quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A lama

Como não pensar, a cada dia, que a lama avança. Essa lama tóxica que mata gente, mata bicho, mata planta, mata histórias. Essa lama que engoliu um povoado chamado Bento Rodrigues, assassina o Rio Doce, avança pelo oceano, atravessa os estados e segue avançando. Essa lama que deixou meio milhão sem água. Essa lama venenosa que vai comendo o mundo como se fosse um organismo vivo. Essa lama morta que se move. E ao se mover, mata. Enquanto alguém toma um café, pega o ônibus, reclama do trânsito, faz um selfie, se apaixona, assiste a uma série do Netflix, se preocupa com as contas, faz sexo, se queixa do chefe, sente que o cotidiano não está à altura de suas grandes esperanças, briga no Facebook, faz planos para as festas de fim de ano, engole umas gotas de Rivotril, a lama avança. Enquanto escrevo, a lama avança. Piscamos, e a lama avança. Parece quase impossível pensar em algo além de que a lama avança. E ninguém pode afirmar até aonde a lama vai chegar.


É mais como um filme de imagens impossíveis, cada um entre seus muros, fronteiras cada vez mais enfarpadas, e a lama avançando. Dia e noite, essa lama que não dorme. Avançando. Talvez fosse necessário mais um movimento de vanguarda na arte, que desse conta do excesso de real da realidade. Da lama que avança. Concreta, espessa, tóxica. Inescapavelmente lama. QueGuernica poderá ser pintada diante da obra da Samarco, a mineradora que pertence à Vale (antes chamada “do Rio Doce”) e à anglo-australiana BHP Billiton? Precisamos de umaGuernica para representar o irrepresentável dessa lama que avança enquanto fazemos xixi.

Haveria de ter uma bienal das artes criando coletivamente representação diante da lama, em tempo real, uma bienal viva diante da lama morta que mata. Para que a lama que avança não pudesse ser esquecida para além dos que jamais poderão esquecê-la porque nela perderam quem amavam. Ou perderam um rio. Ou, no fio de voz do homem que conta para um repórter de TV que perdeu a fotografia do pai e da mãe, ele mesmo achando pouco, mas sentindo tão doído que era tanto. Não era carne, mas era história, história que dizia que ele teve um pai e uma mãe que um dia fizeram um retrato para se representar. E a lama comeu.

A lama avança. Não apenas como metáfora, como havia sido até 5 de novembro, quando a barragem se rompeu liberando todo o recalque. A lama avança matando Emanuely, Thiago, Waldemir, Claudio, Sileno, Marcos, Marcos Aurélio, Samuel, Mateus, Edinaldo, Daniel... Mais dois mortos ainda sem nome. Pelo menos 13 corpos já foram encontrados na barriga de baleia da lama. Treze gentes, com suas histórias, seus sonhos, seus desesperos, seus amores. Treze que se multiplicam por centenas que acordarão a cada dia com a faca do luto esburacando o peito.

E pelo menos oito desaparecidos, que um dia poderão ser cuspidos pela lama. Ou não. Oito que sumiram e que também eram amados por alguém e que também sonhavam e que também suavam e que também queriam. Oito de quem ainda se espera que apareçam para dizer que escaparam dos dentes da lama e para serem abraçados com força e para virarem histórias de superação ou conto de Natal. E há os peixes que são dimensionados em toneladas, e não parece possível compreender que vidas sejam dimensionadas em toneladas, apenas porque são outras vidas ou vidas de outros. Há as tartarugas. Há espécies que poderão deixar de existir, um tipo de vida que desaparece por inteiro, a pobreza máxima, insuperável, aquela para a qual não existe nenhuma possibilidade de Bolsa Família para resgatar. Há todas as plantas que não farão mais fotossíntese, árvores que já não respiram. Flores afogadas. Há o rio assassinado. O não rio.

E a lama avança.

Não como metáfora.

Mas também como metáfora. Enquanto a lama avança – “vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “não vai invadir o Arquipélago de Abrolhos”, “alcançou o ninho das tartarugas-gigantes”, “praias são interditadas no Espírito Santo”... –, há uma lama metafórica que entra pela nossa boca e nos faz tossir. Mas a tosse não nos liberta, porque estamos intoxicados de lama. Essa lama que circula pelas veias desse corpo que chamamos de país.

Receita de reconstrução nacional

A democracia teve quatro etapas de desenvolvimento.

Na primeira os cidadãos aprovavam ou não, diretamente, propostas apresentadas em praça pública. Tornou-se inviável quando a Grécia passou a ser mais que Atenas. Veio depois a Republica Romana em que o cidadão elegia quem decidia em seu nome. Naufragou na corrupção pela ausência de mecanismos de controle dos representantes pelos representados.

