quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Crônica de uma prostração anunciada

O quadro que hoje nos é dado contemplar se compõe de duas partes nem um pouco edificantes. De um lado, uma crise econômica monstruosa – cuja duração ninguém de bom senso se atreve a prever –, em sua maior parte causada pela incompetência e pela arrogância da atual presidente, Dilma Rousseff, em seu primeiro mandato. Do outro lado, um sistema político em decomposição – fenômeno complexo, que vem de algum tempo, no qual, porém, as digitais de Lula e Dilma e do petismo são facilmente reconhecíveis.

Triste Brasil

Com tal quadro à nossa frente, o jeito é aguardar. Mas aguardar o quê, exatamente? Ou alguém acredita que uma recuperação de verdade – com probidade, competência, reformas estruturais sérias e uma real possibilidade de crescimento sustentável – esteja ao alcance da mão? Aguardemos, sim, mas sem grandes ilusões: a recuperação, quando vier, será morna, sofrida e humilhante; aquela a que o Brasil sempre pareceu condenado, e que não se vai alterar agora, após 13 anos de lulopetismo.

A verdade nua e crua é que a sociedade brasileira, apesar das manifestações e dos protestos de rua, continua politicamente paralisada. Tanto está que dias atrás, com o sol a pino, lhe aplicaram um passa-moleque: celebraram um acordo obsceno, apelidaram-no de negociação política e o esfregaram em nossas faces. A verdade, ia eu dizendo, permanece paralisada, catatônica, afundada num estado de profunda impotência. Não há outra explicação para o fato de nos mantermos adstritos a um debate aguado, tão estreito como estreitas são as perspectivas imediatas do processo político.

Sim, é certo: há uma preliminar a resolver. Uma preliminar chamada Dilma Rousseff. Renúncia ou impeachment? Se nem uma coisa nem outra, terá o Brasil reservas de energia para aguentar mais três anos de um governo desses?

Essas duas questões contêm 99% do debate que nos vem ocupando desde os primeiros dias de janeiro de 2015; enquanto isso, preocupados com a vertiginosa deterioração do quadro econômico e político nacional, temo-nos visto como que de mãos atadas, passivamente acompanhando o caminhar da vaca para o brejo.

Tivéssemos no Congresso Nacional pelo menos três ou quatro dúzias de parlamentares à altura das necessidades do momento, esse falso problema já estaria resolvido. Por que falso? Ora, pela boa e singela razão de que impeachment não é um processo estritamente criminal; adequadamente compreendido, é um processo institucional, uma providência que se impõe e uma decisão que se toma para preservar a saúde do organismo político.

Vejam os meus caros leitores e leitoras a arapuca em que certa interpretação ultralegalista nos aprisionou. Quando presidente, o sr. Fernando Collor de Melo abastardou em diversas ocasiões o espírito da Constituição da República e cometeu, por interposta pessoa, o sr. Paulo César Farias, um rosário de crimes. Sua queda, no entanto, somente se consumou porque ele não conseguiu explicar como se tornara proprietário de um Fiat Elba.

Venhamos à sra. Dilma Rousseff. Durante quatro anos, agindo contra o conselho de dez em cada dez economistas, ela se aferrou a uma política econômica alucinada, cujo resultado aí está à vista de todos. As consequências não poderiam ser mais claras: milhões de famílias brasileiras sofrendo com a perda de renda, a inflação e o desemprego. Por essa demência, o Congresso Nacional não tomará a decisão política de afastá-la; agirá, porém, em dez minutos, se ficar comprovado que foi a uma loja de bijuterias e enfiou um colar na bolsa, ou seja, se alguém encontrar a assinatura dela no pé de uma página na qual alguém tenha meticulosamente anotado quanto e como o dinheiro ilícito da Petrobrás foi parar em sua campanha.

Se o Congresso Nacional, na vigência do que denominei uma interpretação ultralegalista do impeachment, não pode agir – e nesse sentido tenho de lhe dar razão –, a alternativa é ela ser persuadida por quem de direito e optar pela renúncia. Não preciso lembrar que “quem de direito” atende pelo nome de Luiz Inácio Lula da Silva. Quem pariu Mateus que o embale.

Se nada disso acontece – e sendo a atual classe política o que é –, a alternativa é permanecermos manietados por nossa própria impotência, discutindo o sexo dos anjos? Ou retomarmos a busca para diversas questões verdadeiramente importantes que ficarão à nossa espera bem ali, no fim do túnel, quando avistarmos a luzinha bruxuleante da “recuperação”?

