quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

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Meu presente de Natal

Não me comove esta época do ano. Nunca me interessei pelas festas de Natal e de Ano Novo. Quando criança passava as férias de verão na Fazenda do Paiol, nome pomposo para um pedaço de terra cheio de voçorocas e coberto por capim-gordura perdido na colônia italiana de Rodeiro, Zona da Mata mineira. Lá moravam os Ruffato, governados pela nonna Marieta Micheletto, mulher de gestos raros e econômicas palavras, longos cabelos cinzentos ajeitados em coque, melancólicos olhos negros como os tecidos que vestiam sua vetusta viuvez.

Findo o período letivo, minha mãe arrumava as parcas roupas numa bolsa de viagem de napa e me colocava no ônibus da Viação Marotti, um Mercedes-Benz do final da década de 1950, recomendando que o motorista, o próprio Marotti, baixinho e sempre mal-humorado, me apeasse na praça São Sebastião, onde certamente haveria alguém à espera. Aos solavancos atravessávamos as montanhas percorrendo a estrada esburacada de terra, rezando para que as chuvas, que nos espiavam por detrás das nuvens carregadas, não desabassem, senão quedávamos atolados pelo caminho.

E lá íamos envoltos na poeirama, a todo momento estacando no meio do nada para a subida ou descida de passageiros arrastando mercadorias acondicionadas em sacos de aniagem. As cidades se sucediam: Dona Eusébia, onde meu pai havia sido criado como agregado dos Nalon, donos de viveiros de mudas de laranja e limão; Astolfo Dutra, o rosto e as mãos lambuzadas de picolé; Sobral Pinto, fedor que emanava da fábrica de adubos; Diamante, tão pequena mas possuidora de uma estação de trem; e, após duas horas de sol e calor, Rodeiro.

O ônibus contornava a praça, estacionando ao lado da igreja de São Sebastião. Marotti me desembarcava e entregava a um dos irmãos da minha mãe, Antônio ou Pedro. Após pedir a bênção, cruzávamos a praça, eu fascinado com os saguis que habitavam as árvores raquíticas, até alcançarmos a charrete estacionada em frente ao bar do Pivatto. Antes de rumarmos para a roça, passávamos na padaria do seu Mazzini para nos abastecer de caçarola, um pudim de queijo que, junto à piada, espécie de panqueca doce que substituía o pão pela manhã, dimensiona a vastidão do tempo que se foi.

Na Fazenda do Paiol os dias transcorriam mergulhados em irreal felicidade. O cheiro de manga abraçava-nos, meninos e meninas trepados nos troncos grossos, o sumo da fruta melando as mãos, a boca, o rosto, escorrendo pelo pescoço, coalhando de nódoas as roupas. Mangas que iriam se transformar em um líquido pastoso amarelo-avermelhado, depois de horas e horas de revezamento entre tias e primas, colheres de pau remexendo enormes tachos de cobre assentados sobre o fogão improvisado no terreiro, à sombra de uma figueira.

Uma madrugada eu despertava, o coração sobressaltado, com o berro agônico do porco. Longo dia, o da matança. Coagulado, o sangue viraria chouriço. A gordura armazenaria parte da carne em latas de conserva – quanto mais tempo permanecesse imersa na banha, mais saborosa se tornava. Outra parte seria pendurada em defumadores sobre o fogão de lenha e outra ainda seria usada para fazer linguiça. A pele rendia torresmos; os ossos alimentavam os cachorros. Ao final, tudo seria distribuído equitativamente entre os parentes – e ainda alguém lembraria de reservar porções para vizinhos distantes e pobres, que mal conhecíamos.

Então, o 24 de dezembro chegava. Acordávamos cedo para entrar na fila do banho – que naquela data exigia bem mais que apenas deixar a água escorrer pelo corpo. Éramos inspecionados, cheirados e vigiados. Após o almoço, em nada diferente das refeições dos outros dias, púnhamos a roupa mais bonita e os melhores calçados, e rumávamos para Rodeiro. As mulheres e as crianças pequenas, de charrete. Os homens, a cavalo. As crianças maiores e os adolescentes, a pé. Pouco a pouco vencíamos o trajeto, cortando as terras dos Ferrari, dos Volpato, dos Vanelli, dos Paschoalino e dos Conti, quando enfim avistávamos os primeiros telhados do povoado.