O passo seguinte é a República dos Iluministas que asila-se na América em 1788. É a primeira e única revolução a substituir o típico “manifesto” de direitos e objetivos utópicos em que todas as precedentes terminavam pelo desenho de instituições projetadas para submeter em vez de servir os próceres da nova ordem, pulverizar em vez de concentrar o poder dos vencedores, incentivar em vez de impedir o dissenso, e submeter cada uma dessas inovações ao debate nacional por meio dos “Artigos Federalistas” (“Federalist Papers”), de modo a “estabelecer o bom governo pela reflexão e pelo consentimento” e não mais “pelo acaso e pela força”.

Foi escassamente lido por aqui esse manual de arquitetura institucional que o uso viria a consagrar como a melhor que a humanidade produziu. A quase democracia brasileira encalhou em algum ponto bem mais próximo da versão romana que da americana. A Republica, entre nós, foi quase inteiramente “tocada de ouvido”. Não houve consertação nacional nem esforço abrangente de reforma institucional. O voto substituiu o “direito divino” mas o Estado herdou intactos os poderes discricionários do imperador sobre os súditos. Ao sabor das idiossincrasias dos presidentes tivemos, depois de duas ditaduras militares, o “acidente” democrático Prudente de Morais num breve hiato do qual Rui Barbosa teve a oportunidade fortuita de plantar o marco institucional do capitalismo brasileiro – única inovação real da Republica – com o resultado fulgurante que fez de São Paulo o que ele é até hoje. Daí em diante, porém, vimos, entre ditaduras e quase ditaduras, empilhando leis e decretos para restabelecer privilégios perdidos e criar novos, variando apenas as clientelas contempladas, e reduzindo cada vez mais o Brasil “self made” criado a partir daquela semente à condição de uma guerrilha de resistência.

Da quarta e última etapa de desenvolvimento da democracia, a que emancipa finalmente o eleitor como soberano absoluto do processo político, o Brasil ficou totalmente excluído. Mal tem notícia da sua existência, aliás.

A democracia americana da virada do século 19 para o 20 andava tão carcomida pela corrupção quanto a brasileira hoje. É nesse momento que, começando por uma única e solitária cidade, parte para a síntese entre o sistema representativo e o de democracia direta que inverteria a hierarquia da relação entre representantes e representados, submeteria o Estado à cidadania e liberaria as forças vivas da sociedade para mudar para sempre a velocidade do desenvolvimento.

O “recall”, primeiro instrumento dessa “virada”, foi importado da democracia suiça que o adotara meio século antes, e garante a todo e qualquer eleitor o poder de iniciar, mediante coleta de assinaturas, um processo de cassação do mandato do representante do seu distrito e a convocação de nova eleição a qualquer momento e por qualquer motivo, sem perturbar o resto do país. Com essa arma na mão, todo cidadão passa a ter a prerrogativa de desafiar qualquer aspecto do modelo institucional ou da ação governamental e obter obrigatoriamente uma resposta do seu respresentante sob pena de demissão. E isso altera radicalmente a ordem das prioridades na pauta política da nação.

Com um século de exercício dessa prerrogativa – que sem nunca ter passado do âmbito estadual bastou para desinfetar todo o sistema – os americanos, enquanto iam filtrando o joio do trigo, foram-se equipando, de reforma em reforma, de um ferramental cada vez mais amplo de intervenção direta no processo político que hoje lhes permite decidir no voto, sem pedir licença a ninguém, tudo que nós vivemos rezando para os nossos políticos fazerem ou deixarem de fazer por inspiração do Bom Jesus da Lapa.

Que impostos concordam em pagar; que quantidade de dívida cada governo pode emitir; qual o salário e as obrigações dos servidores; quem continua ou não empregado do Estado; qual a pena para cada crime no Código Penal; leis de inciativa popular que o legislador não pode modificar; poder de veto a leis aprovadas pelo Legislativo; confirmação ou não do juiz de cada circunscrição a cada quatro anos; revisões periódicas obrigatórias de constituições estaduais; escolha de diretores, currículos e professores das escolas públicas, tudo isso e muito mais é decidido diretamente no voto e entra ou sai da lista de questões incluídas nas cédulas de cada eleição por iniciativa de quem vota e não de quem é votado.

Democracia é isso. O resto é tapeação.