Primeiro, até onde a sociedade brasileira vai admitir que Lula et caterva a manipulem escancaradamente, lhe mintam sem ruborizar e a ameacem com a violência – lembrando que a alusão ao “exército do Stédile” foi a mais despudorada, mas de forma alguma a única dentre tais ameaças? Ou, sem ir tão longe, até quando tentarão de tudo para achincalhar a vida política e constitucional do País, e para o fazer calculadamente, pensando no proveito que a desmoralização pode render à sua “causa” (seja ela o que for)? De fato, no ofício de agredir as instituições, ninguém na História da República fez mais do que Lula: ninguém se colocou tão acintosamente acima do bem e do mal, ninguém foi tão sistemático no semear a cizânia e na tentativa de criar duas classes de cidadãos – os imputáveis e os inimputáveis, sendo ele, naturalmente, o nunca assaz louvado representante da segunda.

A verdade, caros leitores e leitoras, é uma só: não fossem o ministro Joaquim Barbosa e o juiz Sergio Moro, esse processo não teria sido sequer compreendido, muito menos denunciado, e menos ainda obstado, como espero que ocorra brevemente.

A peleja entre o moderno e o arcaico

Não é de hoje o conflito entre o arcaico e o moderno, no Brasil. Essa peleja vem de longe, atravessou séculos, marcou todos os campos da sociedade brasileira. O país só avançou quando o novo conseguiu vencer o antigo, deslocando seus interesses incrustrados nos aparelhos do Estado. Por aí a oligarquia cafeeira foi deslocada e a República Velha soterrada. Por esse caminho o Brasil deu passos largos na direção de um país industrial e moderno, nos governos Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek.

A história tem suas ironias. O golpe de 1964, um movimento de reação às reformas de base com o qual também se identificaram forças retrógadas do ponto de vista econômico e social, findou por promover uma “modernização conservadora”, dotando o Estado de um mínimo de racionalidade e capacidade de planejamento. Mas sem mudar a sua essência, de ser, ao mesmo tempo, o depositário de interesses patrimonialistas e corporativistas.

A Constituição Cidadã, foi, sem dúvidas, outro grande marco no rumo da contemporaneidade. Consagrou direitos sociais, fixou um ordenamento democrático e criou as condições para o pleno exercício de instituições permanentes republicanas como o Ministério Público, a Polícia Federal, entre outras. Aquilo que foi plantado lá atrás, em 1988, hoje dá provas de sua eficácia e é embrião de um Estado Moderno que tende a se afirmar, em contraposição ao Estado patrimonialista.

A peleja entre o arcaico e o moderno não parou por aí.


Nos meados dos anos 90 deslocou-se para a economia. Naquele momento, era preciso deixar para trás o vetusto da espiral inflacionária, modernizar e sanear o sistema financeiro, controlar o gasto público, implodir os cartórios, criar regras estáveis com vistas ao fortalecimento de uma economia aberta e de mercado.

Esse foi um dos grandes méritos do governo Fernando Henrique Cardoso, muito embora, para promover o aggiornamento da economia, tenha sido obrigado a fazer aliança com o atraso, como ele mesmo afirmou sucessivas vezes. Mas o fez blindando determinadas áreas estratégicas, protegendo-as da prática predatórias, da voracidade dos aliados. Fez mais: deu enorme passo no rumo da modernidade, com a criação das agências reguladoras.

A grande tarefa de seus sucessores seria dar prosseguimento a essa modernização. Isso não aconteceu.

Nos governos Lula-Dilma houve o revigoramento do arcaísmo.

Mecanismos permanentes de Estado, como as agências, perderam relevância, enquanto o governo de plantão se hipertrofiou. Centros de excelências como o Itamaraty viraram peças ornamentais, para não falar da instrumentalização de outros, como o que aconteceu no BNDES ou em empresas públicas como a Petrobrás. E a responsabilidade fiscal foi mandada às favas.

A crise que vivemos é a crise de um acasalamento entre um projeto de poder com o velho patrimonialismo político e com o capitalismo parasitário acostumado a mamar nas tetas do Estado, altamente refratário ao risco e à livre concorrência.

Registre-se: tão acostumados com a impunidade, os predadores do erário público agiram como se tivessem na era analógica, deixando impressões digitais por todos os lados. E as instituições de investigação estavam numa etapa bem superior, no topo da era digital, capacitada e qualificada para cumprirem, com galhardia, seu papel em um Estado de Direito. Vive-se, portanto, mais uma quadra importante no embate entre o arcaico e o moderno.

