quinta-feira, 19 de novembro de 2015

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Comemoração e destruição

Chego em casa, mas o aconchego do lar não atenua a amargura que trago na boca. Os jornais com notícias de sexta-feira — 13 — empilhados na sala de visita falam dos abomináveis atentados em Paris.

Meu olhos estão doentes, e mal leio os periódicos. A fofocalha que nos deleita em torno de quem vai ganhar o prêmio da maior imoralidade, da maior mentira, do discurso mais contraditório, da cena mais constrangedora, da maior ausência de medidas para diminuir uma pornográfica e estrutural desigualdade que desemboca em violência perde espaço para uma nova tragédia deste mundo urdido por nós mesmos.

Temos nossas caras esbofeteadas pelo que somos e encerramos dentro de nós. “Civilizados” e crentes escolhidos por Deus (e pela Razão!), continuamos com as mais plausíveis justificativas para o controle e o extermínio do outro. À Descoberta da América — que juntou a cara da Humanidade (a Europa) com a sua coroa (as populações ameríndias), esse outro desconhecido a ser conquistado e devidamente destruído — somam-se agora os vários islãs que julgávamos vencidos e que se relacionam conosco por imitação ou violenta rejeição.

De onde cheguei? Onde estava? Como era possível não saber da tragédia?

Vou por partes.

Na sexta, dia 13, eu, que moro em Niterói, me acordo às 5 da manhã para, às 10, seguir para São Salvador. Retorno à terra de meu pai para tomar parte num ato generoso: a comemoração do legado antropológico de Thales de Azevedo.

Em Salvador, almoço com os professores Ordep Serra e Paulo Ormindo de Azevedo. Ambos são intelectuais de longo alcance. Paulo é arquiteto e membro da Academia de Letras da Bahia e tudo sabe dos meandros antigos e modernos de Salvador. Ordep é um helenista de quatro costados, estagiário de Jean-Pierre Vernant e tradutor de especialistas em Grécia clássica. Já no aeroporto, sou gratamente surpreendido com o seu livro “Hinos órficos: perfumes”, um belo volume da série Kouros, numa tradução pioneira com notas penetrantes.

Eles me conduzem ao encontro “Relendo Thales de Azevedo, uma avaliação do seu legado”. Se ler é tudo, melhor que tudo, é reler.

Na sede da Academia de Letras da Bahia, participei com um velho amigo e colega, o professor Luiz Mott — cujo trabalho acadêmico inclui, entre outros, o importante estudo “Escravidão, homossexualidade e demonologia”, para não falar na sua pioneira luta contra a homofobia incrustada na cultura brasileira. A seu lado estava o jovem e brilhante doutor Diego Marques. Juntos, discutimos o que Thales de Azevedo realizou nos seus estudos da vida diária brasileira: do namoro ao banho de mar que virou praia, sem esquecer os ritos invisíveis dos nossos cotidianos.

Não fiz mais do que realçar como o trabalho antropológico tem tudo a ver com o estranhamento de rotinas — o ramerrão que fabrica a plausibilidade do real e produz a verdade para aquilo que dela escapa por intervenção das alteridades que nos confrontam e perseguem, seja a dos estrangeiros, a dos hábitos que estão fora e dentro de nós ou a do ambiente natural onde nos assentamos, o qual, até o último desastre, julgávamos confiável como as estrelas.

Falei com sentimento. Thales de Azevedo fez pesquisas fundamentais sobre o povoamento de Salvador e o catolicismo tradicional. Foi uma figura chave no estudo das relações raciais no Brasil, pesquisando o povo e as elites num livro único. Nos anos 80, começa a escrever sobre o futebol, dando o devido crédito ao meu pequeno trabalho. Em 1974, quando foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia, convidou-me para realizar uma das conferências magnas daquela reunião. Foi quando elaborei minha análise do “Você sabe com quem está falando?”, ensaio no qual denuncio tanto o autoritarismo aristocrático e hierárquico nacional, quanto o nosso ambíguo amor pela verdade e pela igualdade.