Ao fazer da facilitação das correções sucessivas de rumo o padrão do seu sistema num mundo travado pela burocracia a serviço do privilegio os Estados Unidos decolaram para o futuro. Essa nossa montanha de entulho institucional cheirando a idade média não dá mais remendo. O teste da História comprova que só ha uma maneira de construir um país “user friendly”: é as instituições passarem a ser definidas passo a passo pelos seus próprios usuários. E assim que isso começa a acontecer no elo primário da cadeia que é o município, todo o resto do sistema se vai ajustando pelo novo gabarito.

É um objetivo perfeitamente alcançável mesmo num sistema tão emperrado quanto o nosso. Apresentar cotidianamente à massa dos brasileiros o espetáculo da democracia em funcionamento onde ela de fato existe seria um poderoso acelerador. Mas ainda que a imprensa siga até o fim dos tempos tomando Brasília pelo Brasil e colocando ambos fora do mundo a rua pode conquistar sozinha esse direito fundamental à ultima palavra nas decisões que afetam o seu destino que define a democracia moderna. Tudo que é necessário é foco e persistência.

Seis pontos polêmicos do discurso em Paris

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Sob o impacto de duas más notícias na área ambiental, o desastre de Mariana (MG) e o aumento nos índices de desmatamento, a presidente Dilma Rousseff fez na Conferência do Clima da ONU um discurso correto – mas generalista e até um pouco acanhado, na avaliação de especialistas.

"A ação irresponsável de uma empresa provocou recentemente o maior desastre ambiental da história do Brasil, na grande bacia hidrográfica do rio Doce. Estamos reagindo ao desastre com medidas de redução de danos, apoio às populações atingidas, prevenção de novas ocorrências e também punindo severamente os responsáveis por essa tragédia", disse a presidente na COP21, que a partir desta segunda reúne 150 chefes de Estado em Paris.

No discurso, Dilma também citou o avanço no combate ao desmatamento no Brasil, mas não mencionou os dados divulgados na última sexta-feira – que mostraram justamente um aumento nos índices.

"É uma postura acanhada, quase constrangida, que fala do desastre de Mariana e fala de combate ao desmatamento quando os dados recentes mostram ampliação", diz Adriana Ramos, do ISA (Instituto Socioambiental).

Mas também houve acertos, dizem os ambientalistas. Entre eles, o pedido para que o acordo global do clima, a ser firmado no evento, tenha força de lei – Dilma fez a defesa de um documento "legalmente vinculante", quer dizer, de cumprimento obrigatório, com revisão a cada cinco anos.
1) Desmatamento

"As taxas de desmatamento na Amazônia caíram cerca de 80% na última década", disse Dilma em Paris.

Isso é verdade, mas a presidente não mencionou que, entre 2014 e 2015, houve um aumento de 16% no índice – a área desmatada corresponde a cinco vezes à da cidade de São Paulo.

"O Brasil não consegue mais falar de algo que vai fazer de bom, fica só evidenciando o que aconteceu nos últimos dez anos. A previsão para os próximos 15 anos, que é o período de que trata o plano, não traz nada de bom para a área florestal. A lei é fraca, permite muito desmatamento", afirma Marcio Astrini, do Greenpeace Brasil.

O plano apresentado pelo país para colaborar com a mudança no ritmo do aquecimento global promete acabar com o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, o que Astrini e outros especialistas criticam. Para eles, se há práticas ilegais, já é uma obrigação do governo combatê-las.

"Ela nem deveria falar de desmatamento ilegal, ainda mais só em 2030. O Brasil tem condições de fazer isso muito mais rapidamente", avalia Paulo Barreto, do Imazon.
2) Energia

"Todas as fontes de energias renováveis terão sua participação em nossa matriz energética ampliada, até alcançar, em 2030, 45%", afirmou Dilma, falando sobre o plano apresentado pelo Brasil.

Mas, para os ambientalistas, a fala não condiz com a realidade.

"Não acontece na prática, 70% dos investimentos do plano decenal (para dez anos) de energia do Brasil são para combustíveis fósseis. Pelo plano, a gente chega em 2030 com participação de energias renováveis muito parecida com o que temos hoje", diz Astrini.

"Não tem nenhuma grande revolução, isso segue a tendência atual", completa Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima.

3) Acordo, revisão e metas

A presidente Dilma pediu que o acordo de Paris seja legalmente vinculante, ou seja, que tenha força de lei.

Além disso, defendeu uma "revisão quinquenal" nos planos dos países e destacou que o brasileiro fala em termos absolutos.

"Nunca ouvi isso (legalmente vinculante) tão explicitamente na boca da presidente. É muito importante falar isso aqui. E pedir a revisão a cada cinco anos também", diz Astrini, do Greenpeace.

