quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Liberdade


— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.

Miguel Torga (1907-1995)

Eu sou Charlie


O ataque terrorista contra a redação da revista Charlie Hebdo, em Paris, foi mais um, dos milhares que ocorrem pelo mundo, diariamente, para eliminar de vez o direito máximo do homem. É um alerta de que atentados desse ou de outros tipos também acontecem, ou são elaborados, também aqui, porque não se mata apenas pessoas para liquidar a liberdade. Também silenciar a informação, controlar a mídia, esconder em proveito próprio ou de terceiros dados de interesse público, defender a marginalidade política e pública, perseguir os críticos (até com processos) só por não pensar segundo o evangelho da estrela, calar o cidadão em seu direito de expressão, seja ele qual for, são outras formas, das muitas, de se fuzilar a liberdade. Sem ela, o homem do século XXI será mais escravo do que em outras eras, porque não mais terá chance de ao menos sonhar com a libertação: um mero apêndice dos governos com o dever de pagar impostos e o direito de ficar calado.

Palmas para a civilização


O escritor nigeriano Chinua Achebe apresentou em “O mundo se despedaça” o território africano ainda virgem de colonização, quando só o que vicejava eram os inhames na terra e as tradições das tribos. É a partir da chegada do homem branco, ocidental e civilizado, que aquele mundo vem abaixo, junto com a autoestima de um povo.

Está claro que o ocidente se expandiu, se expande em busca de soluções para suas necessidades cada vez maiores, é preciso ter conforto, é preciso consumir, parece uma investida da qual não se escapa, esta sociedade se organiza através do consumo, o que fazer com os produtos que o capital precisa vender? Olha que hambúrguer!, assista ao cinema 3D!, jogue o game da hora!, avançamos desta forma desde o século XVIII.

Com o foco na produção, a referência óbvia virou o planeta, que não manterá por muito mais tempo e novas gerações o habitat perfeito do jeito que hoje conhecemos. A gente se arma em defesa do meio-ambiente, mas não atinamos com a verdade: o planeta sobreviverá muito bem à catástrofe chamada espécie humana, já sobreviveu antes a outras, o que está em jogo é a nossa capacidade de sobrevivência nos continentes, onde as condições naturais podem ficar demasiado hostis à civilização. Lembro que este é ainda o único planeta que temos à disposição.

Mas indo além, quando saímos do conforto da sala e mergulhamos no caldeirão de culturas que é a Terra, será que o nosso jeito ocidental de viver reconhece diferenças fundamentais? Ou impõe-se através da exposição maciça de nossas qualidades via satélite, tevê, internet? Creio que é nosso costume reverberar como se não tivéssemos defeitos, projetamos nossa receita imaculada, deve ser difícil para os outros valorizar o que é tradição.

Felizmente, a globalização também tornou visível esse confronto e nossa consciência coletiva deu um salto decisivo, impor nossa cultura como remédio já não é unanimidade, tem quem ainda pense assim, mas já se encontra quem ache que as pessoas devem viver do jeito que quiserem, talvez o mais perto que puderem de suas raízes ancestrais.

Sobra pouca aventura, porque o mundo inteiro logo não será mais novidade, de onde virá o novo quando aceitarmos e se incluirmos toda a nossa população vasta e diversificada? Aprofundaremos a consciência da existência em um movimento inesperado para dentro? Ou nos lançaremos para o espaço em uma aventura sideral que só conhecerá fronteiras se descobrirmos que não estamos sozinhos?

Do modo como vivemos, se não entregarmos a espécie à extinção, parece mais provável a segunda alternativa. O futuro sonhará com a colonização de planetas, de onde retiraremos as matérias-primas necessárias para manter viva tanta vontade de conforto e tecnologia. A Terra será poupada (tomara!) e avançaremos no infinito atrás de planetas desabitados adequados à exploração. Eu disse desabitados… o que acontecerá quando nascerem humanos na Lua ou em Marte? Novas e incríveis culturas virão, forjarão tradições, autoestima, e os naturais de lá protestarão veementes quando perceberem que são os explorados da vez. “Poupem nossa Lua!”, “Marte para os marcianos!”, posso ouvir as palavras de ordem pesarem sobre nossas consciências em férias.

O filme “Apocalypto”, de Mel Gibson, surpreende com essas questões decorrentes dos males da civilização. Certamente é mais um, mas me faz lembrar que não existem bonzinhos neste jogo cínico onde se enfrentam as influências cotidianas e os modos de vida. Mesmo a selva, a natureza, para onde convergem os olhares querendo uma solução, não explica nada. Os animais são pródigos em se dividirem em violentos clãs e bandos, em disputa eterna pelos melhores territórios. Dali sobressai neste aspecto só a lei do mais adaptado. Somos melhores?