Thales de Azevedo e seus descendentes, sobretudo seu neto Thales Leite, têm permeado fraternalmente minha vida. Como muita gente esquece, vale lembrar que todas as vidas atingem outras vidas. Algumas pela calúnia irresponsável; outras, pela maldade leviana, quando uma pessoa que se imagina como o sal da terra atinge agressiva e mentirosamente a honra do outro, e o excremento vai para as tais “redes" de esgoto. Outras, no limite da crueldade, matam em nome de Deus na tentativa de escapar das regras morais deste mundo, como é o caso que hoje cobre as folhas deste jornal.

Não custa, neste Brasil de intrigas insuportáveis, mentiras pantagruélicas e ataques caluniosos, como o que ocorreu com a atriz Taís Araújo, dizer que o contrário pode também acontecer. O preconceito e a aleivosia podem vir de cima, de baixo ou do lado. Mas há o remédio da comemoração, do elogio, do reconhecimento, da luta e do perdão. O lado abjeto dos extremismos só termina quando os abrigamos e, com esperança, buscamos neutralizá-los. Sublimação é a chave para esses quase-impossíveis reconhecimentos do humano, como dizia Freud.

Eu já vivi isso antes. Enquanto inocentemente participava da comemoração de Thales de Azevedo na Bahia, ocorria o ritual destrutivo do terrorismo, em Paris. Em casa, quando escrevo esta crônica, tenho a prova cabal dessas correntezas do traiçoeiro rio da Humanidade: uma inocente, a montante; outra, imensamente cruel, a vazante.

Roberto DaMatta 

É possível ocorrer um ataque terrorista nas Olimpíadas do Rio?

Antes da tragédia terrorista cometida em Paris pelos fundamentalistas do Estado Islâmico, o Brasil dormia tranquilamente diante da possibilidade de que algo parecido pudesse acontecer durante os Jogos Olímpicos do Rio, que serão realizados dentro de alguns meses.

E hoje? O cenário mudou de repente, e os maiores especialistas em segurança afirmam que a possibilidade de que o terrorismo internacional volte seus olhos ao Brasil não pode ser descartada.

O ex-secretário de Segurança Nacional, José Vicente Filho, afirmou ao jornal O Dia que a possibilidade de um ato terrorista no evento “é cada vez mais real”, já que o Brasil receberá pessoas de todo o mundo e os olhos do planeta estarão fixos no Rio.

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Como se isso não fosse o suficiente, o Brasil precisará resolver sua grave crise política para enfrentar tal desafio, crise que enfraquece as instituições e deixa a sociedade insegura.

É verdade que os organizadores das Olimpíadas já planejaram um forte dispositivo antiterrorista com a colaboração de outros países e o estão intensificando depois dos atentados de Paris. Mas, como disse André Wolszyn, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto, autor de várias publicações sobre o tema, a Humberto Trezzi, do jornal Zero Hora, “o Brasil não está de modo nenhum preparado para o antiterrorismo”.

Na verdade, hoje os fatos estão demonstrando que nenhum país, nem os mais desenvolvidos e acostumados a sofrerem violentos ataques terroristas, parecem estar preparados. Os Estados Unidos não estavam, com seus poderosos serviços secretos, quando as Torres Gêmeas de Nova York foram derrubadas; a Espanha não estava, quando sofreu a tragédia de Atocha, apesar da dura experiência com o terrorismo do ETA; e a França não estava dias atrás quando foi surpreendida, apesar de se tratar de um país acostumado ao terror, desde a guerra de Independência da Argélia.

Todo o planeta é hoje um possível alvo do terrorismo islâmico, formidavelmente armado e organizado.

Mas, pelo menos hipoteticamente, o Brasil é ainda mais vulnerável por diversos motivos, como por se tratar de um território propício, com imensas fronteiras difíceis de se controlar; por não ter aprovado ainda uma dura lei antiterrorismo; pela facilidade, em um território de dimensões continentais, de infiltração dos fundamentalistas; pelas possíveis conexões e conivências entre o terrorismo islâmico e os traficantes de drogas que contam aqui com sistemas de informação e armas até mais sofisticadas do que as próprias forças policiais, sem esquecer a possibilidade de que uma parte da polícia pode ter sido comprada pelo narcotráfico.