A questão da obrigatoriedade do acordo encontra resistência nos Estados Unidos, já que um tratado teria de ser aprovado pelo Senado norte-americano, de maioria republicana (oposição ao governo do democrata Barack Obama).

Já a revisão das metas a cada cinco anos é importante porque, até o momento, os planos nacionais não conseguem limitar o aquecimento global a 2°C acima dos níveis pré-industriais. A expectativa é que, com essas revisões, surjam metas mais ambiciosas e esse problema seja corrigido.

"Ela também fez um chamado para que países entreguem metas absolutas, não vinculadas ao crescimento de PIB ou outros fatores econômicos, como está no plano do Brasil", completou Astrini.

4) Redd+

Durante o discurso, Dilma também falou sobre o Redd+, mecanismo que permite a remuneração daqueles que combatem o desmatamento.

"Nosso esforços de combate ao desmatamento ilegal na Amazônia ganham agora um novo patamar de ação com a adoção da estratégia nacional da Redd+. O Brasil já preenche todos os mecanismos da convenção do clima para tornar-se beneficiário desse mecanismo", disse Dilma.

Mas os ambientalistas dizem que a estratégia não está pronta.

"O governo publicou na sexta-feira a criação de uma comissão para analisar isso", diz Adriana, do ISA.

"Esta estratégia, em discussão há mais de cinco anos em Brasília, existe apenas nas intenções do governo. Ainda nem sequer foi colocada em consulta pública", complementa Rittl.

5) Responsabilidade

A presidente afirmou em sua fala que o plano do Brasil tem como meta reduzir as emissões em 43% no período entre 2005 e 2030.

"Ela é, sem dúvida, muito ambiciosa e vai além da nossa responsabilidade pelo aumento da temperatura média global", afirmou Dilma.

Mas, para Rittl, isso não é verdade. Ele diz que, apesar de o Brasil ter uma meta ambiciosa em relação a outras economias em desenvolvimento, nem o país nem nenhum outro está fazendo o suficiente.

"Se todo mundo fizesse um esforço proporcional ao do Brasil, o aquecimento ainda ficaria acima de 2ºC. Pensar assim é péssimo para o resultado da negociação, os países não podem achar que estão fazendo o suficiente se a meta não foi atingida", diz Rittl.
6) Medidas de implementação

No discurso, Dilma citou também a forma como as medidas para impedir o aumento da temperatura global serão implementadas.

Trata-se de um grande tema das discussões sobre clima: os países em desenvolvimento lutam para que os desenvolvidos – que já poluíram muito para chegar onde estão agora – ajudem a financiá-los na transição para uma economia menos poluente, para evitar que isso prejudique seu avanço.

"Os meios de implementação do novo acordo, financiamento, transferência de tecnologia e capacitação devem assegurar que todos os países tenham as condições necessárias para alcançar o objetivo", disse a presidente.

Essas formas de implementação, segundo Astrini, devem ser uma questão-chave da conferência, já que o que está em jogo não são as metas – pois cada país já apresentou as suas, voluntariamente.

"Significa que o Brasil vai se juntar fortemente a países como China e Índia para que eles cobrem dos desenvolvidos colocar mais dinheiro na mesa", diz o especialista.

A casa da corrupção

Vemos que o programa abriu portas para a corrupção e o gasto desenfreado de dinheiro público 
Edilson Vitorelli, procurador-chefe do grupo de trabalho sobre o Minha Casa, Minha Vida

Nossa pequena história

O Brasil se move por acaso. As causas profundas, seculares, aparecem sob a forma de pequenos indícios, fatos e traumas inesperados que disparam uma mutação histórica. O que quer dizer essa frase? Que não são apenas as “relações de produção” que explicam nossa marcha; um país pega os cacoetes de seus políticos, que, por sua vez, repetem os cacoetes tradicionais do país, e isso vai numa corrente contínua que faz a história andar tortamente, povoada de acidentes de percurso, de neuroses, muito além de meros “blocos históricos” ou “luta de classes”.

O Brasil é uma região interna de nossa cabeça. E dela escorrem nossos vícios que nunca foram tão explícitos como hoje.

O Brasil se move por ínfimas causas, por bobagens casuais e tragédias intempestivas. É o que os franceses chamam de “petite histoire”. Pela petite histoire vemos a marcha de nossa endêmica esculhambação.


Há 13 anos estão no ar os sinais de perigo, os alarmes disparados e audíveis nos sutis detalhes despercebidos.

Os sinais se somam e explodem ao mesmo tempo; estamos vendo uma suja alvorada que nos dá uma frágil esperança de futuro.