O primeiro, ainda hegemônico, tem hoje dois grandes bunkers: o Executivo e o Legislativo. Esses não se renovaram, estão na contramão dos sentimentos da sociedade, que não aceita mais o modelo do toma-lá-dá-cá e a institucionalização do balcão de negócios.

A rejeição é muito mais profunda. Há uma crise de representatividade cuja intensidade os partidos políticos ainda não dimensionaram.

Pensar que o governo representa o arcaico e a oposição o moderno, é doce ilusão. Ou então puro maniqueísmo. Afinal, nada mais arcaico do que o discurso da incoerência, do que alianças casuísticas contraditórias aos valores éticos.

O velho ainda não morreu e o novo ainda não surgiu. Mas, felizmente, a forma ossificada de se fazer política, ou de se fazer negócios por parte de segmentos empresariais, esbarra na ação de instituições republicanas que apontam para um horizonte mais alentador.

Os inomináveis


Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estariam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem pelo este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram da sua vida uma sistemática ação perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes
José Saramago,

A travessia

Havia um rio, não muito fundo, mas também não muito raso. Numa das margens havia muita fartura, do outro lado, muitas dificuldades. No entanto, para quem conhece aquele rio, chamado de Santa Cruz, sabe que não há razão de ele ter margens tão diferentes. Como isso é uma fábula, pouco importa, mas no mundo real sabemos que a sobrevivência de um rio depende de vários fatores, sendo fundamental que suas margens sejam preservadas e longe da ação de picaretas, com ou sem duplo sentido.

Um dia, um escorpião, cansado de passar de uma margem para outra, encontra um sapo preparando-se para atravessar o rio e pede sua ajuda. O sapo, com cara de esperto, pergunta como poderia ajudá-lo. O escorpião diz que seria muito simples: ele subiria nas costas do sapo e com isso faria a travessia de forma tranquila. O sapo quis saber o que ganharia com isso, além do que o escorpião poderia facilmente matá-lo, com seu ferrão venenoso, ao final da travessia. O escorpião disse que estava muito cansado de fazer aquela travessia, pois, devido ao seu tamanho, tinha que fazer muito esforço, ao passo que o sapo faria aquela aquilo muito mais rapidamente. Além do que, prometeu o escorpião, eles unidos poderiam ficar muito melhor, pois em troca da ajuda o escorpião prometeu que mataria os outros sapos da outra margem, para que ele fosse o único sapo em toda aquela margem cheia de fartura.

O sapo, ganancioso, achou bom o acordo e permitiu que o escorpião subisse em suas costas. Então iniciaram a travessia.

Quase chegando ao outro lado, o sapo foi surpreendido pela ferroada envenenada do escorpião no meio de sua costas, diante do olhar dos outros sapos, que a tudo assistiam e não entendiam como um sapo dava carona para um escorpião. O sapo, que só tinha cara de esperto, morrendo, vociferou ao escorpião sobre o acordo que haviam feito. Este, indo ao encontro das riquezas e de novos acordos, lhe disse: “Lamento, é da minha índole.”

A origem dessa fábula é desconhecida, mas parece ter sido na antiga Pérsia. Nessa versão, é uma tartaruga que transporta o escorpião; protegida pelo seu casco, consegue afogar o escorpião, que tenta picá-la. Porém é com o sapo que a fábula ganha o mundo.

Fica aqui a recomendação de sua interpretação cautelosa por quem gosta de metáforas e fala tanto em travessias, nesse momento politicamente tão complicado, pois não existem sapos com casco de tartaruga. 

Defensores do governo e do impeachment - duas atitudes morais

Eduardo Cunha foi um exemplo que caiu dos céus no inferno moral brasileiro. Ele está aí como um divisor de águas. Surpreso, leitor? Acalme-se, o petismo ainda não conseguiu me enlouquecer.

Eduardo Cunha obteve seu primeiro mandato como deputado federal pelo PMDB, em 2003, ou seja, ele acompanhou como deputado da base três dos quatro mandatos presidenciais petistas. O dinheiro que está depositado em suas contas na Suíça foi conquistado com o "suor de seu rosto" nas mesmas falcatruas que enriqueceram outros parlamentares dos partidos que apoiam o governo. Participou dos mesmíssimos trambiques que custearam as campanhas presidenciais petistas. Só se afastou do governo em fins de 2013 quando percebeu que as fissuras abertas no apoio a Dilma poderiam lhe proporcionar a presidência da Câmara dos Deputados. De fato, somando as perdas do governo com os ganhos da oposição ele superou por vários corpos de vantagem, o parelheiro da comissária, o arrogante deputado Arlindo Chinaglia.