Se os terroristas do Estado Islâmico buscam hoje cenários de impacto para ressoar suas proezas de violência, o Rio, cidade símbolo do turismo mundial, com os Jogos Olímpicos que trarão ao país milhares de atletas, meio milhão de turistas, e que serão assistidos por 4 bilhões de pessoas pelo mundo, não poderia ser melhor palco para eles.

O Rio, além disso, tem duas realidades que contrastam com a cultura de morte e de fanatismo religioso que odeia outras crenças e os prazeres da vida.

O Rio tem o Cristo Redentor como símbolo, emblema laico e cristão ao mesmo tempo, e a cidade é considerada como um dos lugares mais divertidos e desinibidos, amiga da festa e dos prazeres da vida, acolhedora como poucas do movimento gay internacional.

Tudo o que, justamente, os terroristas tentaram castigar com os ataques a Paris, cidade cristã por excelência e berço da diversão juvenil, algo que contrasta com a cultura da morte e do anti-prazer do credo do fanatismo islâmico.

Por último – e talvez no caso do Brasil, o mais importante – o melhor antídoto contra um possível ataque do terrorismo internacional são um Governo e um Estado fortes, unidos, capazes de enfrentar a nova violência demoníaca dos extremistas islâmicos. Um Estado sem medo e que gere segurança.

O Brasil se encontra, nas vésperas das Olimpíadas, em seu melhor momento de esplendor político e institucional, forte e com credibilidade entre seus governantes para enfrentar uma tragédia semelhante a que colocou a França de joelhos?

Talvez não, já que o país vive um dos ciclos de sua história republicana de maior crise política e econômica, com o governo fragilizado e desafiado no Congresso, com ameaças de impeachment contra a Presidenta da República, Dilma Rousseff, que goza de baixíssima popularidade, com políticos e empresários de peso na cadeia, acusados de corrupção, e com o PT, o partido do Governo, no momento mais baixo de credibilidade junto à população.

Por isso a urgência, segundo os especialistas, de que o Brasil chegue aos Jogos Olímpicos do Rio com pelo menos a crise política já resolvida. É triste e perigoso que um acontecimento dessa envergadura mundial seja realizado com forças políticas ainda desorientadas e em conflito, com uma sociedade dividida e com uma Presidenta da República que pode ser vaiada e contestada durante as Olimpíadas, como ocorreu na Copa do Mundo, ao invés de ser aplaudida e respaldada por todos os brasileiros.

Os lobos do terror sabem muito bem que nenhum país é tão vulnerável como o dividido, com um Estado fraco e em crise de credibilidade. E o Brasil sofre hoje um pouco de tudo isso.

É um país que muitos invejam por suas riquezas naturais e seu peso no jogo de xadrez mundial, mas que as crises política e econômica, as catástrofes naturais mal resolvidas como a de Mariana, assim como a cada vez mais grave violência da população, não parecem oferecer, nesse momento, a melhor imagem de tranquilidade aos seus moradores.

Torquemadas de todo o mundo, uni-vos!

.“Só há um deus e Maomé é seu profeta“, diz a bandeira do Estado Islâmico. “Alá é grande” é a última coisa que ouvem as vítimas da sua truculência. Mas esses deuses absolutos têm muito pouco a ver com aqueles outros que nasceram para explicar as maravilhas e consolar as dores deste mundo. Só aparecem, na história da humanidade, depois que ela aprende a se organizar pela violência.

O wahabismo, a tal “corrente radical do Islã” em que “se inspira” o grupo Estado Islâmico é só uma tática de assalto ao poder que, como o leninismo, funciona exatamente porque não põe nenhum limite à violência que emprega para conquistá-lo e mante-lo. Não é uma questão de sutilezas na interpretação da palavra de deus (ou de Marx). O wahabista (como o leninista) é aquele que se dispõe a empunhar a arma e puxar o gatilho; a torturar e estuprar filhas diante de seus pais. Os islâmicos sem mais nem menos (como os que por aqui saltavam “o muro”) são os que levam os tiros, os que são estuprados, os que se atiram ao mar.