Ao entrar em Rodeiro nos espalhávamos por entre a italianada que acorria dos confins das montanhas, gente que muitas vezes só se dirigia à cidade naquela ocasião. A praça São Sebastião enxameava e aproveitávamos para colocar as novidades em dia. Negócios eram tratados, namoros começavam, antipatias se consolidavam. Ao aproximar a meia-noite, todos nos encaminhávamos à igreja para participar da Missa do Galo. O padre Jaime, um holandês beberrão e sistemático, que falava uma língua incompreensível, adiava o encerramento da cerimônia enfadonha, para desespero dos fiéis.

Não havia luzinhas chinesas. Não havia árvores de Natal. Não havia Papai Noel. Não havia ceia. Não havia troca de presentes. Não havia espírito natalino. Havia, na volta para a roça, apenas a baça claridade da lua banhando a estrada, miríade de estrelas latejando na escuridão infinita e o ruído dos nossos passos calados, intimidados pela beleza do universo. Se eu pudesse reivindicar um presente de Natal seria esse meu pedido: ter de novo aquela inocência, aquela ingenuidade, aquela paz que habita a verdade das coisas simples e que vamos desperdiçando ao longo da vida.

Babel

É lei de guerra: para ser vitorioso qualquer exército precisa de uma retaguarda unida e coesa. Uma lei que também vale para o mundo da política. Mas, no caso da presidente Dilma Rousseff, a guerra está perdida.

A desunião começa com o próprio PT, que deveria estar aglutinado em torno dela para o que der e vier. Principalmente nestes tempos em que a presidente sofre enorme rejeição da sociedade brasileira e é ameaçada concretamente por um pedido de impeachment.

As pesquisas publicadas nesta semana mostram que os índices de reprovação de Dilma e de seu governo continuam altíssimos. Nada menos do que 65% dos brasileiros consideram sua gestão ruim ou péssima. Poucas vezes na história da República um governante atravessou tamanha e brutal crise de liderança e popularidade.

Mas declarações de petistas de diversas tendências e o violento racha na chamada base aliada do governo explicitam que a retaguarda da presidente se espatifou.

E não adianta fazer uma guinada à esquerda para tentar juntar os cacos.

A nomeação de Nélson Barbosa para o Ministério da Fazenda, numa clara tentativa de agradar os setores mais à esquerda, pode acabar sendo um dos últimos suspiros do governo.

Tiro de fôlego curto. Sobretudo porque a economia vai mal e não existem recursos para se atuar com desperdício.

Na época da fartura, o modelo iniciado no governo do ex Lula, premiava-se a todos. Desde os empresários amigos escolhidos a dedo para fazerem parte do seleto grupo de campeões até os que o PT passou a chamar de nova classe média, produto de uma inclusão social pouco ou nada emancipadora. Também havia gordura suficiente para a cooptação de intelectuais, de centrais sindicais e de movimentos sociais. Esse modelo veio ao encontro de um tipo de esquerda adepta à tutela do Estado e ao paternalismo.

Ignorou-se o quanto era insustentável o modelo. Fez-se vistas grossas aos desmandos éticos, pautou-se pelo velho e esfarrapado preceito de que “moral é o que serve à classe operária”.

A divisão da base aliada também é de tal ordem que nem o vice-presidente da República escapou. O político, experiente, discreto, matreiro e de sangue-frio, rompeu com Dilma ao enviar a chamada carta-desabafo. E, desde então, não para de se articular contra a presidente.