No passado nem tão recente, Getúlio deu um tiro no peito e adiou a ditadura por dez anos. Jânio tomou um porre e pediu o boné. A ditadura começa com um general que se intitula uma vaca fardada. Vinte e um anos de fascismo caipira.

Aí, voltou a democracia.

Petite histoire trágica: um bichinho – um micróbio no rabinho do Tancredo mudou nossa vida e fez entrar para o governo outro micróbio de bigode. Vimos no velório seu rosto contrito de dor, num luto eufórico. Por um micróbio, encaramos Sarney por cinco anos, com seu jaquetão de teflon em que nada cola.

Outro detalhe: Collor caiu por causa de um Fiat Elba (ele se vingou agora, comprando Lamborghinis e Ferraris) e, dizem, denunciado por seu irmão Pedro, que ficou uma arara por causa do olho de Fernando em sua mulher. Logo depois Itamar se apaixona por uma atriz sem calcinha no Carnaval – o ridículo no poder.

Tudo que vemos agora começou com um ínfimo gesto: a mão displicente do Maurício Marinho pegando os R$ 3.000 que surgem no canto do quadro, e ele embolsa, escorregando-os para dentro do paletó, como quem recebe um troco de cafezinho. Dali ao mensalão, dali ao petrolão, foi uma revoada de escândalos. Nunca aprendemos tanto de cabeça para baixo. Por exemplo, já sabemos que a corrupção no país não é um “desvio” da norma, não é um pecado; é a norma mesma, entranhada nos códigos e nas almas.

Os sinais sempre estiveram no ar: os angus e as feijoadas nordestinas. As gargalhadas. A torta escultura feita de palha e barro, de gorjetas, de sobras de campanha, de canjica de aniversários e água benta de batismos. E as palavras solenes? “Minha honra”, “aleivosias contra mim”, “nobres deputados”, ostentando pureza, angelitude, com palavras encobrindo a bilontragem nas cumbucas, as declarações de renda falsas, os carrões, os iates, as casas com piscinas em forma de vagina no Lago Sul.

Indícios ínfimos: os cintilantes negros cabelos de asa de graúna de Lobão e, agora, os brancos cabelos de Delcídio, bastos, generosos, ostentando bondade, tolerância, e os cabelos acaju, que ficam entre o cinismo e o escárnio.

As gravatas horrendas de bolinhas. São coisas ínfimas, detalhes tão pequenos de nós dois...
E a cidade de Ribeirãozinho, no Maranhão, com o nome absurdamente mudado para Governador Edison Lobão... Sabiam?

E a distração da Dilma, (oh, coitada, que distraída!) que nem viu que estávamos comprando uma lata velha por US$ 1,5 bilhão em Pasadena.

E as dualidades arcaicas? Paralisia x voluntarismo, processo x solução, continuidade x ruptura, e a militância dos ignorantes, a burrice com fome de sentido, balas perdidas sempre acertando em crianças, caixas de banco abertas a dinamite? São sinais de perigo.

Também o dedo do Lula faz parte de nossa história. Se ele não tivesse perdido o dedo, continuaria operário, não teria sido líder sindical e o Brasil seria outro.

A casa da mãe Joana – surubas causam a queda de Palocci, que, no entanto, salvou a economia do país no primeiro mandato de Lula. Oh, complexo enigma entre sexo e política...

E a “presidenta”? Erro populista de português para o povão entender.

E a mandioca? E a bicanca arrogante de Cunha? O cinismo.

A tristeza do Levy, um padre tentando salvar pecadores. E a irresponsabilidade dos tucanos? O PT se acha superior a nós, os tucanos se acham mais elegantes.

E os halls de hotéis onde se tramam tramoias? Ali estão os sorrisos hipócritas, a amizade colorida em Brasília, a poética camaradagem cordial, a troca de favores, sempre com gestos risonhos, fortes abraços pela barriga, na doce pederastia de uma sociedade secreta.

E o medo visível no presidente do Senado, e as ameaças de ações penais, as calúnias, injúrias e difamações, e os danos morais, e as indenizações pretendidas, e a euforia de advogados, e as promessas a Jesus para proteger os formadores de quadrilhas, as mandingas, as galinhas mortas na encruzilhada, as esposas histéricas sem sexo no pânico de Brasília, o uísque caindo mal nas barrigas murmurantes? E o silêncio dos intelectuais? É fé ou medo?

E a lama cobrindo a paisagem, numa sinistra metáfora do presente?

A derrota de 7 a 1 do Brasil parece ter inaugurado a urucubaca que nos sufoca, piorada no segundo governo de Dilma. A partir daí, só más notícias.