Alá o escambau!

O tamanho do prêmio é quanto basta para explicar essa brutalidade toda. “Fazer deste mundo o inferno é o caminho para o céu aqui mesmo na terra”, é o sinal com que a realidade instalada no Oriente Médio de hoje acena. Se você tiver estômago para ser implacável o bastante pode se tornar o rei da sua própria arabia saudita.

Deus será você mesmo!
Só o assassinato randômico rende a onipotência, grau máximo da embriaguez pelo poder. Por mais unânimes, bizarras e degradantes que se tornem as demostrações públicas de “fé” das vítimas tentando evitar o suplício, elas nunca serão suficientes. O fatalismo é um ingrediente imprescindivel. É preciso que tudo agrida a lógica e o senso de justiça; é preciso que não haja explicação; é preciso que não exista meio de garantir isenção ou prevenir o pior. A onipotência alimenta-se de doses regulares de sangue. Não ha ponto de chegada. Quando todos os “hereges” se tiverem “convertido“, os assassinos redefinirão a heresia para continuar assassinando.

A primeira, de todos os tempos, é a mais básica. Mate para não ser morto. É daí que vêm os “soldados”. O resto da “mensagem” são “os meios” de cada momento. A de hoje é a do congraçamento planetário do mal. Porque não se agora dá? Torquemadas de todo o mundo, uní-vos! Que venham os psicopatas e os suicidas! Adeus ao tédio do crack e da heroína. Ha muito mais emoção em explodir e ser explodido.

A humanidade já viu isso em todos os tempos, em todas as línguas e em todas as latitudes. Essa é a história de todos nós. A barbárie é o padrão e o terror tem sido o instrumento universal da conquista e da manutenção do poder desde que há memória, inclusive nessa Europa das monarquias absolutistas que vieram cruxificando, degolando e queimando hereges até “ontem“.

Mas desde a fatídica sexta-feira 13 de Paris ha uma avalanche de tentativas de explicação mais sofisticadas da barbárie. É um perigo pois discutir as “razões” de assassinatos em massa é abrir espaço para que seus autores as forneçam e para que se apresente quem as aceite. A idéia de que a barbárie tem de ter uma “causação” racional decorre daquela crença de que o homem é essencialmente bom e tem de haver a interferência de algo externo para corrompê-lo. A história e a ciência apontam para o contrário. A barbárie é que é o estado natural da espécie, e ela tende a se tornar total sempre que é aparelhada de uma “religião“.

O Estado Islâmico é o fenômeno dos morros cariocas com ambições exponencialmente multiplicadas; o crime organizado com domínio sobre um território e amado/odiado por uma população imersa no horror que não tem a quem mais recorrer, só que sentado em cima de um mar de petróleo. Em que momento o chefe de uma quadrilha vira um rei e um complexo de favelas vira um estado nacional como o Iêmen do Sul? Historicamente a resposta tem dependido tanto da geografia quanto da oportunidade. Lá foram a corrupção e a guerra; aqui foi a corrupção sozinha que se encarregou dessa metade da receita. O resto depende do tamanho do butim.

A luta pelo poder sem limites tem uma lógica própria. Perder o poder que se instala e se mantém pelo assassinato significa a certeza de ser assassinado. Daí o vale-tudo. A cada “chefão” morto corresponderá uma nova guerra pelo seu espólio. Foi para deter a infindável espiral da barbárie nesses infernos dentro dos quais o suicídio na flor da idade passa a ser uma opção racionalmente palatável que a democracia foi inventada. Mas foi preciso esperar pelo surgimento de um território isolado por um oceano de distância do mundo culturalmente dominado pelos degoladores e torturadores de sempre e seu aparato “religioso” para que a idéia do império da lei encontrasse um chão onde pudese fincar raízes sem ser arrancada, supliciada e queimada viva à vista de todos para reafirmar o império do terror.
Fala-se, agora, num “sofisticado aparato” que teria sido necessário para perpetrar os assassinatos de Paris. Mas o que houve de essencialmente diferente neles dos que Al Capone protagonizava na Chicago do século 20, dos que o PCC perpetrou em São Paulo em 2006, ou ainda, das chacinas endêmicas do Brasil? O problema é o inverso; é a facilidade com que qualquer um pode perpetrar uma barbaridade, especialmente se não fizer questão de sair vivo da experiência.