A carta foi um movimento arriscado, sobretudo porque não transmitiu a 71% dos brasileiros segurança de que Michel Temer está preparado para presidir o Brasil. A pesquisa do Datafolha mostra que 13% simplesmente não sabem se ele seria melhor do que a presidente e outros 58% tem certeza de que ele seria pior ou igual a Dilma.

A oposição, que deveria oferecer alternativas para tirar o país da crise, perdeu o ano discutindo o impeachment. Pior, dando apoio, ainda que por vezes envergonhado, aos rompantes vingativos, midiáticos e irresponsáveis do presidente da Câmara dos Deputados, o peemedebista Eduardo Cunha, figura nefasta, encalacrado com denúncias de corrupção na Operação Lava Jato.

A crise profunda transformou a classe política brasileira numa espécie de Torre de Babel. Cada um fala uma língua. De interesse próprio, mesquinho e imediato.

A torre da gênese bíblica já provou que esse é o pior caminho para superar o dilúvio.

A arca de Noel

Vamos esclarecer uma coisa dura de ouvir? Não há lugar para toda a humanidade no mundo. Simples assim. Entendida essa penosa realidade, meia dúzia de gatos pingados saem por aí para criar a tal “arca” que seria a salvação da lavoura de uns em detrimento de todos. O capitalismo, aparentemente mais “cruel”, prega que o mérito e o talento individual determinam a “nota de corte” de quem sobrevive ou não neste planeta. Já o “comunismo do século 21″, com sua falácia elegante e suas vertentes neopolíticas todas tortas, defende mesmo que é a sua casta, sob o pretexto das tais “políticas de inclusão” que deveria desfrutar do reino dos céus, pouco importa se tenham talento ou não para a coisa, ou se a riqueza amealhada para conseguir seu intento foi tungada de terceiros.


O fato é que o discursinho – dividindo tudo comunitariamente estaríamos assegurando os benefícios de todos – é de uma vigarice escandalosa, visto que os detentores do talento não se submetem a produzir para vigaristas, por uma causa que já nasce morta em essência. Somos únicos, indivíduos e nos recusamos a viver em manadas. O holocausto já deveria ter servido de exemplo do que não deveríamos querer para a nossa própria sociedade. Em contrapartida, aprendem rápido os maganões a dividir o butim enfiando metade na cueca. É o capitalismo do socialismo, tungando sempre o capital dos outros. Um mimo.

O que temos diante de nós é o enigma da pirâmide que todo Barbosão deveria decifrar, antes de assumir um cargo na economia: a que interesses atende o tal apadrinhado da dona do chefe? Os caras estão flertando com uma equação ideológica solenemente rejeitada por toda a sociedade brasileira que presta. A que não presta ─ e não trabalha ─ vive procurando desesperadamente uma teta, e não quer perder o assento que lhe foi prometido na janelinha da tal arca que vai salvar o planeta, pilotada por este antro de vigaristas.

Infelizmente, só há dois caminhos a seguir. No primeiro deles, um bando de bárbaros se convence da “missão” que consiste em aniquilar a “sociedade capitalista ocidental”, com tudo o que ela representa de opulência e injustiça. Do outro, atingida em suas torres gêmeas e em sua honra e civismo, a sociedade que luta hoje contra sua própria natureza bélica e conquistadora terá de responder a todo esse cacarejo indecente, numa bela cruzada contra a ameaça constante.

Aposto todas as fichas no talento individual, na tecnologia, nos brios e na decência que sustentam os bons na hora do aperto. Na hora do show, estes carcamanos da verborragia barata aparecem adornados por tornozeleiras eletrônicas, como animaizinhos domésticos de uma sociedade farta de seus latidos e rosnados indecentes. Os caras são bandidos. Não diferem em nada dos calhordas do Estado Islâmico e companhia, que alardeiam uma “missão” para recrutar aviõezinhos do forró para suas respectivas casamatas.

Nela se encontram desde os Jôs e os Chicos, até os Genoinos e as Marilenas, numa vistosa confraria de biltres do capitalismo alheio. Os vassalos da ideologia manca. Os iluminados que terão direito ao bilhete único da arca picareta. Não sem antes dar uma lambida no vaso sanitário sagrado da ideologia rumbeira.