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A inimizade estabeleceu-se instantaneamente. O governo afundava em escândalos e a economia em crises. Cunha tornou-se, então, figura-chave para viabilizar um incontornável processo de impeachment. E é a partir desse exato momento que se justifica a frase inicial deste artigo: Cunha caiu dos céus no inferno moral brasileiro.

Primeiro, e principalmente, porque foi dentro das investigações referentes à operação Lava Jato que seu nome surgiu na ribalta dos escândalos. Ora, para quem dizia que a operação era uma armação golpista, nada mais contragolpista do que desmoralizar o arqui-inimigo do governo. Acho que isso até os petistas entendem: a denúncia contra Cunha é atestado de isenção da Lava Jato. Segundo, porque o fato separa nitidamente duas atitudes morais. De um lado, a dos que defendem com unhas, dentes e os mais encardidos sofismas um governo que apodreceu sob a ação de seus "heróis do povo brasileiro". De outro, a atitude dos que colocavam esperanças na atuação de Eduardo Cunha como presidente da Câmara dos Deputados. No entanto, meteu o pé na jaca? Fez o que não se faz? Dane-se e pague a conta de seus atos! Ele não tem em seu favor senão vozes isoladas entre mais de cem milhões de brasileiros que querem ver o petismo pelas costas. Responda-me, agora, leitor amigo: isso não revela duas posições moralmente opostas - a daqueles para quem o poder vale mais do que a honra e a daqueles que não sacrificam dignidade em nome de causas políticas?

Por fim, um exemplo adicional. Os petistas militantes, os que estão para o que der e vier, em flagrante desrespeito à verdade (e este é o primeiro degrau na escada da corrupção) querem fazer de Eduardo Cunha um exemplo da corrupção oposicionista, mesmo sabendo que foi dentro dos contratos dos governos petistas, enquanto membro da base, que ele acumulou a fortuna localizada em bancos da Suíça.

A função da substituição institucional

Há algumas semanas, em artigo neste espaço, afirmei que o sistema político brasileiro não está preparado para lidar com uma crise da magnitude e complexidade da que vivemos. Se há uma marca típica desta crise, é a absoluta predominância dos interesses pessoais e partidários que se sobrepõem despudoradamente sobre os interesses nacionais.

Entre outras perdas que este processo de crises acumuladas acarreta, encontra-se a inviabilização do exercício da função de substituição institucional. Essa função, atributo de democracias estáveis, é invariavelmente ausente em democracias instáveis. Ela consiste na capacidade de uma instituição de assumir a defesa de valores ou funções indispensáveis à vida social organizada, que as organizações responsáveis por eles deixaram de proteger, por motivos políticos.

Karl Polanyi, na sua obra clássica The GreatTransformation, analisa, de maneira notavelmente original, a revolução industrial na Inglaterra detalhando como se deu esse processo ao longo do século 19. Quem defende a sociedade e os segmentos populacionais dos desajustes sociais gerados pela industrialização, quando as organizações que deveriam defendê-los se revelam incapazes de ou desinteressadas em fazê-lo?

Em situações como essas, pode acontecer que outros segmentos da população ou mesmo outras organizações protejam – por interesse ou por motivos políticos – aqueles que não dispõem dos meios para se defender das consequências do processo social em curso. Foi o que aconteceu na Inglaterra, quando diferentes setores da sociedade e da política inglesa assumiram a responsabilidade pela proteção dos fundamentos da nação britânica, impondo limites de social, econômica e política às tendências tirânicas do mercado, na primeira fase da revolução industrial.

“O ser humano, tratado como força de trabalho, a natureza tratada exclusivamente como terra, eram concebidos apenas como bens à venda no mercado. Entretanto, tratar o ser humano e a natureza pela ficção da ‘commodity’ desconsiderava o fato de que entregar o destino do solo e das pessoas ligadas à sua exploração ao mercado equivalia a aniquilá-los” (Polanyi, op. cit.).

Em consequência, a contra-medida defensiva destinada a conter a ação socialmente desagregadora do mercado exigia alguma forma de intervencionismo que, por definição não poderia vir do mercado. A Lei Speenhamland foi o muro erguido para defender as organizações rurais tradicionais.

Coube, então, aos senhores rurais da Inglaterra, que ainda detinham o poder político – por interesse ou por inclinação –, proteger a agricultura e a vida dos agricultores do impacto avassalador das mudanças que varriam a sociedade rural e transformavam a agricultura numa precária atividade industrial. Por um período crítico de 40 anos essa ação retardou o progresso econômico industrial e quando, em 1834, o Parlamento da reforma eleitoral (1832) aboliu Spenhamland, os nobres ingleses mudaram o foco de sua resistência ao mercado extremado para as leis fabris.