Mas, sem dúvida, estamos mais cultos sobre nós mesmos, sobre o Brasil que nós somos.
Meu Deus, que prodigiosa fartura de novidades, fecundas como um adubo sagrado, belas como nossas matas, cachoeiras e flores.

E, finalmente, mais um detalhe importantíssimo de nossa petite histoire: um celular gravando a conversa dos quadrilheiros no hotel muda nossa pequena, mesquinha história.

Bernardo Cerveró mudou o país.

Devolver a vida

O rio Doce tem sua história ligada aos primórdios de Minas. Os primeiros navegantes portugueses, no século XVI, se aventuraram na região central do Brasil usando seu leito para subir de Linhares até o encontro com o ribeirão do Carmo.

Chegavam, assim, a Mariana e, mais precisamente, à “Passagem de Mariana”. Atraídos pelo ouro, fundaram a cidade de Ouro Preto. Os navios ficavam em Linhares, no Espírito Santo, em seguida rumavam para o Nordeste, alcançando a foz do São Francisco. As caravanas costumavam voltar com pedras e minerais preciosos em poucas semanas. Outras subiam as canoas em lombos de burros para “passar de Mariana” para o rio das Velhas, afluente do São Francisco. Por aí desciam e se reencontravam com os navios portugueses na foz do São Francisco, acima de Aracaju, para retornar todos juntos a Lisboa.


Nos 3.000 quilômetros de navegação fluvial, recolhiam pedras e especialmente couro de alta qualidade, produzido por colonos às margens do rio. Itacarambi e Januária eram paradas obrigatórias, São João das Missões, Mocambinhos e outras cidades nasceram nesse ciclo.

A região de Minas inicialmente era conhecida como Bahia, mas as riquezas minerais e a abundância e variedade não tardaram a dar-lhe o nome apropriado.

O Doce do rio se deve em parte às frutas tropicais encontradas a suas margens e ainda à tranquila navegação que dispensava.

Pelo rio Doce desceu o mineral que fez de Lisboa uma das cidades opulentas da Europa nos séculos XVII e XVIII.

Chegamos aos nossos dias e até a decisão de figuras eméritas que direcionam os destinos da Vale, até riscar de sua razão social o Rio Doce; certamente não imaginavam que depois de apenas alguns anos suas operações extrativas conseguiriam riscar do mapa socioeconômico do Brasil o rio por inteiro.

De Doce ficou vermelho de vergonha e morreu coberto de lama imprestável.

O conselho da Vale, cancelando o nome de Rio Doce, tirava de si a última razão de manter centros mais sérios de decisões em Minas. Onde nasceu e se fez gigante.

A empresa voltou ao status de colônia distante, passou a representar a preocupação com números e balanços, sem maior afetividade e laços com o seu berço.

A Vale notadamente não participa da vida cultural, social, artística de Minas. Nem adianta procurá-la. Refratária e distante aos apelos da comunidade.

Em Itabira, onde possui a sua mais rica mina depois daquela de Marina – dividida estrategicamente com o maior concorrente mundial, a australiana BHP –, se estabeleceu o maior número de suicídios do Estado nas últimas décadas.

Por que razão? Disse-me um vidente que de lá saem milhares de vagões de minério semanalmente com destino ao resto do mundo. Sabe-se que junto com o minério, altamente magnético, esvai-se o magnetismo do local. Trata-se de uma sangria de energia fluídica.

Talvez não seja bem isso, mas quem passa por cidades como Mariana e Itabira respira o abandono, a degradação urbanística, o cheiro da vampirizarão. Antigamente as afortunadas pessoas que exploravam as riquezas da região retribuíam com obras de arte, cuidava-se do aspecto exterior, bem disso o patrimônio mantém empregos no turismo.

Nas últimas décadas, com Minas reduzida a número frio, poucas foram as medidas compensatórias, nem tanto no aporte de recursos, mas na qualidade, no apreço com a população, com a história e seu meio ambiente. Apenas preocupação de extrair num ritmo frenético milhões de toneladas a cada ano. E deixar para trás um ambiente lunar.

Os grandes extrativistas, como os xeiques dos Emirados Árabes, disputam em obras colossais a forma de aproveitar do momento de fartura. Superam-se em investimentos urbanísticos e artísticos, até excessivos, de qualquer forma investem expressivamente no local de onde retiram suas fortunas. Quer dizer, preocupação, retribuição, sensibilidade que faltam à Vale.

Poderia, depois de tantos anos de lucro, mas nada foi atraído na região para transformar, fomentar e desenvolver um ambiente tecnológico de oportunidades.