Dizem que quem obrou no vaso foi a própria Mercedez, aquela que eu não compraria nem amarrado, caminhando e cantando e seguindo a canção. Gracias a la Vida eu não vi essa cena. Se tivesse visto, tinha me convertido. Ha lá o corpo estendido no chão.

Que as futuras gerações possam gozar a vida plenamente

Em recente reunião do PSDB, FHC reafirmou a necessidade de implementar um programa de reformas tão logo se inicie o governo Michel Temer. Tanto faz que seja a plataforma que Armínio Fraga traçou para Aécio Neves nas eleições de 2014, ou a “Ponte para o Futuro” recentemente apresentada em nome do PMDB.

O roteiro é claro. Três seriam os objetivos de um governo Temer devotados a novo ciclo de acumulação de capitais no Brasil. O primeiro seria manter o fluxo de pagamento das obrigações financeiras do poder público aos bancos, o que já consome praticamente 50% de tudo o que a União consegue arrecadar. Portanto, seria imprescindível lograr expressivos superávits primários. Para que isso seja alcançado, podemos aguardar um arrocho nas três áreas da seguridade social: Previdência (da patuleia, naturalmente), assistência social e saúde.

Um segundo objetivo seria revigorar a capacidade de investimentos do setor privado. Na impossibilidade de um “cavalo de pau” nos juros, seria autorizada a terceirização selvagem da mão de obra de forma a igualar a remuneração do trabalho a patamares asiáticos degradantes. As exigências de licenças ambientais, as demarcações de terras indígenas, a imposição de servidões florestais seriam descartadas para não mais prejudicar as locomotivas de nossas exportações: o agronegócio e a mineração.

Finalmente, de forma articulada com os dois primeiros objetivos, teríamos, sob a desculpa de estímulo à entrada de capitais, a internacionalização desmedida do setor de serviços de engenharia pesada e da área de energia.

Haverá mais desemprego, mais desalento e, provavelmente, mais violência. Assim, o Estado se tornará ainda mais, e antes de tudo, a gendarmaria da propriedade privada. Para os que podem ser proprietários, é claro!

Este terá sido o legado definitivo dos governos do PT: a radicalização do neoliberalismo que tanto combateu na fraseologia, mas que implementou na prática quando o primeiro governo Lula fez aprovar no Congresso Nacional, com todo o empenho, a retirada do sistema financeiro da órbita de fiscalização pelo Estado. O que importa, agora, é pensar: que forças poderiam se articular e fazer valer um projeto diferente do que aí esteve, está e estará?! Que seja politicamente mais democrático e independente do poder econômico; que possa incorporar nas instituições, respeitada a pluralidade cultural, os marginalizados de toda ordem; que proponha o desenvolvimento sustentável; que faça valer a justiça social por meio de reformas agrária, urbana, tributária e do aparelho de Estado. Por fim, que leve em conta a necessidade de efetivar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sem o que não haverá vida futura.

Confesso que tenho lá minhas críticas a Leon Trotski, mas gostaria de orientar minha vida daqui para a frente a contribuir com aquilo que ele registrou em seu testamento: “A vida é bela: que as gerações futuras a limpem de todo mal, de toda opressão, de toda violência e possam gozá-la plenamente”.

Ou impeachment ou renúncia

Os investidores não se tocaram. Pelo contrário: mandaram dizer a Nelson Barbosa, no dia de sua posse, o tradicional “não vem que não tem”. O dólar ultrapassou os 4 reais enquanto a inflação não volta mais para um dígito. O real foi a moeda que mais se desvalorizou no mundo inteiro. No ano que agora termina, 1 milhão e 600 mil perderam o emprego. O governo cancelou os concursos públicos para 2016 e a maioria dos Estados não conseguiu pagar o décimo-terceiro salário aos seus funcionários. Os juros vão subir, o custo de vida, também. Dos impostos não se fala. Adianta alguma coisa trocar de ministro da Fazenda?