Interesses políticos, econômicos e nacionais de enorme importância estavam também em jogo. Politicamente tratava-se também de proteger as bases rurais da sociedade inglesa do avanço da crescentemente poderosa burguesia, assegurando a sobrevivência da aristocracia numa sociedade urbana e industrial na qual, em tese, ela não mais exerceria função socialmente necessária.

O interesse próprio, arejadamente entendido, levou então a aristocracia a unir-se politicamente primeiro aos trabalhadores rurais e a partir da segunda metade do século 19 aos operários industriais (torysocialism), em ambos os casos contra a burguesia, o inimigo comum.

Foi essa ação política lúcida que preservou a monarquia e a aristocracia para os séculos 20 e 21, evitou as traumáticas revoluções sociais e políticas, incorporou um protecionismo seletivo do Estado como instrumento de defesa do próprio sistema de mercado, aparou por meio da legislação social as arestas mais desumanizadoras da revolução industrial, tornou viável o sindicato como mecanismo de autoproteção do trabalhador e criou as condições para o surgimento do partido trabalhista.

Como assinala Polanyi, “enquanto a ruína da agricultura era postergada na Inglaterra por uma geração, os nobres conservadores impuseram novas técnicas de convivência numa sociedade industrial de mercado. A lei das 10 horas de trabalho de 1847, que Marx equivocadamente saudou como a primeira vitória do socialismo, foi obra de reacionários inteligentes”.

Também nos EUA o princípio da substituição institucional tem desativado crises e resolvido problemas quando outras instituições se revelaram incapacitadas. Exemplo emblemático foi a ação da Suprema Corte na década de 1960, quando, numa sucessão de decisões históricas, se desincumbiu da tarefa de defesa e promoção dos direitos civis dos negros, substituindo o Executivo e Legislativos politicamente bloqueados.

O Brasil hoje se encontra num impasse. Excetuados a força-tarefa comandada pelo juiz Sergio Moro e algumas personalidades notáveis do Legislativo e do Judiciário, a maioria da elite institucional do País alinha-se com interesses particulares e partidários; a Nação, já desiludida, aguarda em vão um desfecho exemplar para a oceânica corrupção que nos cerca; as organizações aparelhadas pelo partido no poder há 12 anos dedicam-se a bloquear os caminhos para as soluções da crise; a oposição cultiva a cautela ao limite da paralisia; a Nação, dividida pela propaganda do nós contra eles, corteja os riscos do ódio político.

Dificilmente se encontraria hoje exemplo mais eloquente da fragilidade de uma democracia instável do que a situação de múltiplas crises em que nos encontramos. Daqui a alguns anos talvez olhemos para trás e, constrangidos, nos perguntemos: como foi possível chegar ao nível degradante a que chegamos?

Francisco Ferraz

Dilma e Cunha: um pela outra sem querer volta

Charge O Tempo 14/10

Até sexta-feira tudo pode acontecer. Ou não acontecer nada. Esse é o maior perigo enfrentado pelo país. Não se fala do pedido de impeachment contra a presidente Dilma nem do afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara. Essas hipóteses constituem subprodutos da corrupção, da malandragem e da incompetência.

O “nada” refere-se à inação do governo e do Congresso diante de questões que dizem respeito a toda a população, não apenas às agruras de Madame ou à desfaçatez do deputado.

O que tem feito Executivo e Legislativo para enfrentar o desemprego crescente que nos assola? Cada um manipula os números conforme seus interesses, mas não errará quem supuser a onda de desempregados hoje beirando os dez milhões de cidadãos que já tiveram emprego ou estão preparados para exercê-lo mas encontram-se com as mãos abanando. Em outras palavras, enfrentando a fome e o abandono de suas famílias. Alguns países combateram com sucesso o desemprego, através da criação de frentes de trabalho patrocinadas pelo poder público e com a colaboração da iniciativa privada. A maioria das nações, porém, sofre como nós, ou seja, os males da indiferença do Estado e do empresariado. Alguém se anima a procurar na Esplanada dos Ministérios ou na Avenida Paulista entidades preocupadas em interromper o fluxo de demissões e restabelecer a criação de empregos, mesmo emergenciais? O máximo a que se chegou foi a oferta de diminuição de 30% dos salários, rejeitada por trabalhadores e empresários.

A consequência dessa onda de horror que nos cobre tem sido as greves. Cada vez mais categorias paralisam suas atividades e começam a ganhar as ruas. Breve passaremos da indignação ao desespero e à revolta, mas, no governo e nas entidades capitalistas, quem se interessa em elaborar e implantar um plano destinado a criar empregos?

