domingo, 28 de dezembro de 2014

O canalha fundamental

Não consigo encontrar relevância maior neste momento, mesmo premido pela lógica destes dias que antecedem o Natal, esqueço a força da compaixão coletiva transformada em compulsão consumista, penso no arquetípico canalha que assola este país.

Penso nele porque é nesta época do ano que o canalha fundamental se torna mais evidente, fica impossível para ele se esconder do que é genuíno no coração das famílias, dos humildes, das minorias. Eu desconfio que o canalha já nasça com o caráter estampado na testa, chega no berçário e a galera já o reconhece como guia, será ele a deter entre os grupos as qualidades que forjarão uma imagem do bem, de parceiro, de amigo de toda a gente. Com este apoio desde o berço, esta vantagem social inata, é que será capaz de obter todos os títulos ostentáveis, porque será um mestre das picuinhas e pequenezas, dos abraços e beijinhos. Conhecedor de nossas fraquezas e ambições, o canalha fundamental quer subir na vida e então ele começa a escalada.

É preciso ser limo para que este canalha não nos monte nas costas. Ele é incapaz do trabalho árduo que uma sociedade sã exige, promete gratidão, frequenta os amigos, graceja, exala perfume e conta piadas boas.

Canalha tem de todo jeito, o gênero é amplo, mas o que mais interessa a esta crônica é aquele que forma o brasileiro: o canalha que fura filas, que bloqueia cruzamentos, que compra carro do ano mas não paga empréstimos, aquele que puxa o tapete por recalque e que sobrevive de adulação, aquele que corrompe e aquele que é corrompido. Que age como o camelo e não consegue enxergar outra oportunidade que a poça a brilhar diante de todos os olhos. Sua personalidade movediça o carrega, explora qualquer fonte até que reste seca, não é capaz de cultivar uma planta, imagina sempre que amanhã será pior o dia.

O canalha fundamental desconstitui a esperança, pois vive de explorá-la nos ingênuos, nos cabisbaixos e nos distraídos. Vive em todo brasileiro, de uma forma que hoje dele somos indissociáveis, vez ou outra o canalha em nós toma o controle e cumprimos o que era impensável, o mal que criticamos semana passada. Eu nunca! Por conta deste canalha lotamos as academias, lotamos as praias, pois precisamos estar em forma para lidar com suas artimanhas. Alertas! Quem não quer desferir um murro nas fuças deste canalha? Mas preferimos ser seu amigo.

Nosso canalha fundamental vive do que se convencionou chamar de esperteza, ele está é no princípio de nossa burrice. Ele viceja desde os tempos da fundação deste povo, quer se dar bem desde lá, todos conhecemos este gene, ele é um com nossa sociedade. Porque admiramos o canalha secretamente. Porque ele exibe, nós sabemos, uma loucura nos olhos que desejamos, aquela capacidade de sobrevivência enquanto o outro cochila, ainda que esteja por dever no turno de vigília, que se dane! É a hora de passar o rodo, de fazer o ganho, de me dar bem.

Destaco o canalha fundamental nestes dias de Natal porque nesta época a compaixão descola dele de tonta e envenenada, nestes dias seu humor azeda e sua tolerância emocional zera diante do pernil da ceia montada para seu desgosto. Mas ele não permite ausência, por isso discursa no vácuo dos bons, e suas palavras soam frágeis, o bebum atento sabe que soam frágeis porque falsas.

Só que o Natal passa logo, passa, passa o dia 25 de dezembro e o canalha retorna para o seu posto de gozo costumeiro. Ele é o brasileiro por quem protestam e creio que nunca será por nós derrotado. O canalha fundamental está registrado na certidão de nascimento, no RG, em nosso CPF, está no registro de quando casamos. Muita gente o admira, quer ser igual. Muita gente faria, feito ele, qualquer coisa pelo sucesso deste incrível país.

Marco Antonio Martire

Cadê a saída?


O mais do mesmo

A extinção do latifúndio virou ampliação do agronegócio e limitação da propriedade rural familiar. A limitação de remessa de lucros para o exterior transformou-se em demolição das barreiras fiscais que impediam o envio do produto da corrupção daqui de dentro lá para fora. O voto do analfabeto é cercado de tantos impedimentos que só tem diminuído, enquanto aumenta o número dos brasileiros que não sabem ler nem escrever. A participação dos empregados no lucro das empresas continua sonho de noite de verão. O estímulo ao crescimento da indústria nacional desapareceu, ao tempo em que murchou a influência dos sindicatos na formulação da política social e trabalhista. A proteção ao trabalho do menor deu lugar à multiplicação do número de crianças exploradas no campo e nas ruas das grandes cidades. A garantia do trabalho virou fumaça em prol das demissões amplas e irrestritas. Exportamos cada vez mais produtos primários do que importamos produtos estrangeiros de valor agregado sempre maior.

