente Temer de “pôr o país nos trilhos” não pode depender das manobras de barrar o seriado “Lava Jato”. Muito ao contrário, os próximos capítulos no front da Justiça estão mais para um roteiro do tipo “a fila vai andar”. Pois é justo o inverso: para encarar reformas imprescindíveis do Estado, controlar o câncer da demagogia, da dívida pública impagável, retomar o fluxo de investimentos internacionais, privatizar, voltar a crescer a produção e o emprego é que se torna imprescindível deixar a sangria correr para desintoxicar do sangue contaminado o corpo político nacional. A banda podre dos políticos que deverá sair da vida pública, segundo o noticiário político e as delações que hão de vir, não chega a comprometer todo o corpo político. Segundo médicos que consultei, sendo atendidos no CTI bem equipado da Cidadania, Transparência e Integridade, podemos perder até 20% do sangue ruim que, aos poucos, o próprio corpo político se encarregará de se renovar com o sangue bom de novos atores da vida pública.

Jorge Maranhão

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