Tem saída? Tem. Basta mudar o governo. Afastar a sombra de mais três anos de desgraças através da dispensa dos seus responsáveis. Pode ser pelo impeachment. Quem sabe por um plebiscito? A Constituição permite atos de demissão sumária, direito inerente a todos os povos quando em situação insustentável.

O que não dá é continuar como vamos, no limiar de uma revolta que a instituição alguma será dado conter. Claro que a solução ideal seria a renúncia. O reconhecimento de que falharam. A necessidade de desembarcarem.

Em condições normais de temperatura e pressão já era para as oposições ocuparem o país com um programa de recuperação nacional. Pelo jeito, tucanos e penduricalhos já deveriam ter elaborado um plano alternativo de governo, um elenco em condições de definir rumos. Como parece que não tem, entregues ao mesmo modelo insosso, amorfo e inodoro dos atuais detentores do poder, omitem-se. O pior é o vazio que fica. Não haverá que fulanizar, muito menos procurar salvadores da pátria. Falta um roteiro de salvação, acima e além de ideologias, partidos e grupos.

Corrupção da autoridade

Entre as doenças morais de que o Brasil sofre, a corrupção do conceito de autoridade é das mais tristes. Nos dias atuais, quando se fala de corrupção só se pensa em roubo, mas o sentido original da palavra é deterioração, apodrecimento, estrago.

Pense na criação de filhos: a autoridade sumiu, nossas crianças estão mimadas, não se sentem protegidas pela força moral de quem deveria lhes servir de referência, inspirar respeito e lhes ensinar valo- res elevados para que conduzam bem suas vidas.

Pense em políticos e governantes que não admiramos nem respeitamos, pois não reconhecemos neles a autoridade, ou a moral, para que ocupem os lugares de comando em que estão.

O que aconteceu com o conceito de autoridade, para que tenha se corrompido desse jeito, para ter sumido de nosso horizonte de valo- res prezados?

Houve uma triste coincidência histórica: uma ditadura militar em nosso país e uma reviravolta de costumes mundial. A primeira fez com que autoridade e autoritarismo parecessem sinônimos. Ora, o autoritarismo é a doença da autoridade, é quando quem manda não se preocupa com o respeito do comandado, quando acha que a intimidação e o medo que desperta são suficientes.

Vinte e um anos de autoritarismo foram suficientes para que o senso comum absorvesse a ideia de que qualquer exercício de autoridade é abusivo em si. Resulta que temos, em posição de comando, pessoas que ora são fracas e insuficientes, ora são escandalosas, gritam, humilham, fazem seus subordinados chorar, verdadeiras caricaturas de autoridade. Ambas não exercem sua função com eficiência.

A reviravolta nos costumes teve como ícone o maio de 1968 e seu "é proibido proibir", o advento da pós-modernidade e seu clima de negação de valores, de aversão a qualquer coisa que parecesse hierarquia... e autoridade.

Autoridade é poder de mando, e é sempre exercida pela força: força de intimidação e força de saber. Quando se diz que "fulano é uma autoridade em física", se está reconhecendo seu saber e a força que ele contém. Suas palavras serão levadas em conta, pois convencem (vencem junto), não intimidam.

Quando um filho nasce, a disparidade de poder que temos com ele é tamanha que nossa melhor autoridade será exercida como a de um déspota esclarecido: decidimos o que ele come, como se veste etc.

Mas ele cresce e desenvolve assustadora capacidade de compreensão. É hora de introduzirmos a autoridade de saber junto a ele: se subiu na janela, em vez de dizermos "Desce já daí", podemos dizer: "Perigo, dodói grande!" O segundo comando convence, pois ele sabe o que é perigo, o que é dodói e o que é grande. Ele foi respeitado em sua capacidade de compreensão, ele adere ao comando como algo benéfico a ele: isso é autoridade.

Foi um comando respeitoso, sim, mas também sem cheiro de empulhação, de obra de marqueteiro, sem insulto à inteligência. A autoridade de saber é a mais eficaz das autoridades.