As demissões geram as greves e essas levam à intranquilidade, quando não ao óbvio aumento da violência, tanto urbana quanto rural. A economia entrou em parafuso, o crescimento estancou. As projeções para o próximo ano surgem piores. Alguma coisa vai mudar, se uns tramam o impeachment da presidente da República e outros a cassação do presidente da Câmara?

Assiste-se a agonia do poder público e da iniciativa privada. No passado, costumava-se colocar frente a frente os comandantes de dois exércitos em choque para que decidissem suas diferenças pelas armas. Que tal convidar Dilma e Cunha para, em plena Praça dos Três Poderes, entregarem seus destinos ao acaso ou à melhor demonstração de sua honestidade? Pode ser uma solução, ainda que a assistência possa inclinar-se pelo empate, ou seja, dando um pela outra sem querer volta...

Nova macumba dos planos de saúde

No ano passado, com a ajuda do infatigável Eduardo Cunha, a Câmara dos Deputados aprovou uma medida provisória com 523 contrabandos. Um deles praticamente anistiava as operadoras de planos de saúde do pagamento das multas cobradas pela agência reguladora do mercado. A gracinha estabelecia um sistema pelo qual quem mais delinquisse menos pagaria. Pela legislação, cada procedimento médico negado custa uma multa de R$ 80 mil. Se uma empresa negasse apenas um procedimento, pagaria isso. Se outra lesasse cem clientes, em vez de pagar R$ 8 milhões, pagaria R$ 320 mil. O contrabando foi vetado pela doutora Dilma.

O veto não foi suficiente para acalmar os empresários. Afinal, eles investiram R$ 55 milhões nas campanhas eleitorais de 2014. Desde julho circulam notícias de que o governo vem sendo pressionado para abrandar a tabela de multas da Agência Nacional de Saúde. As empresas devem algo como R$ 2 bilhões, resultantes de 50 mil multas. Ademais, são campeãs de reclamações da freguesia. Elas vão a 100 mil por ano.

No dia 16 de setembro um jabuti com cabeça de girafa subiu na forquilha. O então ministro Arthur Chioro pediu ao Advogado-Geral da União que respondesse a uma pergunta: o princípio da retroatividade benéfica aplica-se às multas impostas às operadoras? Em português: se uma operadora deve uma multa de R$ 80 mil, quanto deverá pagar caso ela venha a ser reduzida para R$ 10 mil numa nova regulamentação? Dois pareceres da AGU haviam dito que deveria pagar R$ 10 mil.

Em duas semanas, com rapidez inédita, a AGU informou que no caso das multas da ANS não se aplicava o princípio geral da retroatividade. Ou seja, se amanhã enfiarem um contrabando numa medida provisória baixando o valor das multas, o governo poderá negar que se pretende abater o estoque devido pelas empresas. Faltou combinar com os russos. Se as multas forem reduzidas, o parecer da AGU valerá nada para os juízes que forem chamados a decidir a respeito da retroatividade. Ela vale porque vale. Quanto aos pareceres da AGU, podem valer o que valeu a sustentação do doutor Luís Inácio Adams junto ao Tribunal de Contas da União, nada.

O governo poderia discutir a questão do atendimento aos clientes de planos de saúde com inteligência, botando a cara na vitrine. A multa de R$ 80 mil para qualquer atendimento negado é estúpida. Vale tanto para o caso de negativa de um hemograma, que custa R$ 5, quanto para o caso de uma cirurgia de R$ 200 mil. Com pouco trabalho pode-se criar um sistema que relaciona o valor das multas a indicadores de cada empresa. Se uma operadora tem um índice baixo de reclamações em relação ao seu número de clientes, ela pode ser penalizada de forma mais branda. Afinal, quem atende direito e falha não deve ser equiparado a quem tem um desempenho de má qualidade.

Com a criação de um novo sistema, discutido abertamente, não haveria o pleito da retroatividade e nenhum deputado financiado pelas operadoras poderia empurrar uma nova tabela de multas, esta sim, inevitavelmente retroativa.

Antes da Lava Jato as grandes empreiteiras achavam que resolviam licitações e aditamentos com pixulecos no escurinho do cinema. Deu no que deu. As operadoras de planos de saúde acham que não precisam mudar de modos. Dará no que dará.