O terrorismo é uma doença crônica tanto quanto o crime organizado e diferencia-se dele muito mais pelo tamanho das ambições envolvidas do que pelas condições que os tornam resilientes. Deus só entra nisso como coadjuvante e confundir as coisas é fazer o jogo do inimigo. As multidões que têm invadido a Europa não escolheram esse caminho. Gostariam de ter ficado em casa se o Estado Islâmico não estivesse lá. A solução para os dois problemas é uma só e a mesma. É imprescindível “ocupar os morros” e garantir a segurança neles, ou nunca haverá paz “no asfalto”. E para isso é necessário que todas as vítimas joguem juntas e a favor de uma “polícia” que faça por merecer essa confiança.

Que raio de país é este, afinal?

Deixo provisoriamente de lado o assunto corrupção para recapitular um pouco dos últimos anos e suscitar algumas questões que suponho sejam do interesse de todos os leitores.

Em 2009-2010, em dobradinha com Luiz Inácio Lula da Silva, o dr. Henrique Meirelles manteve a economia brasileira superaquecida; o objetivo, mais que evidente, era garantir a eleição da sra. Dilma Rousseff e proporcionar-lhe uma boa bancada de apoio no Congresso Nacional.

Iniciado o governo da sra. Dilma em janeiro de 2011, a retração econômica viriapar la force des choses, como se costuma dizer. Mas a sra. Dilma Rousseff e seu bravo escudeiro no Ministério da Fazenda, o dr. Guido Mantega, não receberam com alegria a ideia de serem atropelados pela força das coisas. No entender deles, a saída estava ao alcance da mão: bastava turbinar o consumo, dando rédea solta ao crédito, achatando os juros e despejando uns tantos bilhões em alguns setores-chave, a começar pelo automobilístico. Essa fórmula tão simples – que Dilma Rousseff até tentou explicar à primeira-ministra alemã, Angela Merkel... – reporia o Brasil na trajetória do crescimento e impediria o aumento do desemprego, preocupação socialmente bondosa e eleitoralmente mais que louvável.

Cortar gastos de custeio ou investimentos que ela mesma, a presidente da República, considera urgentes e de alta qualidade equivaleria a passar recibo de herege, logo ela, que, em tais assuntos, parece sentir-se diretamente inspirada por uma luz divina. De sua boca não sairiam as seis heréticas letras da palavra “ajuste”; que as pronunciasse o cavalheiro que ousou enfrentá-la na disputa presidencial de 2014. A “força das coisas” deu finalmente o ar de sua graça: milhões de brasileiros antes estimulados a ascender ao paraíso da “classe média” de lá retornaram com muitos carnês para pagar e o rabo entre as pernas.

E eis senão quando, nesse cenário concebido para não ter defeitos, de repente irrompeu um pequeno problema: certos “malfeitos”, como o Lula costuma dizer, escapuliram do local onde haviam sido ocultados, nos porões da Petrobrás. A força das coisas não é de aparecer a qualquer momento, mas consegue ser bem cruel quando aparece. Não foi preciso fuçar muito para se determinar que os “malfeitos” na Petrobrás foram meticulosamente urdidos durante o governo Lula e executados, em sua maior parte, quando a sra. Dilma Rousseff, uma competência administrativa cantada em prosa e verso, presidia o Conselho de Administração da grande estatal brasileira.

Do restante da história todos se lembram, não cometerei o despropósito de o relembrar. Passo, pois, às indagações a que me referi no início – e de antemão peço desculpas pelo aborrecimento que elas possam causar a meus eventuais leitores.

A primeira eu tomo emprestada de Francelino Pereira, um piauiense que governou Minas Gerais: “Que país é este?”. Ou, para ser mais preciso, que raio de país é este onde a sociedade inteira assiste passivamente ao sr. Lula e à sra. Dilma, movidos por sua gana de poder e pela busca da vitória eleitoral a qualquer preço, fazendo e desfazendo o que bem entendem?