Por que então esta dor sobre o que é o certo a fazer? Esta civilização que mata e decepciona, que incorre em omissões terríveis, também convoca o ser humano a admirar a ciência e a arte. Não há duvida: estamos ferrados entre as noções de beleza e de crime. Por enquanto nós. Até quando?

Marco Antonio Martire (Transcrito de Rubem)

Paisagens Brasileiras

Tempo chuvoso em Ouro Preto, Aguilon 

Minha mãe já sabia


Em seu discurso de posse, a presidente reeleita Dilma Rousseff anunciou o lema de seu governo, Brasil, pátria educadora: "Isso significa universalizar o acesso a um ensino de qualidade em todos os níveis". O que causa admiração não é descobrir que só agora, em seu segundo mandato, a educação aparece como prioridade – mesmo porque o tema nunca interessou, de verdade, a nenhum político, nem a seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, nem, muito menos, ao tucano Fernando Henrique Cardoso. Surpreendente é a frase explicativa.

"Universalizar o acesso a um ensino de qualidade em todos os níveis" aponta para uma dessas duas interpretações possíveis: ou já atingimos um patamar de excelência na educação e o que precisamos é apenas garantir o ingresso do conjunto dos cidadãos nas escolas; ou devemos assegurar a admissão de todos num sistema que nos próximos quatro anos apontará para um grau de aprimoramento digno de Primeiro Mundo. Como o Brasil ocupa as últimas posições em testes de avaliação internacional de ensino – por exemplo: o Relatório de Capital Humano, formulado pelo Fórum Econômico Mundial nos coloca na em 88º lugar entre 122 países –, e como reputamos que a presidenta Dilma Rousseff é uma pessoa íntegra, podemos, sem sombra de dúvida, descartar a primeira hipótese de interpretação da frase explicativa.

Então, ainda que tarde, e ainda que descrentes, devemos analisar a frase de acordo com a segunda hipótese: iremos assistir, nos próximos 48 meses, um esforço para sanear as bases da educação brasileira, assentadas em um pântano de omissão, incompetência e desmando, para transformá-la em um oásis de eficiência, disseminação de conhecimento e preparação para a vida, que é o que todos ansiamos. Verifiquemos, pois, como a presidenta Dilma está se organizando para enfrentar esse desafio.

Não há mágica para resolver o gravíssimo problema da educação nacional, herança da mentalidade colonizadora, gananciosa, egoísta e predatória, que sobrevive em nossa elite individualista e burra. O Brasil dedica cerca de 5,9% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação, percentual bem próximo daquele destinado pelos países ricos que contam com ensino de qualidade. O problema, então, não reside necessariamente no montante do dinheiro aplicado nessa área, mas em como ele é gerido.

O Ministério da Educação, encarregado de levar à frente o projeto, foi entregue ao ex-governador Cid Gomes, que divide com o irmão, Ciro, o controle da política cearense. Juntos, os Gomes garantiram a vitória acachapante de Dilma no Estado: quase 80% dos votos foram dados a ela. Cid é filiado ao Partido Republicano da Ordem Social (PROS), minúscula legenda que fez, no último pleito, um governador (o do Amazonas, José Melo) e 11 deputados federais. Não consta que ele tenha relação íntima com a pasta da qual é titular, mas, a bem da verdade, isso não tem importância, pois trata-se de um cargo político.

Mas qual o saldo da administração de Cid Gomes no Ceará? Embora tenha se tornado nacionalmente conhecido por uma declaração infeliz, ele implementou algumas políticas que impulsionaram o ensino fundamental no Estado. Em 2011, durante uma greve de trabalhadores da educação, o então governador afirmou, diante das reivindicações por melhores condições de emprego, que quem entra na vida pública – e ele estava pensando nos manifestantes – deve se sentir motivado não por questões financeiras, mas por "amor e espírito público". Como essa declaração acirrou os ânimos, os grevistas se reuniram em protesto em frente à Assembleia Legislativa, tendo sido dispersados pela Polícia Militar com cassetete, gás pimenta e gás lacrimogênio. Por outro lado, o nível do ensino fundamental no Ceará avançou – as notas subiram, nos primeiros anos, de 4,4 em 2011 para 5 em 2013, e, nos últimos anos, de 3,7 para 3,9 –, embora o desempenho no ensino médio tenha caído de 3,4 para 3,3 no mesmo período, segundo avaliação do do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Escola Básica).