Lorota do 'País de Classe Média'

Apenas 11 milhões dos 200 milhões de brasileiros podem ser considerados como 'classe média', um padrão que é calculado pelo banco como sendo de uma pessoa com uma renda mínima de US$ 28 mil por ano no Brasil. No total, essas 11 milhões de pessoas detém cerca de 30% do PIB nacional.
Hoje, portanto, o Brasil tem uma classe média menor que a do México, com 12,9 milhões e metade da espanhola, com mais de 20 milhões. Na China, essa classe soma 109 milhões de pessoas. O número representa apenas 8% da população brasileira, uma taxa distante dos mais de 40% na Alemanha e países escandinavos, mas também inferior a Polônia, Chile, Malásia, China e Peru 
Relatório do banco Credit Suisse, que aponta ainda a queda da renda anual de 2014 para 2015, que foi de 23,4 mil dólares para 17,5 mil dólares, principalmente por causa da desvalorização do real, o que é, também, índice de empobrecimentoLeia mais 

Temos capacidade para reverter a decadência iniciada em 2012?

Muitas civilizações e muitos países entraram em processo de decadência irreversível. Foram capturados por uma espiral descendente e não tiveram condições de sair dela. O Egito Antigo e a Grécia são exemplos clássicos. A Espanha de hoje é uma sombra da potência mundial que já foi. O Reino Unido, onde o sol nunca se punha, deixou de ser o que era. Todos foram e deixaram de ser, ainda que com graus variados de fracasso e decadência. Alguns, como o Reino Unido, se adaptaram aos novos tempos. Outros, nem tanto, como a Espanha. A Grécia vive do passado.

Esse processo de decadência estaria acontecendo aqui, no Brasil? Será que estamos entrando nesse processo antes mesmo de termos tido os benefícios do sucesso absoluto? Sem dúvida, sim.

O Brasil vive um processo de decadência econômica e social, iniciado em 2012, que pode durar anos e se transformar em tendência irreversível. Os focos de alarme estão na gestão da questão fiscal, na demora em promover ajustes essenciais no arcabouço institucional do país e na completa rendição aos interesses corporativistas de burocratas e de grandes corporações. Há muito digo que o Estado foi sequestrado por interesses específicos e que não consegue resistir a eles.

Nossa grave incompetência e nossa covardia institucional podem estar dando início a um longo processo de decadência.

A outra dúvida que se apresenta: temos ou não capacidade para reverter o processo iniciado em 2012? Perto de nós existem exemplos patéticos de insucesso. Venezuela e Argentina destruíram o que conquistaram de bom. São sociedades em processo acelerado de decadência. O caso argentino é mais grave, quando se pensa no sucesso social e econômico do país no século passado. Foi tudo destruído pelo populismo irresponsável. O pior é que não há reflexão profunda sobre as raízes do fracasso e da decadência. Culpa-se o mundo, culpam-se os fundos abutres e os vizinhos. Nunca a si próprio.

No Brasil, a era Lula entrou na antessala do sucesso, e chegamos a achar que nosso lugar por lá era cativo, que, finalmente, fazíamos o mundo se curvar a nossa grandeza. A capa da “The Economist” com o Cristo Redentor decolando nos dava a certeza do “agora vai!”. Promovemos uma Copa do Mundo e vamos para as Olimpíadas, responsabilidades que o mundo nos deu acreditando em nossa capacidade. No delírio, chegamos a dar lições de moral à Alemanha de Merkel em 2012, quando Dilma criticou o receituário de austeridade preconizado pela líder alemã.

Agora, para evitar a decadência, temos de ser austeros, pragmáticos e humildes. Não é o que parece que acontecerá. O governo trata da crise fiscal com incompetência. Incapaz de se decidir pelos cortes e de enfrentar a questão junto com a população, busca o déficit primário como disfarce para uma covardia institucional imensa. Pior, tratou da perda do “investment grade” como se isso não tivesse grande importância. O mundo já está complicado o bastante para que deixemos de fazer o dever de casa da recuperação.

Nossa grave incompetência e nossa covardia institucional podem estar dando início a um longo processo de decadência. A presidente Dilma Rousseff, por conta das indefinições em torno de um possível impeachment, ainda tem tempo para tomar as medidas corajosas de que o país precisa.