Escrevi “a sociedade inteira”, mas apresso-me a fazer uma correção. A obrigação de dar um basta a disparates, ao desprezo pelos alertas que os economistas não se cansaram de fazer e a não poucas ilegalidades – essa obrigação cabe, em primeiro lugar, ao Congresso Nacional, aos partidos políticos e às elites. Sobre a inépcia do Congresso Nacional e dos partidos no período a que me estou referindo, creio que nada mais há a dizer. Digamos só que foi (tem sido) patética.

E as elites do País?

Os petistas que me perdoem: não posso desperdiçar o espaço de que disponho discutindo o sexo dos anjos, como eles gostam de fazer a propósito desse conceito. Qualquer pessoa alfabetizada e disposta a argumentar honestamente sabe que não há no Brasil uma elite aristocrática, inacessível, muito menos uma elite fechada, oculta, permanentemente ocupada em conspirar contra sabe-se lá o quê.

Elite, no Brasil, é o ápice para o qual convergem os indivíduos que mais se destacam na sociedade, uns poucos em razão de sua renda ou seu patrimônio, a vasta maioria por exercer funções hierárquicas elevadas em diferentes instituições ou organizações: empresários e líderes sindicais, desde logo, mas também a alta administração civil e militar, os principais jornalistas e editores, os professores universitários, os intelectuais mais produtivos, os clérigos mais altos das diferentes denominações e outros mais.

O que pergunto é, pois: que raio de país é este em que os integrantes de tais grupos não percebem ou aceitam passivamente o aviltamento da democracia, a dilapidação de recursos públicos numa escala astronômica e uma operação cuidadosamente planejada para subtrair recursos de uma empresa respeitada, por pouco não a levando à bancarrota?

A passividade dos grupos mencionados, o fato de levarem a vida como se habitassem um arquipélago, cada um em seu pequeno paraíso tropical; o desinteresse pela destinação dos impostos que pagam – tudo isso causa espanto.

Salta aos olhos que a imensa maioria fala de menos. E uns poucos, convenhamos, falam demais. Onde é que já se viu, numa democracia, um integrante da Suprema Corte – falo do ministro Ricardo Lewandowski – se dirigir aos cidadãos como conselheiro político: “Devagar com o andor, minha gente, esse negócio de impeachment pode levar a um golpe!”.

Bolivar Lamounier

Amigos, amigos

O ditado “Amigos, amigos, negócios à parte” está démodé. Não é mais necessário separar a amizade dos negócios. Ao contrário, pode-se muito bem ser amigo de alguém e fazer negócios com este. É até melhor. Como criticar alguém por prestar favores a um amigo? Em caso de zebra, a alegação de amizade também estende um vasto manto que a tudo encobre. E “honni soit qui mal y pense” – maldito seja quem nisso veja maldade.


O ex-presidente Lula fez muitas amizades pela vida. Começou amigo de intelectuais, jornalistas, padres, juristas, cantores, feministas, anistiados, velhos socialistas, liberais e democratas em geral. Mas essa turma só queria saber de produzir dissertações de mestrado, cozinhar macarrão uns para os outros e vender camiseta e estrelinha em porta de teatro. Alguns tentavam até obrigá-lo a ler livros. Lula custou a descobrir que, com eles, não chegaria a lugar nenhum.

Deu-se melhor quando os trocou por banqueiros, empreiteiros, latifundiários, usineiros, políticos da pesada – Sarney, Collor, Maluf –, especuladores, lobistas e doleiros. Esse pessoal, sim, sabe dar valor às amizades – com trocadilho, por favor. São pródigos em fornecer jatinhos, ceder de graça apartamentos em São Bernardo ou nos Jardins durante anos, vender triplexes no Guarujá a preço de mãe para filho, fazer doações “atípicas” a institutos fantasmas e pagar milhões por palestras de que não se conhece nenhum registro em vídeo, áudio ou mesmo telepatia. Aos amigos, tudo.