Mas... saber ou intimidação, autoridade é sempre uso de algu- ma força; a democracia tem que ser democrática, mas não pode ser fraca. Quando, a despeito de nossos melhores esforços, o comandado debocha do comando, a força da intimidação não pode ser dei- xada de lado.

É como disse um paciente meu: "Quando Freud não explica, Lampião entra em ação".

Dilma aderiu aos oligarcas

Ao assinar a Medida Provisória que facilitou as operações das grandes empresas apanhadas em roubalheiras, a doutora Dilma abandonou a posição de neutralidade antipática que mantinha em relação à Lava Jato. Ela alterou uma lei de seu próprio governo e alistou-se na artilharia dos oligarcas que, pela primeira vez na história do país, estão ameaçados por um braço do Estado.

O mimo permitirá que empreiteiras cujos diretores foram encarcerados negociem novos contratos e obras com a Viúva. No mais puro dilmês, ela disse que "devemos penalizar os CPFs (as pessoas físicas), os responsáveis pelos atos ilícitos. Não necessariamente penalização de CPFs significa a destruição dos CNPJs (as pessoas jurídicas). Aliás, acreditamos que não exige". A frase de pouco nexo escamoteia o conceito de que as roubalheiras podem ter mais a ver com malfeitorias de pessoas do que de empresas.

As roubalheiras não eram dos executivos, eram da oligarquia empresarial. Prova disso está no fato de que nenhuma empreiteira queixou-se de seus executivos.

Os defensores do abrandamento dos acordos de leniência sustentam que a Lava Jato abala negócios, desemprega trabalhadores e inibe a economia. É um argumento parecido com aquele usado pelos defensores do tráfico negreiro no século 19, mas essa é outra discussão.

Até hoje nenhuma grande empreiteira pediu desculpas à população pelas mentiras que repetiu tentando proteger-se da Lava Jato. O papa Francisco pediu desculpas pelos casos de pedofilia na Igreja. A Volkswagen desculpou-se pelas fraudes ambientais. Os oligarcas brasileiros mentiram para a população e nada.

Fulanizando os casos das três maiores empreiteiras do país:

A Odebrecht sustenta que nada fez de errado. Em outubro de 2014, Marcelo Odebrecht, disse o seguinte: "como diretor-presidente da Odebrecht S.A. venho a público manifestar minha indignação, e de toda a organização, com informações inverídicas veiculadas na imprensa, em prejuízo de nossa imagem".

Também em outubro de 2014, a Camargo Corrêa disse que não havia "qualquer procedência" nas acusações feitas pelo Tribunal de Contas da União a respeito de obras superfaturadas na refinaria Abreu e Lima. Um mês depois, a Lava Jato encarcerou seu então presidente (Dalton Avancini) e então vice (Eduardo Leite). Neste ano, ambos passaram a colaborar com o Estado e a Camargo Corrêa aceitou uma multa de R$ 700 milhões.

A Andrade Gutierrez informou, em dezembro de 2014, que "todos os contratos da empresa com a Petrobras foram realizados dentro dos processos legais de contratação". Seu presidente (Otavio Azevedo) vendera uma lancha a Fernando Baiano por R$ 1,5 milhão, mas tratava-se de uma operação de CPF para CPF. Em junho, Azevedo foi preso e, em novembro, a Andrade Gutierrez passou a colaborar com o Estado e aceitou uma multa de R$ 1 bilhão.

Empresas desse tamanho não brincam com dinheiro. A teoria do CPF x CNPJ da doutora é empulhação. Se a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez resolveram desembolsar R$ 1,7 bilhão, elas sabem que os delitos não foram cometidos por pessoas físicas.

A colaboração da Camargo e da Andrade é uma boa notícia. Não se pede muito, apenas que peçam desculpas por terem mentido, pois foi exatamente a arrogância e o faço-porque-posso que arruinou seus CNPJs e levou seus marqueses para a cadeia.