Provavelmente, por essa falta de apreço com o local, deu-se o erro terrível. Subestimar os riscos.

Neste momento não se trata de aplicar multas que engordarão oportunistas que ainda devem prestar contas das centenas de milhões já recebidas, que evaporaram aos seus cuidados. A proposta também não pode ser a de fechar as portas da Samarco. Precisa voltar a operar e garantir os empregos e ter uma contenção compatível com o risco e os lucros da operação.

Ser obrigada para os próximos dez anos, ou 20 anos, a destinar grande parcela dos lucros das minas de Mariana para um fundo que devolva a vida onde, por causa dela, acabou.

A república dos cínicos

Lembra o Conselheiro Aires, célebre personagem de Machado de Assis, que o inesperado tem sempre voto decisivo nos acontecimentos. O ano parecia caminhar para o encerramento. E em tons inglórios. O enfrentamento da crise política estava sendo empurrado para 2016. Tudo indicava que o impasse — produto em grande parte da inoperância das forças políticas de oposição ao projeto criminoso de poder — iria se prolongar, até porque o calendário político do Congresso não é o mesmo que vigora para os brasileiros comuns. Na Praça dos Três Poderes, 2015 termina por volta do dia 11 de dezembro, e o ano vindouro só começa depois do carnaval — e para alguns somente em março.

Mas os acontecimentos de 25 de novembro vieram para atrapalhar — ainda bem! No dia anterior foi preso José Carlos Bumlai, considerado um dos melhores amigos de Lula. Bumlai conseguiu empréstimos privilegiados do BNDES. Acabou falindo. Contudo, a família está em excelentes condições financeiras. Um dos seus filhos, segundo noticiou O GLOBO, é um rapaz de sorte. Tinha um patrimônio avaliado em R$ 3,8 milhões em 2004. Seis anos depois, saltou para R$ 95,3 milhões, um crescimento de 25 vezes, algo digno de um livro de como prosperar rapidamente na vida. Mas o mais fantástico é que em 2012 o filho prodígio mais que duplicou o patrimônio: R$ 273,8 milhões.

O amigão de Lula vendeu uma de suas fazendas — a Cristo Redentor — para o banqueiro André Esteves por R$ 195 milhões, valor considerado muito acima do preço de mercado. O mesmo banqueiro, também no dia 25, foi preso, envolvido em transações pouco republicanas. É um dos representantes de uma nova classe criada pelo petismo: a burguesia do capital público.

Nesta teia de relações foi incluído o senador Delcídio Amaral, líder do governo no Senado. O senador, além de vínculos com Estevão e Bumlai, nos últimos anos esteve muito próximo de Lula. E todos eles estão relacionados com o petrolão, alguns já presos; outros, ainda não. A camarilha tinha na Petrobras o instrumento principal de saque. De acordo com perícia da Polícia Federal, o desvio do petrolão foi de R$ 42 bilhões, algo desconhecido na história do mundo.

Mesmo assim, os cínicos que nos governam continuam agindo como se nada tivesse acontecido — isso para não falar das obras da Copa, da Ferrovia Norte-Sul, da Usina de Belo Monte e de Angra-3. E a conjunção da corrupção com a irresponsável gestão econômica acabou jogando o país na crise mais grave da história republicana. Teremos dois anos consecutivos de recessão — sem esquecer que em 2014 o crescimento foi zero. E caminhamos para a depressão.

O significado mais perverso do projeto criminoso de poder e da crise econômica é a destruição dos projetos de vida de milhões de brasileiros. São projetos acalentados anos e anos e que a discussão da macropolítica acaba deixando de lado: os sonhos da casa própria, de obter um diploma universitário, de se casar, entre tantos outros, que, subitamente são inviabilizados. E os maiores atingidos são os mais pobres, que não têm condições de sequer vocalizar suas queixas, seus protestos.

A velocidade da crise não pode mais ser controlada. Quando o governo aparenta viabilizar um acordão negociado com o que há de pior na política brasileira, vem a Operação Lava-Jato para atrapalhar o negócio — pois não passa de um negócio. A ação do juiz Sérgio Moro é histórica. Age dentro dos estritos termos da lei e já obteve grandes vitórias. Até o momento, foram 75 condenações, 35 acordos de delações premiadas, 116 mandados de prisão e R$ 1,8 bilhão recuperados. E a 21ª fase da Lava-Jato acabou impedindo o acordão. Não é que a Justiça age na política. Não. É a política — entenda-se, os partidos e parlamentares de oposição — que não consegue estar à altura do grave momento histórico que vivemos. A oposição não faz a sua parte. Evita o confronto como se a omissão na luta fosse uma qualidade. Se estivesse no Parlamento inglês, em maio de 1940, defenderia negociar a paz com Adolf Hitler. O governo Dilma caminha para o fim sem que a oposição seja o elemento determinante.