Pena que, em torno dessas pessoas tão generosas, fervam acusações na Justiça envolvendo formação de cartel, assalto aos cofres da Petrobras, favores tributários, compra de medidas provisórias, pagamento de propinas, predação de recursos públicos etc.

E daí? – diria Lula. Amigos, amigos, negócios fazem parte.

Liberdade de expressão

Em vigor há uma semana, a mal formulada Lei do Direito de Resposta já é usada por políticos envolvidos em suspeitas para tentar intimidar jornalistas e, consequentemente, inibir a publicação de notícias a seu respeito.

O senador Delcídio do Amaral (PT) inaugurou a prática. Em depoimento à PF, o delator Fernando Baiano afirmou ter pago entre US$ 1 milhão e US$ 1,5 milhão em propina ao parlamentar por meio de um suposto "amigo de infância".


Procurado pela Folha para tratar do assunto, Delcídio ameaçou recorrer à nova lei de direito de resposta caso o jornal divulgasse as declarações do delator. A mesma ameaça foi feita ao jornal "O Globo".

O chamado "Outro Lado" é fundamental para o trabalho jornalístico. Ao procurar uma pessoa sobre a qual há algum tipo de suspeita, o veículo faculta ao entrevistado a oportunidade de rebater as acusações que lhe são imputadas. Não é incomum, inclusive, ao ouvir contra-argumentos, um jornalista se convencer da impropriedade de uma denúncia e desistir de publicar a reportagem.

Ou seja, ironicamente, o senador ameaçou entrar na Justiça com um pedido de resposta justamente para não ter de dar aos jornais sua resposta às acusações. Ficou claro que seu objetivo não era defender-se, mas impedir a publicação da suspeita.

O senador faz isso porque a nova lei, embora necessária, foi malfeita. Criou obstáculos para que os veículos possam se defender, bem como tem um defeito de concepção.

O direito de resposta deve ser assegurado quando a publicação se recusa a dar a versão de um acusado ou quando erra na divulgação de um fato. A lei, porém, atende ao "ofendido" pela notícia, ainda que o veículo tenha apenas reproduzido uma acusação ou emitido uma opinião.

O senador pode ter razão em sentir-se ofendido pelas declarações do delator –cabe à Justiça julgá-las–, mas isso não significa que o jornal não tenha o direito de reproduzi-las.

Censura, esbulho e culto ao furto

Empresas fecham as portas, 3 mil trabalhadores perdem o emprego a cada dia, a inflação atinge o segundo dígito, o crédito externo desce como a lama tóxica das represas de rejeito da Samarco (São Marcos, como diria Dilma Rousseff em mais um lapsus linguae de mulher sapiens), que mata e esteriliza as margens do Rio Doce. É a tempestade completa? Parece que não: vêm aí a censura de volta, o esbulho da propriedade intelectual individual e não um mero incentivo ao crime, mas a apologia e o culto ao furto, a exaltação da corrupção impune e anistiada. O legado do lulodilmopetismo ainda está por se completar.

O caro leitor deve estar lembrado de dona Solange, a censora soturna que simbolizou durante a ditadura militar a interdição da dissidência, a negação do contraditório, a imposição do pensamento único. Ela está de volta na lei que assegura a honra imaculada de quem não a tem. A censora-símbolo reencarnou no senador Roberto Requião (PMDB-PR), cujo projeto sancionado pela presidente extingue a exceção da verdade, que, em tempos de democracia, é a única garantia da livre exposição de malfeitos para conhecimento do cidadão, que paga a conta e o pato. Ao fazê-la sumir, o nobre parlamentar extingue o acesso do cidadão à plena verdade e ao pluralismo de opinião, sem os quais não há liberdade de expressão nem plena vigência do Estado Democrático de Direito.

A nova lei é oportunista, mas também resulta da preguiça, da inércia e da soberba da sociedade civil, que não cuidou de encaminhar ao Congresso um texto legal rigoroso para punir profissionais da comunicação que abusem da liberdade de expressão para enxovalhar de forma criminosa a reputação de inocentes. Um direito de resposta digno desse nome deveria ter sido levado à aprovação dos legisladores em qualquer das muitas oportunidades em que a Lei de Imprensa, entulho autoritário da ditadura, foi jogada no lixo da História. Ao garantir a honra alheia, essa iniciativa impediria a introdução do vírus censório revanchista de Requião no vácuo legal.