Acabamos de alinhar um programa do PSDB ou a cartilha neoliberal dos tempos de Fernando Henrique Cardoso? Nem pensar. A realidade acima referida é praticada pelo governo do PT. Os companheiros abandonaram as propostas do tempo da fundação de um partido que seria diferente dos demais. Importa menos saber se foi o Lula o primeiro responsável pela mudança ou se coube a Dilma consolidá-la. A verdade é que ambos cederam, se é que um dia imaginaram construir um país socialmente adiantado. Assim chegamos ao final do ano e do mandato inicial da presidente da República. Ironicamente, bafejada pelas urnas do mês de outubro. Por isso não houve a apresentação de um plano de metas, durante a campanha.

O pífio ministério que vem sendo definido, mesmo com alguns nomes petistas, carece de defensores de reformas econômicas, políticas e sociais. Pelo contrário, compõe-se, no mínimo, de adeptos do vigente modelo conservador. A única mudança em pauta parece da criação de limitações para as atividades da mídia. Prevalece o modelo do mais do mesmo, apesar dos 53 milhões de votos dados a Dilma Rousseff. Os eleitores foram enganados ou enganaram?

Fica para outro dia analisar o papel do marechal Costa e Silva na presidência da República, registrando-se apenas que morreu tentando acabar com o AI-5, inclusive num último esforço para assinar o nome, que já não conseguia em função do derrame cerebral que o acometeu. O problema é que acabamos de assistir o prefeito de sua cidade natal, Taquari, no Rio Grande do Sul, mobilizar um guindaste para demolir estátua feita em sua homenagem numa das praças principais.

A iniciativa lembra outra, acontecida em 24 de agosto de 1954, quando Getúlio Vargas estava para ser deposto do palácio do Catete. Horas antes de dar um tiro no peito e mudar a História do Brasil através de um dos mais importantes documentos da República, a carta-testamento, seus adversários confeccionaram cartazes de papelão com os dizeres “Avenida Castro Alves”, que foram colados em cima das placas onde há anos se lia “Avenida Getúlio Vargas”. A reação popular arrancou os inusitados cartazes e botou os energúmenos para correr.

A gente fica pensando o que acontecerá daqui a cinquenta ou cem anos com as estátuas que fatalmente serão erigidas para homenagear o Lula e a Dilma…

Nada a fazer


A propósito, uma indagação: como será tratada pelo Executivo a descoberta de que membros da classe política indicaram para funções públicas pessoas que não o mereciam? A resposta é simples: nada a fazer. No Brasil — e em quase todo o mundo — não há castigo para isso. Em nome, claro, das liberdades democráticas

E se Machado de Assis escrevesse sobre a Petrobras hoje?

Talvez, em vez de sair à procura de cidadãos loucos, ele se voltaria para os corruptos
Uma escritora brasileira me pergunta: “Se Machado de Assis escrevesse agora sua famosa novela O Alienista, que tema de fundo escolheria?”.
Dando uma olhada nas manchetes dos jornais sobre a minha mesa de trabalho, sou levado a pensar que o gênio machadiano teria centrado sua obra hoje não tanto na loucura em contraposição à prudência, e sim na corrupção frente à ética.

O personagem central da primeira obra de realismo literário de Machado de Assis é o médico alienista (psiquiatra) Simão Bacamarte. Repleto de conhecimentos médicos adquiridos nas universidades europeias, decide voltar à sua pequena cidade de Itaguaí, na então província do Rio de Janeiro, para colocar em prática o seu saber psiquiátrico. Quem seria hoje o personagem central da obra?

E os outros personagens variados, do barbeiro ao padre e à própria mulher do alienista – seriam eles hoje os mesmos que foram em O Alienista?




Talvez, em vez de sair à procura de cidadãos loucos para internar na Casa Verde, um manicômio mandado construir por ele, Bacamarte iria hoje atrás de corruptos e corruptores, de juízes, policiais e advogados dispostos a ajudá-lo em seu afã de distinguir aproveitadores de honestos.

O gênio de Machado, o Cervantes brasileiro, fundador da Academia Brasileira de Letras, teria encontrado para seu Alienista personagens tão ou mais interessantes do que aqueles de mais de cem anos atrás, quando escreveu sua obra tragicômica, cheia de humor ácido, bisturi da realidade social de então, povoada como hoje por interesses pessoais e maracutaias políticas.

Machado poderia se divertir amargamente com toda essa caravana de personagens que tingem as atuais notícias a respeito do maior escândalo de corrupção político-empresarial na história deste país.

Entre eles há de tudo: delatores e acobertadores, corruptos e corruptores, vítimas e verdugos; empresários e políticos, assim como um submundo de personagens à sombra, manipulados como bonecos por quem nunca vem à luz. Eles teriam inspirado o realismo e a comicidade de Machado, em quem Alcides Maia dizia ver o humor típico dos escritores britânicos, mas com um verniz tropical.