Inventores da Ditadura do Latinório precisam aprender que toga não é japona

A maioria dos integrantes do Supremo Tribunal Federal aproveitou a sessão convocada para deliberar sobre o processo de impeachment para revogar o equilíbrio entre os Poderes. Na cabeça de oito dos 11 bacharéis em Direito indicados pela Presidência da República e aprovados pelo Senado depois de uma sabatina com cara de chá de senhoras, os três Poderes são independentes, mas só o Judiciário não é dependente de outro. Já o Executivo e o Legislativo dependem do que dá na telha do Poder que manda nos dois e não obedece a nenhum.

Declamando criativas interpretações de normas constitucionais, verbetes de dicionário e citações em Latim, o bloco majoritário fez o diabo. Prorrogou por tempo indeterminado a sobrevida da presidente agonizante, redesenhou o Congresso para subordinar a Câmara do renegado Eduardo Cunha ao Senado do patriota Renan Calheiros, rebaixou 513 representantes do povo a capinhas de 81 representantes das 27 unidades federativas e deixou claro que, sem o endosso dos senadores, decisões dos deputados valem tanto quanto palpites da mulher do cafezinho. Fora o resto.

Não faz tanto tempo assim que os ministros eram escolhidos entre os melhores e mais brilhantes, e efetivamente compunham o corpo de elite do universo jurídico brasileiro. Também assolado pela Era da Mediocridade, o STF foi ficando parecido com os vizinhos de praça. Com o advento da Era da Canalhice, o estrago foi consumado pela aplicação ostensiva do parágrafo único adotado pela seita lulopetista para preencher vagas no STF: a escolha deve atender aos interesses do Planalto. Ponto.

Só podia dar no que deu. Ainda que se disfarçassem de turista em dia de visitação pública ao prédio em Washington, certos juízes seriam barrados na portaria da Corte Suprema americana. Lá o esquema de segurança é severo com figuras esquisitas, e isso é o que não falta na similar brasileira. Essa gente de toga fala muito, e fala coisas estranhas. Escreve demais. e escreve coisas tão difíceis que nem sobra tempo para pensar, conversar com gente normal, saber o que vai pelo Brasil de verdade, em tudo diferente da Pasárgada onde moram e decidem o que pode e o que não pode, o que é certo e o que é errado.

Um ministro do STF não precisa afligir-se com o desemprego em expansão nem com a inflação descontrolada. Não sucumbe a surtos de indignação quando confrontado com as cifras da roubalheira ou com os devastadores efeitos da incompetência. Não chega a perder o sono com a desfaçatez da seita que pariu a maior crise da história republicana. Nunca tem pressa: entre o começo e o fim da sessão, por exemplo, mais 5 mil trabalhadores foram demitidos, mas os sábios supremos seguiram escandindo sílabas como quem está desvendando o mistério da Santíssima Trindade. Eles ignoram que a paciência da plateia acabou.

“Japona não é toga”, lembrou em outubro de 1964 o então presidente do Senado, Auro Moura Andrade, a um chefe militar decidido a atropelar normas constitucionais. Com quatro palavras, Auro ensinou que não cabia às Forças Armadas exercer funções do Supremo Tribunal Federa ─ um general no papel de juiz é tão absurdo quanto um magistrado no comando de uma divisão de infantaria. Pois chegou a hora de inverter a ordem dos substantivos para adaptar a frase aos tempos modernos e transformá-la em advertência aos oniscientes de araque.

Antes que tentem proclamar a Ditadura do Latinório, os superdoutores precisam aprender que toga não é japona. A lição será assimilada em poucos segundos se for ministrada durante as manifestações que a portentosa oposição real está devendo a si mesma. A voz das ruas também cura surdez seletiva.

Não à notícia fabricada!