Aprovada na pior legislatura de todos os tempos e sancionada pelo mais impopular dos presidentes, a lei introduziu num ambiente judicial lerdo prazos draconianos: 24 horas para veículo de comunicação se explicar e três dias para juiz sentenciar. Num ambiente de absurda lentidão processual para a maioria, o Legislativo – que, em vez de representar a cidadania, a envergonha – restabelece o rito sumário das tiranias em benefício próprio. Não à toa, o primeiro a recorrer a ela foi o notório Eduardo Cunha.

Dilma, que definiu a liberdade de imprensa como “pedra fundadora da democracia”, vetou um absurdo, mas deixou que a sutil confusão entre ofensa e calúnia fizesse de sua metáfora mineral uma lápide.

Só resta ao cidadão contar com a coerência do Supremo Tribunal Federal (STF), que tem podado com perseverança os brotos de joio que adeptos da mais recente voga totalitária, o bolivarianismo, têm tentado semear em meio ao trigal.

O STF é também a última esperança que artistas têm de evitar outra tentativa do Estado de estrangular seus direitos de propriedade intelectual. Dia 25 os ministros começarão a julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade n.ºs 5.062 e 5.065 contra a Lei 12.853, aprovada a toque de caixa por um Congresso desavisado e assediado por lobistas. Estes conseguiram com rapidez inédita em tramitação de leis (48 horas) estabelecer o controle do Estado sobre bens e direitos privados de autores, compositores, artistas e produtores culturais.

Essa lei – entusiasticamente apoiada por um grupo de celebridades da produção cultural que teve no Supremo derrotada sua pretensão de censurar biografias não autorizadas – força entidades privadas dos artistas existentes há mais de 50 anos a obter autorização do Estado para funcionarem e gerirem seus recursos. E as obriga a ceder os próprios bancos de dados à autoridade, violando a privacidade de seus sócios.

Um comissariado do Ministério da Cultura, composto por militantes da internet livre e outras castas de dirigistas culturais, arbitrará dúvidas de propriedade intelectual. E controlará o uso de bens individuais por entidades privadas, atropelando o princípio constitucional que garante aos autores o exclusivo direito sobre suas obras, inclusive o de geri-las.

Enquanto essa discussão só começa no Judiciário, o Legislativo aprova, com pressa inusitada, lei que autoriza a repatriação de recursos ilícitos depositados no exterior. Neste caso, mais do que incentivo ao crime, há o culto ao furto – da motivação à tributação. Incapaz de gerir sua máquina de moer recursos públicos, o governo vê na oferta de anistia a dinheiro cujo “usufrutuário” não tem como provar a origem uma fonte de recursos para tapar o rombo produzido em suas contas por irresponsabilidade sem freios e gastança sem fundo.

O senso comum não recomenda os delírios febris de arrecadação imaginados por Joaquim Levy com a anistia dada pelo relator, deputado Manoel Júnior (PMDB-PB), conhecido em nosso Estado, a Paraíba, pela sugestiva alcunha de Mané Pistoleiro. É irrealismo demais sonhar que alguém traga de volta recursos em moeda forte guardados em bancos confiáveis para a tormenta de uma crise sem bonança à vista, e sob gestão descontrolada de quem por incúria a gerou.

Para além do delírio, há, porém, uma questão de justiça óbvia que congressistas comprados por pixulecos orçamentários fazem questão de desconhecer. Que consequências trará o desprezo desumano e desonesto por quem cumpriu à risca suas obrigações fiscais – quase todos os contribuintes – neste vertiginoso desabamento da arrecadação pelo Fisco?

Dilma mentiu mais uma vez ao jurar amor incondicional à liberdade de expressão, seu governo patrocina o esbulho pela patrulha cultural do direito autoral e condecora sonegadores como heróis da saída do Tesouro do pré-sal. Que chances terá de convencer os bons pagadores a cortarem os pulsos?