Há uma fratura entre o povo brasileiro e a Praça dos Três Poderes. O poder é surdo aos clamores populares. Não é hora de recesso parlamentar. Recesso para quê? Em meio a esta crise? É justamente nesta hora em que o país precisa dos seus representantes no Congresso Nacional. Também não cabe a quem é responsável no STF pela Operação Lava-Jato — ou ao conjunto da Segunda Turma — gozar as intermináveis férias forenses. Há momentos na história de um país que férias ou recesso não passam de subterfúgios para esconder o desinteresse pelos destinos nacionais.

Só sairemos da crise econômica quando resolvermos as crises ética e política. É uma tarefa de sobrevivência nacional. Não é apenas um caso de corrupção de enormes proporções. É mais, muito mais. O conjunto da estrutura de Estado está carcomido pelo projeto criminoso de poder. A punição exemplar dos envolvidos no petrolão abre caminho para enfrentar a corrupção em todos os setores do Estado — pensando Estado no sentido mais amplo, incluindo o conjunto dos Três Poderes.

É indispensável retomar a legitimidade. E só há legitimidade com o combate implacável à corrupção. A impunidade está solapando as bases do Estado Democrático de Direito. A democracia não é instrumento para roubar o Erário e os nossos sonhos. Pelo contrário, é através dela que podemos exercer o controle efetivo da coisa pública. É somente através da democracia que construiremos o Brasil que sonhamos.

Marco Antonio Villa

No cardápio: supremo de frango

Cozinhe o frango em fogo brando, em água e sal. Deixe esfriar, desfie e refogue com temperos a gosto: alho, cebola, paciência e saco. Sirva com molho à base de caldo de galinha e duas colheres de raspas de queijos podres de nomes estrangeiros repletos de consoantes.

O leitor pode pensar: que coisa esquisita... o cara virou chef de cozinha? Respondo: não, nada disso, é que, dia desses, fui jantar com um amigo que aniversariava e fiquei impressionado com o prato que fui obrigado a comer, por imposição do chef, que não aceitava sugestão dos convidados. Só ele sabe, ou diz saber, o que é bom para todo mundo que come...

Se o saudoso e querido mestre Kafunga vivo fosse, diria, diante do que anda acontecendo neste país de cotas, pedaladas, ladrões de casaca e de moluscos e peixes-boi, que o mundo está próximo de “despingolar” no universo sideral... Não bastasse a inquietação causada pelo terror internacional, a mudança de costumes que querem nos impingir é verdadeiramente preocupante.
Como é de meu hábito, logo ao acordar, me lavo do “mingau das almas” e tomo café com o jornal aberto. A manchete diz: “Lewandowski pede paciência”. Pensei que se tratava de declaração do jogador de futebol alemão de mesmo nome, do Bayern de Munique, depois de levar umas botinadas. Mas a notícia se referia ao nosso (não tanto meu) Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, um brasileiro com nome de estrangeiro, saído da Justiça trabalhista do ABC Paulista por indicação do rábula ex-Luiz. Tomei um baita susto: de que reclama o ilustre jurista? Diz ele: “Estes três anos (após um eventual golpe institucional) poderiam cobrar preço de uma volta ao passado tenebroso de 30 anos. Devemos ir devagar com o andor, no sentido de que as instituições estão reagindo bem e não se deixando contaminar por uma cortina de fumaça que está sendo lançada nos olhos de muitos brasileiros”.

O quase gringo fala metaforicamente em “cortina de fumaça” para justificar uma crise política que considera eivada de artificialismo. Até parece a Dona Dilma falando, da cátedra, sobre terrorismo...

Como sou do tempo em que os juízes de direito só falavam nos autos do processo, e nem sequer revelavam para qual time torciam, eu só podia mesmo tomar o susto que tomei com a revelação de tão insigne personalidade, falando uma linguagem própria daqueles “embarcados” que elogiam o comandante do barco na iminência do naufrágio.

Como eu me pelo (do verbo pelar, esclareço, já que acabaram até com os acentos ortográficos) de medo quando percebo que autoridades da Justiça e, “in casu”, principalmente, um ministro do Supremo falam de políticas partidárias em manifestações de agrado aos sempre correligionários, fiquei pensando com meus botões: meu Deus, que tempos vivemos...

Continuando assim, já, já, estaremos comendo, por ordem de qualquer chef, esse inefável supremo de frango. Ó tempos, ó costumes!