Nós, jornalistas, temos um papel importante. Devemos dar a notícia com toda a clareza. Precisamos fugir do jornalismo declaratório. Nossa missão é confrontar a declaração do governante com a realidade dos fatos. Não se pode permitir que as assessorias de comunicação dos políticos definam o que deve ou não ser coberto. O jornalismo de registro, pobre e simplificador, repercute o Brasil oficial, mas oculta a verdadeira dimensão do País real. Precisamos fugir do espetáculo e fazer a opção pela informação. Só assim, com equilíbrio e didatismo, conseguiremos separar a notícia do lixo declaratório
Carlos Alberto Di Franco

O que já se sabe sobre o impacto da lama de Mariana


Um mês e meio após o rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco em Mariana (MG), faltam dados consolidados sobre o número total de pessoas afetadas pelo que é considerado o maior desastre da história da mineração mundial.

O colapso da barragem de Fundão causou o transbordamento de outra barragem, a de Santarém. O incidente liberou cerca de 60 milhões de metros cúbicos de lama, que destruiu distritos da cidade de Mariana e escorreu ao longo dos quase 700 km entre o local da ruptura e a foz do rio Doce, no Espírito Santo, causando danos ambientais e sociais.

No entanto, as estimativas sobre o real número de prejudicados nos dois Estados pelo desastre ambiental ainda são preliminares e desencontradas, já que utilizam critérios diferentes de medição.

A Defesa Civil de Minas Gerais, por exemplo, fala em mais de 1 milhão de pessoas atingidas. Para chegar a esse número, o órgão diz ter apenas somado a população de 35 municípios do Estado no caminho da lama.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, órgão vinculado ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, afirmou que cerca de 500 mil pessoas tiveram o abastecimento de água comprometido em Minas e no Espírito Santo.

"Este é um levantamento que fizemos nos municípios que captam (ou captavam) água diretamente na calha do Rio Doce (nos dois Estados) e, com a lama de rejeitos, tiveram que interromper essa captação", afirmou o órgão.

Já a Samarco afirmou que "tem cadastradas cerca de 1.300 pessoas diretamente afetadas pelo acidente com a barragem de Fundão", nas cidades de Mariana e Barra Longa.

Ao notar a escassez de informações, um geógrafo paulista tomou para si a tarefa de contabilizar o impacto mínimo que o desastre causou nos moradores dos dois Estados que vivem próximo ao Rio Doce e a seus afluentes afetados. Sua estimativa é de que, inicialmente, cerca de 335 mil pessoas tenham sido diretamente prejudicadas pela lama que contaminou o Rio Doce.

"Eu fui bem econômico na estimativa, para ter um cálculo inicial. Usei bastante a expressão 'pelo menos'", disse Marcos Ummus, 35, à BBC Brasil.

Para fazer a estimativa, ele considerou apenas pessoas que vivem a em um raio de até 2 km do leito do Rio Doce e de seus afluentes afetados – os rios Gualaxo do Norte (que banha o distrito de Bento Rodrigues) e o Rio do Carmo. Seriam pelo menos 334.442 moradores de 40 municípios, de Mariana (MG) a Linhares (ES).

Ummus realizou o levantamento utilizando técnicas de geoprocessamento, análise geoespacial e dados populacionais do Censo 2010, do IBGE – o que reforça a ideia de que mesmo o número mínimo real de afetados pode ser bem maior.

Neste território, em contato direto com os rios, também estão a área protegida dos índios Krenak, três Unidades de Conservação de Proteção Integral (que não podem ser habitadas pelo homem, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais) e seis Unidades de Conservação de Uso Sustentável (que admitem a presença de moradores).

Leia mais

Foto: ReutersIMPACTO MÍNIMO DA LAMA

De Mariana (MG) a Linhares (ES)


500 mil
pessoas tiveram o abastecimento de água comprometido nos 2 Estados

263,1 km² 
é a área mínima de espelho d'água afetada pela lama.

379,73 km² 
de áreas de agricultura e pastagens estão a até 2 km do Rio.

1.469 ha
foram completamente devastados antes mesmo que a lama chegasse ao Rio Doce
Fontes: CBH Doce, Marcos Ummus, IBAMA