Ela poderia fazer uma autocrítica séria dos erros de sua gestão e iniciar um processo de recuperação do país e, quem sabe, de seu mandato. Porém, ainda não chegamos ao ponto de deixarmos de ser covardes e mostrar coragem cívica
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Ventania de neurônios

Gregório era um doido manso, pobre feito Jó, que dormia dentro de um forno abandonado de cozinhar adobe. De suas várias manias, uma era guardar vento dentro de uma pequena caixa de papelão, que ele tinha o cuidado de abrir uma vez por dia para guardar vento fresco. Gregório era puro de entendimento e nem sequer sabia a diferença entre bondade e ruindade. Às vezes, manifestava a vontade de “avuar num carro do céu”. Nunca achei que fosse doido de jogar pedra em avião, mas, um dia, ele me segredou que havia jogado pedra num ninho de passarinhos porque o gorjeio deles ao alvorecer do dia não o deixava dormir.
Gregório era pobre de natureza e não sabia nada da vida dos outros ou de política, dela aproveitando apenas os foguetes lançados nos cordões dos puxa-sacos. O córrego que passava perto da olaria era seu marcador de tempo... Arrependido de ter jogado pedra em ninho de passarinho, após saber que canários são mensageiros da paz e da beleza do mundo, às vezes manifestava medo do castigo de Deus: Gregório era temente a Deus. Muito antigamente isso era comum. Não era doido, talvez um filósofo abestado do cotidiano que não sabia que era, simplesmente, uma pessoa desentendida do mundo.

Lembrei-me de Gregório e de suas ideias ao ouvir um trecho de entrevista coletiva concedida por Dona Dilma em sua passagem pela ONU, que me fez chorar de saudade de um tempo que valeu a pena ter vivido – tempo sem PT, Petrobras e seus ladrões e outras maldades próprias de gente ruim, que falam com o vento que ventava em Gregório: “Até agora, a energia hidrelétrica é a mais barata, em termos do que ela dura com a manutenção e também pelo fato de a água ser gratuita e de a gente poder estocar. O vento podia ser isso também, mas você não conseguiu ainda tecnologia para estocar vento. Então, se a contribuição dos outros países, vamos supor que seja desenvolver uma tecnologia que seja capaz de, na eólica, estocar, ter uma forma de você estocar, porque o vento é diferente em horas do dia. Então, vamos supor que vente mais à noite, como eu faria para estocar isso? Hoje nós usamos as linhas de transmissão, você joga de lá para cá, de lá para lá, para poder capturar isso, mas, se tiver uma tecnologia desenvolvida nessa área, todos nós nos beneficiaremos, o mundo inteiro”.

E, depois dessa ode aos furiosos, fico pensando sobre irrealidades deste mundo cão, onde os homens se contendem pelas protuberâncias conexas das excentricidades congêneres da apologética, que, silontrando (porque sou um silo vazio de esperanças) a insipidez patológica das homogeneidades mórbidas e farpantes, vêm engavelar os insignes caracoides mentores das obrevidências, nos epídotos escalenos de filisteus e trogloditas que enviperam genetrizes macropétalas de púlcares desnalgados e exauríveis que bacorejam páramos e tripétalos de lucidez sem nexo.

Não consigo entender o porquê de Gregório ter sido, sem saber que era. E, muito menos, de Dona Dilma ser, sem nunca ter sido.

Gosto de brincar com letras pra fazer palavras...

Brasileiro é o que mais teme andar na rua à noite


Em uma comparação entre moradores de 36 países, os brasileiros são os que se sentem menos seguros ao caminhar sozinhos à noite na cidade em que vivem, segundo um relatório divulgado nesta terça-feira pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, grupo que reúne majoritariamente países ricos).

Segundo o How’s Life? ("Como vai a vida?"), que compara dados dos 34 países integrantes da OCDE mais os de Brasil e Rússia, menos de 40% dos brasileiros dizem sentir-se seguros nessa situação, bem abaixo da média de quase 70% dos moradores dos países da organização.

Mesmo nos demais países latino-americanos pesquisados - México e Chile -, a sensação de segurança ao andar à noite é maior do que no Brasil.

Na Noruega, país com o percentual mais alto, mais de 80% dos habitantes se sentem seguros ao andar sozinhos à noite na área em que moram.

O documento reúne indicadores de bem-estar relacionados a aspectos como renda familiar, condições de moradia, saúde, educação, empregos, segurança, satisfação de vida e engajamento cívico, entre outros.

"O risco de crime e violência e as percepções das pessoas sobre sua própria segurança têm impactos mais amplos sobre o bem-estar, tanto por meio de maior ansiedade e preocupação quanto ao restringir os comportamentos das pessoas", afirma a OCDE.

Na comparação entre os países analisados, o Brasil tem a mais alta incidência de mortes por agressão.

De acordo com os dados do relatório, a taxa de homicídios no Brasil, de 25,5 por 100 mil habitantes, é cerca de seis vezes superior à média da OCDE, de 4 por 100 mil habitantes.Image copyrightGettyImage caption

Quando consideradas somente as vítimas do sexo masculino, a taxa no Brasil é de 48,1, bem acima dos 4,4 registrados entre mulheres.